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sábado, 6 de setembro de 2014

O Anti-cristo, de Lars von Trier (2009) - tentativa de uma crítica.



 


Em Anti-cristo há diversas plataformas da arte que se reúnem em torno da trama. As cenas do prólogo correm em preto e branco e em câmera lenta, ao ritmo lento e dramático de uma música sofrida que as acompanha e que parece transmitir o próprio drama da vida. O apreço de L.Trier pela música não é elemento secundário, como bem pode ser visto na obra-prima Dançando no Escuro (2000). A primeira cena é primorosa e renderia páginas de reflexão. Ali o diretor já nos revela sobre o que quer falar: da vida. E da morte. Da natureza. E da desordem.

Trata-se de um casal (sem nome) interpretado por Willem Dafoe e Charlotte Gainsburg que, distraído pela paixão visceral de seus corpos em ação, não percebem seu filho de seis anos, Nic, saindo do quarto ao lado e dirigindo-se para a janela ao encontro da morte. No momento mesmo em que a mãe solta o grito bestial do orgasmo -  aquele que uma vez teria  simbolizado a própria concepção -  Nic é levado pela morte, ao saltar, inocentemente, pela janela de seu quarto. O grito é o da natureza, aquela que dá a vida e também a tira; o grito do orgasmo mistura-se com o "grito" da morte, relacionando-se claramente o "início" com o "fim". A lentidão com que Trier filma este momento é muito significativa, o enfoque está na organicidade do sexo, na fragilidade da vida e também na banalidade da morte. Forçando-nos a encarar a casualidade com que a vida tem seu começo e também seu fim e a própria desordem e trivialidade com que ela se dá, Trier mostra como a história de Nic (como a de todo ser vivo) fora resultado de pulsões orgânicas, nos dois momentos cruciais de sua vida: o começo e o fim. (confira aqui todo o primor do prólogo).

Mas Trier vai mais longe. O sexo desesperado do casal narra a animalidade da natureza humana que convive, espremida, com a razão. Não à toa o pai é um psiquiatra, figura da razão, enquanto a mãe, transtornada com a perda e toda a culpa que se impõe, tornará-se a própria desrazão.

A partir disso a trama se edifica sobre um diálogo cruento entre racionalidade e passionalidade, natureza humana e a própria natureza, não para reforçar essas dicotomias históricas que crenças de outrora dedicaram-se a incutir no ser humano, as quais estimamos e sobre as quais nos apoiamos para nos sentirmos especiais (humanos e racionais, que dominam a natureza e as paixões), mas, ao contrário, para romper com essa ideia; para mostrar como esses “contrários” não se opõem, mas antes se harmonizam, estão ligados, são uma só coisa. As cenas de Trier colocam à mostra, como fraturas expostas, em vários momentos do filme, perspectivas incômodas sobre a natureza e o sentido da vida humana, ou a falta dele. Morre-se à toa como um dia nasceu-se à toa, sem qualquer propósito ou finalidade. Assim, o filme vai costurando, vai aproximando, de forma torturante e até o final, a figura humana da figura animal. As visões dos pais de Nic, nos dias em que encontram-se em sua cabana num local chamadoÉden”, o que também é curioso pois trata-se de uma floresta que está mais para demoníaca (em forte oposição ao papel que tal nome desempenha na cultura cristã), envolvem sempre animais: um filhote de pássaro que cai da árvore e imediatamente é tomado pelas formigas; um veado natimorto ainda preso nas entranhas de sua mãe, a emblemática raposa falante que, aparentemente, comia seu próprio filhote e, surpreendida pelo pai, emite as palavras fundamentais da obra de Trier: “o caos reina!”...toda essa seleção de cenas que relacionam animais e morte deixam muito clara a dolorosa mensagem de que não nos diferenciamos dos animais, nem somos especiais - morremos na mesma gratuidade e irracionalidade, muitas vezes na indignidade. A natureza nos engole a todos, e nos engole com a mesma casualidade com que nos cospiu um dia à vida. Sejamos cristão, sejamos raposa, eis o sentido dela, para lembrar Nietzsche, de quem muitos pensamentos permeiam toda a obra: o “não-sentido”. (Tecer aqui uma analogia com a obra nietzscheana estaria autorizado, dado que Trier já declarou o profundo impacto recebido do filósofo alemão desde sua adolescência, embora não seja este o objetivo).

Sobre a mãe, cabe dizer que toda a pulsão despejada por ela – passional, enferma – sobre o pai - a figura racional, sinaliza nossa identidade com a natureza. A cena de sexo ao pé de uma árvore de raízes vultosas, entrelaçando-se, indistintamente, que depois tornam-se mãos humanas, cria essa proposta: o ato humano, o enraizamento, as relações, o instinto e a natureza – uma só coisa. Essa única coisa é o que grita, é o que nasce, é o que morre, é o orgânico e o gratuito - o sem sentido. Quanto ao pai, Trier mostra mais uma vez seu esmero ao apontar como ele mesmo, cansado de toda a violência da esposa, sucumbe a sua passionalidade,  intrínseca e agora inadiável – especialmente por que então trata-se de matar ou morrer. O diretor nos chama atenção para isso, é o mesmo movimento para todos os seres: sobrevivência. É assim que a natureza atropela sua amabilidade e humanidade. Aqui Trier não titubeia em afirmar que mesmo a mais adormecida natureza, no sentido forte, não tarda em lançar-se à dança da animalidade, assim que for necessário.

Trier lança mão de um cenário obscuro e nebuloso, de mata fechada, representando brilhantemente as profundezas estranhas da  mente humana, seus "porões", os lugares mais sinistros e insólitos que ela esconde. A personagem interpretada por Gainsburg é exatamente isso, está obscura e suas ideias estão cercadas de “mata”, seu percurso é cheio de medos e dúvidas, e ela não vê para onde correr, tem que lidar com as selvas de sua consciência, labiríntica, imprevisível e perigosa. A cena em que o personagem de Dafoe entra em uma espécie de porão e encontra documentos de horror, sobre a violência histórica praticada contra a mulher, colecionados por sua esposa, parece representar isso: é como se lhe fosse dado adentrar, realmente, o terreno mais sombrio da mente de quem ele, psiquiatra, pretendia ajudar. Ali ele encontra um "arquivo" ancestral da maldade, que pode explicar os fatos estranhos que tem testemunhado. A metáfora usada aqui possibilita múltiplas leituras, mas pensar os arquivos físicos (fotos, reportagens, textos), encontrados no porão, como alusão aos próprios "arquivos" da mente, isto é, um legado da história humana  perpetrada no devir para acompanhar a experiência individual, é uma das mais interessantes.
 
O Anticristo de Trier é a natureza. Não se trata de puro ateísmo, isso seria muito simples, a mensagem é mais profunda: trata-se da natureza como o grande anticristo, e da vida como um todo, por seguir adiante e mostrar-se soberana. Por mostrar-se alheia e independente de qualquer fé e de qualquer teoria; por ser indiferente e desconectada de tudo que nele (Cristo) se prega; por seguir seu “não-rumo” seu ”não-sentido” à vontade, tranquila e inabalável, e sobretudo pela “impiedade” com que acontece, pela ausência de qualquer valor de solidariedade ou compaixão, não por ser má – isso é importante – apenas por não ser... nada. Nada do que fabulamos: nada de racional ou inteligível, nada de justo ou ordenado, nada de humano. Nós somos natureza, não estamos fora dela, somos parte dela - em toda sua frieza e indiferença. Nesse ambiente somos racionalidade e animalidade, somos contradição, somos caos... e assim não seria ousado pensar que somos nós o próprio anticristo. Eis a mensagem de Trier: o anticristo é a natureza e a natureza somos nós.

A cena final (veja o epílogo aqui) deixa claro o que Trier quis comunicar. Sua simbologia é simples e precisa: o personagem de Dafoe andando sem rumo pela mata, alimentando-se dos frutos  que encontrava e (re)vendo a sua frente os animais cuja morte ele presenciou é o que nos iguala (os humanos) aos animais -  padecendo em seu próprio ambiente, arranjando-se como pode, sem ninguém a recorrer. No fundo somos todos uma coisa só, uns sobreviventes, uns desamparados (e há também grande mérito nisso).

Pouco antes dessa cena, o corpo queimado que torna-se vários, reforça nossa impressão de unidade. Mas para além disso, o momento em que as várias mulheres reaparecem (as que povoariam a mente de Gainsburg, chamemos assim, no papel de arquétipos), aquelas que morreram gratuitamente ao longo da história, remetendo-nos aos arquivos terríveis encontrados pelo marido (seja no porão ou na mente de sua esposa) também é enigmático. Elas caminham sem rosto  sobre a mesma selva em que ela própria, a personagem de Gainsburg, fora queimada, representando assim o "grupo" na história humana que agora  Gainsburg passa a integrar, o das mulheres mortas, de algum modo violentadas e assassinadas. Elas surgem como viessem buscar Gainsburg e levá-la para a história, das sem-rosto, sem-dignidade. Gainsburg, que pesquisava esse trajeto histórico do horror, ela própria tornara-se mais uma vítima, mais uma mulher sem rosto, indistinta, mais um ser humano ceifado pela indignidade, mostrando mais uma vez a indiferenciação típica da natureza. Por outro lado, as mulheres sem rosto parecem dizer que estão em tudo, que tudo está em tudo, caracterizando-nos, desse modo, como "momentos" (tão ínfimos e tão importantes) da natureza. Da fria natureza. E Trier coloca isso de forma tão brutal quanto inquestionável...
Mas há aí uma perspectiva a nosso favor: se "o caos reina", como nos contou a raposa, em toda sua brutalidade e soberania, e ainda assim passamos ilesos, sobrevivendo por algumas décadas,  então já não somos qualquer coisa...



 
 
 
 

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