Em sua obra Escritos
sobre Arte, C. Baudelaire
declara, com suas críticas, o que serão as premissas de uma arte
moderna, uma arte do presente. Com aguçada visão dos signos e uma
valorização inovadora da vida trivial, o poeta e crítico tecerá o
mote da estética modernista. Crítico
dos assuntos centrados em conteúdos históricos, religiosos e
clássicos (greco-romanos), C. Baudelaire valoriza o tema do
presente, como “história em ação”. Em Escritos
sobre Arte, o
autor destaca
o caricaturista como figura importante, por ter uma natureza mista:
observador, flâneur,
filósofo, mas sobretudo por sua liberdade de execução. Observando
o caráter comunicativo dos desenhos, ilustrações e caricaturas,
Baudelaire ressalta a capacidade que tem a caricatura de atingir a
massa de “maneira imediata” e valoriza o
humor
como uma forma importante de “relação crítica entre o público e
a obra” (obra como possibilitadora
de identidade crítica do observador). Isso já denota de que modo o
autor
busca subverter o conceito clássico de beleza, presente desde os
primórdios da história da arte, para a valorização do
tempo presente.
Em
seu primeiro capítulo, Da
Essência do Riso e, de um modo geral, do cômico nas artes
plásticas, o
poeta tece sua análise, acerca da caricatura, tendo como “pano de
fundo” as especificidades do humor. Ele anuncia ao início seu
intuito: desenvolver um artigo (a respeito da caricatura) “ao mesmo
tempo de filósofo e de artista”. O pensamento sobre a caricatura
é, para o autor, digno de nota por mostrar-se uma “história de
fatos”, “uma imensa galeria anedótica”. Assim, afirma
Baudelaire, ela merece, como arte, “tomar lugar nos arquivos
nacionais” e nos “registros biográficos do pensamento humano”
(1991: 26); a caricatura contém um elemento “misterioso, durável
e eterno”, representando ao homem “sua própria feiura moral e
física!” (idem). E
à partir da observação sobre as qualidades e o valor da
caricatura, C. Baudelaire desenvolve uma reflexão a respeito do
riso, ironizando, sobretudo, a má concepção que se faz do riso no
pensamento cristão. Referindo-se à máxima “O sábio só ri ao
tremer”, ele diz que “o sábio teme o riso assim como teme os
espetáculos mundanos, a concupiscência” (1991: 28), o riso
implica, assim, certa “ignorância e fraqueza”. O riso e as
lágrimas seriam “no paraíso”, critica o autor, “os filhos da
aflição”, mas é com as lágrimas, pondera o autor, que o homem
“lava” suas aflições, assim como com o riso ele “suaviza seu
coração”. (1991: 29). O autor relembra que o riso,
dizem, vem da ideia de superioridade
-
“uma perfeita ideia satânica! orgulho e aberração!”; revela-se
numa espécie de “convulsão nervosa, um espasmo involuntário […]
causado pela desgraça alheia” (1991: 32), de modo que há, no
fundo do pensamento daquele que ri um “certo orgulho inconsciente”.
Assim, teoriza o poeta, o riso é tão “satânico” quanto
“profundamente humano”, é a “consequência da ideia de
superioridade”. E como é profundamente humano, atenta, é
“essencialmente contraditório”, quer dizer, ao mesmo tempo sinal
de uma “grandeza infinita e de uma miséria infinita”. É desse
choque, diz o autor, que se libera o riso. (1991: 34).
Mas
o que quer C. Baudelaire, com o elogio do riso, se não “autorizar”
o desprendimento das convenções e sua seriedade? Essa é a ideia
que não se deve perder de vista ao tentar compreender as motivações
deste crítico. A admiração que ele declara ter pela obra do pintor
espanhol Francisco de Goya (1746-1828), ou pelos desvarios pintados
por Brueghel, O
Velho (c.
1525-1569),
por exemplo, já consistia em uma “semente” que floresceria na
mentalidade da arte moderna.
No
capítulo em questão, embora o autor faça a crítica da obra de
cinco artistas que se inserem em diferentes períodos e nações,
ganham destaque especial os dois caricaturistas “estrangeiros”
supracitados; o primeiro por ter introduzido um elemento “muito
raro” no cômico, diz Baudelaire. F. Goya teria realizado o cômico
“feroz”, sendo que o aspecto geral sob o qual vê as coisas é,
sobretudo, o “fantástico” (1991: 58). Baudelaire
refere-se à série “Os
Caprichos”,
como uma obra valiosa de Goya, onde o artista teria unido “graça,
jovialidade e espírito moderno”. Aprecia-o pelo “amor ao
inapreensível”, pelos “contrastes violentos” e pelas
fisionomias humanas “estranhamente animalizadas” pelas
circunstâncias (1991: 59). O autor chama atenção para as
contorções, para os “rostos bestiais” e as “caretas
diabólicas penetradas de humanidade” - uma arte que se mostrava ao
mesmo tempo “transcendente e natural” (1991: 61), como podemos
observar nas imagens abaixo:
“Os
duendezinhos” –
(Capricho 40)
“Você que não pode” – (Capricho
42)
Nas
caricaturas de Goya, fica evidente uma crítica ao estado atual das
coisas, a primeira fazendo uma alusão ao clero e sua mão grande; a
segunda às camadas menos privilegiadas, levando nas costas,
literalmente, o peso da “ignorância” (na figura de um burro) dos
exploradores. Esse tom, de realismo e de questões presentes, embora
encobertos sob a forma da caricatura e do “fantástico”, é o que
teria suscitado a admiração de Baudelaire.
Em
Brueghel, O
Velho, Baudelaire
diz encontrar, em
suas alegorias, quase indecifráveis, “o mistério, o diabólico e
o divertido, a loucura e a alucinação”. Ele se admira: “como
uma inteligência humana pôde conter tantas diabruras e maravilhas,
engendrar e descrever tantos absurdos assustadores?”
Sua
obra seria uma “prova”, segundo o autor, “do imenso poder dos
contágios e do envenenamento pela atmosfera moral” (1991: 67).
Aqui o poeta reforça mais uma vez o elogio do tempo presente, sejam
os “envenenamentos”, sejam as “inspirações”, como foi em
Constantin Guys (comentado a seguir), a tônica, segundo Baudelaire,
deve ser o que se está vivendo, a valorização do presente, não
mais do passado. No campo da caricatura, é a ousadia dos artistas o
que fascina Baudelaire; a ousadia de se fazer uma arte que não se
submeta, necessariamente, a premissas acadêmicas, a convenções
arbitrárias. Essa é a ideia libertária, basilar para a arte
moderna, que o crítico disseminará em seu tempo.
P. Bruegel. O Triunfo da morte, 1562. Museu do Prado, Madrid
Artista
ainda mais elogiado por Baudelaire é o romântico E. Delacroix
(1798-1863). Em uma Carta enviada ao redator de L'Opinion
Nationale, o
poeta constrói uma crítica positiva a respeito de suas obras que,
para Baudelaire, teriam representado, com perfeição, “um dos
diagnósticos do estado espiritual” daquele século XIX. Teria sido
o mais sugestivo dos pintores e o que mais fez pensar, segundo o
autor, ao exprimir, o “gesto do homem” (com o contorno) e a
“atmosfera do drama humano” (com a cor). Sua obra teria
exprimido, assim, o próprio “estado da alma do criador”. Eis o
que o Baudelaire valoriza.
Somado
a isso, a imaginação do artista teria sido seu dom mais precioso,
além da habilidade rápida de representar o que havia imaginado.
Para Baudelaire, aqueles que não têm imaginação apenas copiam seu
“dicionário” (entendendo por dicionário o universo, como um
“depósito de imagens e sinais aos quais a imaginação dará um
lugar e um valor relativo”), o que resulta em um “vício banal”;
nesse sentido, o autor aponta a pintura dita de gênero e a paisagem
como inspiração aos “espíritos preguiçosos e dificilmente
excitáveis”. Ao contrário, o pintor que “obedece à
imaginação”, diz o poeta, procura em seu [próprio] “dicionário”
os elementos de que precisa e
“ilumina
as coisas” com seu próprio espírito (1991: 94).
O
segundo momento da crítica baudelairiana que exercerá papel
importante na constituição da chamada Modernidade (termo cunhado
pelo próprio Baudelaire), é a obra O
Pintor da Vida Moderna. A
ideia central pode ser resumida no fato de que, para o crítico, nem
tudo está em Rafael ou Racine e a necessidade de valorizar a
“beleza particular, a beleza de circunstância e a pintura de
costumes”, e mesmo os
chamados “artistas menores” - não apenas os clássicos - nunca
foi tão latente.
O
Contexto
é a Paris moderna, fluída, cercada pelas inovações tecnológicas
e permeada pelas Reformas de Haussmann (1852-1870). Os
recém-construídos Boulevards,
são definidores de novas bases econômicas, sociais e estéticas: a
iluminação das ruas possibilita a boemia, a vida nos cafés, nos
teatros, nos cabarés. Há ainda outros estímulos profícuos nos
tempos de Baudelaire: os anais da guerra, As pompas e solenidades, as
figuras do militar, do dândi,
da mulher, da cortesã, a maquiagem e a moda, os veículos, a figura
do flâneur,
representada
pelo próprio Baudelaire, entre outros.
Na
visão de Baudelaire, um tal cenário
deveria bastar-se por si só. A modernidade que se testemunhava
conteria elementos bastantes, sobre os quais poderiam nascer as
obras, sem ter que recorrer a elementos do passado, elementos
clássicos. A modernidade artística deveria ser regida, pois, pelos
seus próprios elementos, isto é, pelo elogio ou pelo registro do
transitório,
do efêmero, do contingente. Essa imagem desembocará na ideia de que
metade
da arte seria composta disso - do efêmero – mas a outra metade do
imutável, do eterno. O artista moderno deveria extrair uma coisa da
outra: o eterno do transitório.
(“Tirar
da moda o que pode conter de poético no histórico”; “Extrair o
eterno do transitório” ) (1997:
14).
Baudelaire
inicia sua crítica referindo-se às obras que se vê nas exposições,
cujas indumentárias e outros detalhes são os da Renascença ou da
Idade Média, “por preguiça”. Critica, assim, os passadistas,
que não se desprendem dos cenários tradicionais de outros séculos
(paisagens, costumes, vestimentas, mobília). Deste modo, embora o
poeta reconheça que o passado constitua um valor monumental, ele
atenta que é preciso voltar os olhos para a pintura de
costumes do presente,
não somente pela beleza que ela pode ter, mas pela sua “qualidade
essencial de presente” e ressalta: “o que me apraz encontrar
(...) é a moral
e a estética da época” (idem). Baudelaire comenta ainda a
transitoriedade das coisas na vida ordinária (a “metamorfose
incessante das coisas exteriores”) como um movimento que exige do
artista um ritmo semelhante, que o acompanhe. Assim, o artista
moderno tem o mérito de pintar não as coisas eternas e heróicas
(como o clássico), mas por ser um poeta, aproximando-se do
romancista ou do moralista; seria o “o pintor do circunstancial e
de tudo que este sugere de eterno”.
Ele
seria, portanto, o “homem do mundo, homem das multidões”. Para
ilustrar o que pretende dizer, Baudelaire destaca o incógnito C.G
(posteriormente revelado como Constantin Guys) como exemplo, como o
artista “enamorado pela multidão”, cosmopolita, aquele que
assina suas obras “com sua alma”, em oposição ao simples
artista, que seria um “especialista, subordinado à sua palheta,
como um servo à gleba”, em geral um “bruto”, um “simples
artesão” (1997: 10). Baudealire elogia-o, sobretudo, por se impor
a tarefa de “buscar e explicar a beleza
na [própria]
Modernidade”
(1997: 23).
Baudelaire
discorre
ainda, em sua obra, sobre as características de um Dândi,
ao classificar como tal o pintor C.G. (“aquele que tem a
compreensão sutil de todo o mecanismo moral deste mundo”): o dândi
seria “sincero sem ser ridículo”, um “puro moralista
pitoresco”. Seu lugar é na multidão, é um flaneur,
um observador apaixonado, vive no movimento, no fugidio e no
infinito, “faz do mundo a sua família” e “frui por toda parte
o fato de estar incógnito”; lamenta, ao acordar e ver a luz do
dia, as coisas iluminadas que deixou de ver por causa de seu sono;
admira “a
beleza da vida nas capitais” (1997: 13). Assim, Baudelaire decreta:
a “Pompa da vida” (“como ela se oferece nas capitais do mundo
civilizado”) seria, pois, o tema favorito do artista moderno: “a
vida elegante, a vida galante, os desejos profundos, o amor e o jogo,
as festas […] elementos de felicidade e infortúnio” (1997: 17).
Deux
grisettes et deux soldats. C. Guys
Há
que se notar, no poeta, certa consciência de historicidade, da
importância que ela guarda. A recomendação de se utilizar
nas pinturas os costumes presentes, tal qual fizeram os artistas
antigos, justifica-se, em Baudelaire, não simplesmente pela
necessidade de se “compreender o caráter da beleza atual”, que
ele tanto afirma, mas sobretudo pelo desejo de que a Modernidade seja
um dia, como ele menciona, “digna de tornar-se Antiguidade”
(1997: 18).
Nesse
sentido, Baudelaire revela sensibilidade aguçada ao reconhecer que
cada época tem seu valor; tem “seu olhar” e “seu gesto”
particulares, e que seria um erro negligenciá-los em prol de se
imitar, eternamente, os clássicos (1997: 15). É o que se destaca,
segundo o autor, em C.G, cujas obras poderiam, dentro de alguns anos,
ser “arquivos preciosos da vida civilizada”. Baudelaire encerra
seu texto destacando C.G, como outros artistas que considera
excelentes (Debucourt, Moreau, Devéria e outros) que, por terem
pintado “somente o familiar e o belo” teriam se tornado, por
consequência, “sérios historiadores”. CG teria buscado, como
esses, “a beleza passageira e fugaz da vida presente”, que seria
a própria Modernidade (1997: 24).
Para
M. Berman, estudioso da Modernidade, Baudelaire teria determinado,
com seus ensaios (Heroismo
da Vida Moderna
e O
pintor da vida moderna),
“a ordem do dia para um século inteiro de arte e pensamento”
(1990: 129), e fez isso especialmente por ter compreendido um dos
mais importantes “paradoxos da modernidade” ao dizer: “seus
poetas se tornarão mais profunda e autenticamente poéticos quanto
mais se tornarem homens comuns” (idem).
Com
efeito, se observarmos a estética impressionista, que nasce ainda na
década de 1860, última em que vive C. Baudelaire, notaremos
fortemente a presença dos elementos tão recomendados pelo poeta,
legitimando que sua crítica mostrou-se, de fato, uma espécie de
“receituário”, se assim pudermos chamar, fundamental para a arte
que nascia nos anos que sucediam os ensaios baudelairianos (note-se como exemplo a pintura de Renoir, abaixo). As obras
que ficaram efetivamente imprimiram na história, como queria
Baudelaire, a marca da Modernidade; perpetraram no eterno, o registro
do fugidio, do trivial e do circunstancial; conquistaram admiradores,
seguidores e revolucionadores, sobretudo, abriram caminhos para a
liberdade radical da arte moderna e também contemporânea.
Le Pont Neuf, (1872). P. August Renoir. National Gallery of art, Washington, USA