A exposição
individual do artista paulistano Hudinilson Junior acontece no
segundo andar do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São
Paulo - MAC/USP. Em cartaz desde 25 de janeiro de 2014, a mostra é
composta de 31 trabalhos, que foram doados pela família do artista,
falecido em agosto de 2013. Soma-se a eles mais 5 trabalhos que já
pertenciam ao acervo do museu. Esta mostra precede outras duas
importantes, sendo uma na galeria Jaqueline Martins, no mês de março
e outra em abril, no festival de Glasgow, o que mostra o conceito
elevado do artista na atualidade - instituições de peso como o
Museu Reina Sofia e o Tate Modern, vale mencionar, já disputam parte
de seu acervo.
Hudinilson
Junior nasceu em São Paulo no ano de 1957. Em 1975, inicia o curso
de artes plásticas na Fundação Armando Álvares Penteado, onde
permaneceu por dois anos e desenvolveu habilidades com várias
modalidades de expressão, como: pintura, grafite, xerografia e
performance.
Hudinilson
é considerado um artista multimídia e é tido como um dos pioneiros
no uso da “arte xerox” no Brasil, fazendo uso do corpo masculino
como tema principal. Em 1979 funda com Rafael França e Mario Ramiro
o grupo 3nós3,
que dedicava-se a intervenções urbanas na capital paulista, tendo
destaque “Ensacamento”, obra em que o grupo, numa noite de abril
de 1979, cobriu com sacos de lixo a cabeça de 69 esculturas e
monumentos públicos espalhados pela cidade, e que teve ampla
cobertura no jornal, embora “repleta de mal entendidos”.
Grupo
3nós3 – São Paulo, 1979
|
Participou
das Bienais de Havana (1ª.) em 1984 e de São Paulo (18ª.) em 1985,
além da 3ª. Bienal do Mercosul, no ano de 2001. No ano de 1982,
inicia a série Exercícios de Me
Ver, sua obra mais célebre e
que contribui substancialmente para a afirmação de sua poética,
consistindo na reprodução xerográfica de partes do próprio corpo,
que irá marcar fortemente o registro de sua arte, além de
tornarem-se referência na história da performance no país. O
artista, que já vinha enfrentando problemas com o alcoolismo nos
últimos anos, faleceu aos 56 anos de idade, em agosto de 2013.
O
tema da exposição, já evidente em seu título, é a figura
mitológica de Narciso, que, para um olhar atento, se revelará
presente de diferentes modos em vários dos trabalhos expostos. As
raízes dessa ideia estão na obra de André Gide, Tratado
de Narciso, obra que
supostamente era o livro de cabeceira do artista e na qual ele teria
buscado inspiração. O livro diz que Narciso buscava na lagoa, não
a própria imagem, mas uma forma ancestral que se perdera no paraíso
edênico. Contemplar não o satisfazia, mais do que isso, desejava
possuir a imagem e por isso beijava-a na superfície do lago,
percebendo, porém, que essa atitude destruía a imagem adorada.
Contudo, notava que a verdade permanecia, intacta, por trás da
forma. É à partir dessa reflexão, que se desenvolverá, no
interior do artista, percepções, imagens e, posteriormente, os
registros de vários de seus trabalhos.
Um
bom exemplo da materialização dessa inspiração que, podemos ver,
invade completamente o pensamento de Hudinilson é sua mala (obra: Um
paulista, paulistano, urbano, viajante,
de 2004), o primeiro objeto encontrado pelo visitante da exposição,
onde encontram-se os objetos mais importantes para o artista, tais
como: espelho, maço de cigarros, cópia de seu RG, sua própria
imagem, grafitada por ele mesmo, entre outros. Ali, Hudinilson parece
querer sintetizar as questões de personalidade e materialidade como
elementos que se complementam na experiência quotidiana. Além desta
obra, destacam-se outras que fazem certa alusão ao universo da
vaidade, da interação corpo e mente, da sexualidade também, mas
sobretudo analisando esse imbricamento entre materialidade e
existência, identidade e corporalidade.
Importa
observar que, para além de seu conteúdo homoerótico, que é óbvio
na obra do artista, Hudinilson acaba por referir-se a um universo
ainda mais profundo, introspectivo: à própria experiência de ter e
de ser um corpo. Exercícios de
Me Ver parece deixar isso bem
claro. Conforme analisa Tadeu Chiarelli, “A
exposição flagra como o seu interesse pelo corpo humano se
constitui, seja a partir dos autorretratos produzidos à mão livre,
seja por meio da colagem, em que o uso de imagens de corpos outros
sugere uma percepção do real como projeção do seu próprio
corpo”.
O
conjunto de sua obra nos comunica, de pronto, algo de universal: o
erotismo parece ser uma parte importante mas não a totalidade de
suas intenções, para além dele, o artista acaba nos transmitindo
algo sobre todo o prazer e também toda a angústia de possuir um
corpo físico, que vive e experimenta, mas que, também, perece e
morre. Assim, pode-se entender que sua obra não revela-se apenas um
trabalho excêntrico, mas essencialmente filosófico, como, aliás,
toda obra legitimamente artística deve ser, enquanto a arte puder
ser entendida como reflexo da interioridade.
Hudinilson
afigura-se como um típico artista da contemporaneidade,
caracterizado como tal por vários aspectos, entre os quais, podemos
destacar dois: a pluralidade de linguagens empregadas (fotografia,
intervenções, performances, xerografia) e o ato de nos
“ressensibilizar” sobre algo ao qual já não se presta a devida
atenção, isto é, algo que já sentimos de forma mecanicizada –
tratando-se, neste caso, do corpo, aquilo que nos liga ao mundo e que
nos permite desfrutar sua experiência. Essa intenção está bem
descrita por Regina Melim em sua obra Performance nas artes visuais:
“...objetivo expresso era inverter a percepção habitual do espaço
da cidade e da arte” (2004, p. 30). Embora este comentário
refira-se especificamente às intervenções realizadas na cidade
(pelo grupo 3nós3)
ele se aplica igualmente à figura do corpo e a “percepção
habitual” que dele se faz (idem).
Para
se conduzir uma análise da obra de Hudinilson, há, primeiramente,
uma dificuldade a ser superada: tratando-se de um artista multimídia,
nos vemos forçados a eleger uma das variadas formas de registro
empregadas em sua produção artística. Considerando a primazia que
recebe a auto-imagem, na obra desse artista, elegemos a fotografia,
para, assim, tentarmos traçar algumas análises, que de modo algum
tem a pretensão de esgotar as múltiplas possibilidades oferecidas
por essa, como por toda e qualquer obra de arte. Reconhecendo a
infinidade de interpretações possíveis a que se abre uma obra de
arte, o que faremos será apenas apontar para algumas delas.
No
texto “Identidades Virtuais – uma leitura do retrato fotográfico”
de Anna Teresa Fabris, reconhecemos a obra de Hudinilson em diversos
aspectos. O artista, ao fazer o uso sistemático do corpo masculino
e, não raro, de seu próprio corpo, parece problematizar a questão
da identidade, ao lado da auto-imagem. O processo de repetição e
reprodução, próprios da sociedade tecnológica, nos leva
frequentemente a pensar nossa subjetividade, dissolvida na multidão.
Os exemplos a que Fabris recorre, na obra de outros artistas, cuja
estética se vale, também, do recurso fotográfico, como Alex
Flemming e Rosângela Rennó, se aplica à produção de Hudinilson.
Seus corpos aparecem, com frequência, sem cabeça, querendo nos
provocar ao nos levar a refletir sobre o “aniquilamento de toda
singularidade” diante das multiplicidades (FABRIS, p. 120). A
fotografia, de modo geral, nos faz refletir sobre essa ambiguidade de
seu resultado: se se trata de mostrar a diferença ou antes a
semelhança. Fabris já nos aponta a questão ao mencionar que esses
dois significados de identidade, a diferença como a semelhança,
são, possivelmente, visualizados na obra de Cristina Guerra, outra
artista contemporânea que faz uso do registro fotográfico na
realização de sua poética.
Se a
fotografia de indivíduos pode ser considerada a visualização de
“uma paisagem social sobrecarregada de signos” (FABRIS, p. 124),
no trabalho de Hudinilson há muito que se interpretar: suas
fotografias dão conta de nos comunicar toda a carga de sentimentos,
de paixão e de desejo, de aflições e anseios, de aspirações e
medos, assim como, toda a brutalidade e animalidade e também toda a
singeleza e delicadeza que habitam um corpo.
Nas
obras xerográficas e fotográficas de Hudinilson, o que ali está
estampado poderia ser chamado de “pedaços de humanidade”, o
corpo e cada parte que o integra está repleto de subjetividades, mas
também de universalidades, as quais o espectador imediatamente
reconhece e se identifica. É essa a mensagem do artista: ao nos
mostrar nossa própria materialidade, combinada com toda nossa
humanidade, o artista nos revela também nossa indiferenciação.
Nossas particularidades mostram-se, na verdade, generalidades, no
sentido de que são vivenciadas por todos os mortais – nossos
prazeres e aflições, de fato, são universais. É como se a
fotografia nos chamasse a atenção para isso: somos tão
particulares e tão universais; tão anônimos e ao mesmo tempo tão
“conhecidos”.
Dessa
forma, com sua obra fotográfica, o artista nos evoca, de certo modo,
uma crise de subjetividade. A concepção serial da imagem faz isso:
opera um processo de despersonalização. Por outro lado, é na
fotografia que a efemeridade se converte em eternidade (é memória
que persiste); a unicidade se multiplica ao infinito, percorre tempos
e espaços, garantindo seu lugar na memória que reafirma aquele
corpo indefinidamente.
Nessa
trama, evocada pela imagem fotográfica, o corpo ainda é o “lugar”
onde o sujeito guarda seus sonhos, seus mitos, suas aspirações. O
artista mostra sua capacidade poética ao construir um trabalho que
aproveita as duas possibilidades ofertadas pela fotografia, mas,
sobretudo, fazendo prevalecer o seu lado mais positivo: de eternizar
a imagem que se quer afirmar.
A
exposição de Hudinilson traz ao visitante a possibilidade de
descobrir muito mais e a instituição acolhedora considera,
inclusive, que essa exposição vá contribuir, nas palavras da
curadoria, para “uma revisão
urgente e necessária dessa obra tão complexa e intrigante”,
que merece ser conferida.