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domingo, 16 de junho de 2013

Filosofia pra quê?





S. Dali



Depois de quatro anos estudando filosofia, essa foi uma das perguntas mais frequentes  que ouvi dos amigos (os interessados): "mas filosofia? Pra que serve?".

Pensar nessa pergunta me causava uma dupla perplexidade: o fato de não saberem e constatar que eu mesma também não conseguia responder.
Embora convicta da importância que esse estudo representa, eu mesma não conseguia informar assim, em dois minutos, para que serve tudo isso. Tive que exercitar um método que pudesse colaborar com essa “investigação”. Todas as vezes em que eu me flagrasse pensando a importância desses estudos para mim, eu anotaria uma razão, na primeira página daquele caderno roxo.
Antes de qualquer coisa, a filosofia somos nós mesmos desde que temos o atributo de pensar, na versão mais simplista, eu afirmaria que filosofia é o simples pensar.
Mas, depois de muito devaneio, entre aulas e intervalos, acho que posso resumí-la em uma outra coisa: compreender o seu momento – mas nada muito preciso, porque, uma das coisas que a filosofia me ensinou é justamente isso: nada é muito preciso, pois tudo está sempre inflado de subjetividade, ou seja, as histórias que ouvimos ou as experiências que vivemos raramente estarão virgens desses resíduos subjetivos.
Compreender o seu momento demanda uma coisa muito séria, que na filosofia é mandatória: acessar outros tempos e outros lugares. Com eles vêm seus pensadores, seus pensamentos, suas interpretações da vida, do homem, do mundo, uma profusão enorme de críticas e tudo isso, mas não somente isso, vai formar você.
Quando acesso o pensamento de um filósofo escocês do século dezoito, por exemplo, agrego à minha percepção as muitas coisas em comum que compartilhamos, coisas que sempre estiveram no homem, seja ele do meu tempo ou não, seja ele da minha cultura ou não. Bem, mas isso não é privilégio da filosofia, esse retorno ganhamos também na literatura, na poesia e outras humanidades. Mas uma das belezas da filosofia é que ela carrega muita história e, intimamente ligadas, uma se revela contexto da outra. Por trás de um fato histórico há muitas vezes uma corrente filosófica, como foi o pensamento iluminista, em especial O Contrato Social de Rousseau, no contexto da Revolução Francesa, cujos resultados se viu esparramar pelos séculos e em diversos povos.  Temos outros exemplos, de grande envergadura,  como  as obras de John Locke, filósofo inglês do século dezessete, cujas ideias tiveram forte influência no processo de independência dos Estados Unidos,  assim como o já mencionado movimento iluminista, corrente filosófica do século dezoito, que combatia a intolerância da igreja e buscava promover a emancipação dos homens em relação ao autoritarismo, não só da igreja como também do Estado (as santas fogueiras poderiam ter tido uma vigência maior, não fosse, entre outras coisas, a força do pensamento crítico) ou, ainda, temos também o exemplo do pensamento platônico que deu bases para a doutrina cristã, que define a moral ocidental até hoje. Tudo isso é ignorado por nós, ao colocarmos a pergunta:  "pra quê serve a filosofia?". A filosofia nos forma, explica nossa história e explica nossa pessoa - a filosofia é você mesmo.
São inúmeros os momentos da filosofia aos quais devemos conquistas importantes para a vida contemporânea -  ações nascem sempre a partir de ideias, que é a matéria-prima da filosofia, foram ideias que possibilitaram a construção do presente momento. Desse modo, a filosofia é a história ou o percurso da evolução do pensamento e, portanto, da nossa própria humanidade. Entretanto, o seu não reconhecimento (no senso comum), se dá pelo desinteresse que se tem em extender o conhecimento a outros tempos e outros lugares. Ao negligenciar séculos de filosofia e história, nos limitamos a conhecer o presente, como se isso fosse suficiente e assim ignoramos capítulos fundamentais da nossa história, que explicariam muitas de nossas características.
Filosofia e história compõem juntas a verdadeira dinamite que poderia desconstruir visões equivocadas que insistem em sobreviver, chegando intactas até os dias de hoje (não é surpreendente que nenhum grupo de comunicação recomende essas leituras, potencializadoras do pensamento crítico) e face à isso eu não deixaria de salientar o peso e valor idênticos dessas duas áreas do conhecimento (já pensei, inclusive, que mais filosófico do que a própria filosofia, só mesmo a história).
Esse conhecimento pode explicar e dissecar inverdades milenares, mitos, superstições, relações de poder, entre outras coisas, que deliberadamente encobertos, favorecem um pequeno grupo de habilidosos, que sempre existiu, escravizando uma grande massa de desavisados. Expôr a intimidade desses sistemas é um dos serviços que a Filosofia acaba realizando - ainda que esse não seja seu único serviço – e acessar esse tipo de reflexão permite ao indivíduo o domínio do seu próprio pensamento, coisa impagável.

Faz total diferença na vida humana conhecer os processos históricos, fatos e pensamentos que nos antecedem, para entender o mundo e o momento em que se vive. O acesso a esses conhecimentos nos conduz ao tesouro guardado da produção intelectual e, como bem previu Descartes (filósofo francês do século dezessete), entrar em contato com "os gênios dos séculos passados" e permitir que "eles nos transmitam suas melhores ideias", pode ser instrumento vigoroso de conhecimento e pensamento crítico, o que é, obviamente, absolutamente inconveniente para o sistema atual, razão pela qual esses estudos jamais são encorajados, a não ser no espaço acadêmico (é importante salientar que há mesmo um esforço em deixá-los engavetados).

Há muitas coisas no dia a dia que têm como função principal distrair o raciocínio,  flertar com elas pode ser interessante para se obter um minuto de “sossego”, mas sucumbir a essa pseudo-realidade, não pode ser uma opção saudável.
Eu posso escolher outra realidade, menos exposta, mais nebulosa, isso provavelmente me protegeria de muitos sentimentos obscuros que o conhecimento filosófico me inflige, mas isso só me distrairia do mundo em que eu vivo - que continuaria lá - e minha vida seria maquiada.
Concepções distorcidas  que vingaram e perduram até hoje, ficam muito expostas quando se acessa a leitura filosófico-histórica. Pensamos até hoje sobre bases dualistas sem saber que isso é presente  (literalmente de grego) de Platão, para citá-lo mais uma vez, ou seja, tudo que julgamos é arbitrariamente dicotômico: ou a coisa é boa ou ruim; bela ou feia; correta ou errada, isso é uma concepção de mundo tão antiga quanto atual. Raramente ponderamos e pensamos nas inúmeras gradações que existem entre uma coisa e outra (isso quem nos conta é Nietzsche, filósofo alemão do século dezenove, inimigo ardente de Platão). Mas pensamos assim, platonicamente, que se uma coisa não é boa, então ela é necessariamente má.
Platão, filósofo grego do século V antes de Cristo,  partiu o mundo em dois: o mundo sensível (da matéria) e o mundo intelectível (das Ideias), no primeiro teríamos apenas a aparência das coisas e só no segundo estaria a coisa em si, esta é a origem do pensamento dualista que permeia nossa concepção de mundo (ocidental) até os dias atuais. Isso é somente um produto do pensamento platônico, fora isso, podemos pensar todo o pensamento cristão ou a metafísica cristã, como queriam os primeiros pensadores dessa doutrina (a divisão entre céu e terra não é uma coincidência) entre outras coisas, que não teriam espaço aqui.
Enfim, é preciso lembrar que os filósofos eram também, muitas vezes, os matemáticos, os cientistas, os químicos...a cisão entre filosofia e ciência de modo geral só ocorre no século quinze, antes disso eram uma só coisa, um único estudo, um único conhecimento, que no fundo se põe, até hoje, a mesma tarefa: compreender o mundo.
O pensamento filosófico propicia, portanto, uma formação de cunho extremamente racional, dado que sua ação é a de desbravar, impiedosamente, territórios encobertos. Sem se esconder sob a sombra e o aconchego oferecidos pelo pensamento mítico (exoterismos, superstições, etc), levando suas questões às últimas instâncias, extrai consequências de toda sorte, sendo algumas não tão agradáveis - de qualquer maneira, não é esse o seu comprometimento. O mais bonito é que embarcados na filosofia, descobrimos nas entrelinhas do óbvio e do trivial, as várias questões que ainda não foram visitadas - por nós mesmos.
A jornada desse conhecimento exige muita coragem, como avisava Nietzsche, encarar de frente alguns temas pode produzir certo desconforto, que pode durar dias, mas uma vez que subimos nesse barco, voltar atrás é coisa muito difícil, é como desistir de tesouros históricos cuja existência você já detectou. Agora você quer ver tudo o que está lá e o desconcerto que isso pode causar já não é mais tão importante, antes dele vem uma vontade enorme de descobertas, que nem sempre são felizes, mas assim são as paixões, menos razão do que ímpeto. É um tormento e ao mesmo tempo uma avalanche de prazeres.

É assim o vício da filosofia, que mais cedo ou mais tarde vai trazendo outros convidados para a sua casa; ela te apresenta, além da história, a arte como alguém importante para sua festa, a literatura, a poesia e outras coisas -  ela te oferece diversas perspectivas, inúmeros panoramas, mas uma única certeza: o conhecimento não acaba nunca!

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