Neste
capítulo da obra Civilizing
rituals inside public art museums,
de Carol Duncan, podemos extrair elementos de duas reflexões
conjuntas que pretende legitimar a ideia de que há uma atividade ou
uma aura ritualística nos ambientes dos museus públicos de arte.
São duas as preocupações básicas da autora no capítulo
examinado: em primeiro lugar, discorrer sobre as caracteristicas
gerais de ritual, relacionando-as a aspectos dos museus de arte e
analisar de que modo as instalações desses museus produzem uma
espécie de cenário no qual os visitantes acabam por desempenhar,
segundo Duncan, uma performance; em segundo lugar, aproximar-se das
origens e do conceito ocidental de “experiência estética”.
Dessa reflexão, a autora procura articular a ideia de que os museus
públicos de arte projetam
Duncan
não se refere aqui a nenhum museu de arte específicamente, mas a
instituição de forma genérica, para que se possa estabelecer
pontos de aproximação entre elas e os rituais.
O
caráter de ritual dos museus de arte, ressalta a autora, não é uma
descoberta do ambiente acadêmico. Tal característica não só é
reconhecida nesses museus desde que eles existem, como também é
assumida, com frequência, como o propósito de um museu de arte.
Desde
o século XVIII até século XX, essas instituições sempre foram
comparadas aos espaços cerimoniais e eram, com efeito, projetadas
com esse objetivo, de assemelhar-se aos templos gregos e palácios
renascentistas. Exposto isso, Duncan questiona se os museus de arte
teriam imitado esses templos antigos com o simples intuito de seguir
“o balanço formal e a dignidade dessas estruturas” ou se, antes,
esse ato engendraria a tentativa de associar todo o poder das crenças
antigas ao culto presente da arte. De todo modo, ressalta a autora, é
evidente que, no contexto atual (de nossa cultura pós-iluminista),
esses “templos” que abrigam as coleções públicas de arte só
podem referir-se a valores seculares. “Seus portais”, ela
acrescenta, “só podem levar a atividades racionais, e não ritos
sagrados” (DUNCAN, 1995: 7). No entanto, a autora nos propõe
algumas razões, bastante pertinentes, pelas quais os museus poderiam
mostrar-se interessados em reservar para si toda a pompa e
credibilidade dos espaços de rituais.
Somado
a isso, o movimento realizado por Duncan será o de trazer à
discussão algumas questões que sugerem a possibilidade de que um
esvaziamento dos rituais (no sentido religioso), decorrente de uma
razão cada vez mais predominante na cultura secular, tenha implicado
uma demanda por um novo tipo de ritual, isto é, tenha aberto espaço
a um novo tipo de experiência que, tal qual o rito, permite a
iluminação, a elevação do espírito e a revelação e por isso
apresenta-se, de certa forma, sob o manto do sagrado: trata-se da
“experiência estética”.
O
RELIGIOSO E O SECULAR
Nossa
cultura pode ser entendida como uma cultura do pós-iluminismo, uma
cultura herdeira dos valores pregados pelo movimento cultural
ocorrido ao longo do século XVIII e capitaneada por uma elite
europeia que, querendo-se livre e emancipada das autoridades
tradicionais, apoia, entre outras coisas, a ruptura com a Igreja,
isto é, a cisão entre vida secular e vida religiosa. A partir disso
o mundo fica dividido entre “religioso” e “secular” e essa
dicotomia, afirma Duncan, estruturá o mundo público moderno.
Podemos pensar, de início, onde entram os museus nesse contexto. Com
o predomínio de uma “verdade secular” (racional, objetiva e
verificável), pode-se imaginar uma espécie de vácuo, se assim
pudermos chamar, na esfera espiritual. Embora o ritual (tradicional)
seja associado às práticas religiosas (crença, magia, sacrifícios
e milagres) o pano de fundo por trás disso apresenta certa
maleabilidade: trata-se de um desejo de transformação, uma
experiência que ilumine, que transcenda, que traga revelações,
senão religiosas, sobre o próprio mundo exterior ou mesmo o
“interior”.
Se
pensarmos, propõe Duncan, que nas sociedades tradicionais os rituais
podem ser pouco ou quase nada “espetaculares”, isto é,
apresentam-se como simples “momentos de contemplação ou
reconhecimento”, então, desse ponto de vista, nossa cultura
“supostamente secular” e “anti-ritualística” mostra-se
permeada de eventos ritualísticos, embora a maioria deles, de fato,
não apresenta relação
com o universo religioso. Com isso, Duncan pontua que, embora vivamos
tempos em que a razão seja a nova deidade, um teor ritualístico
insiste em aparecer, ainda que “disfarçado” (disguised),
diz a autora, nas cerimônias seculares (DUNCAN, 1995: 8). Em outras
palavras, o fetiche ou a veneração que dispensamos a certas obras
de arte é, por vezes, comparável à adoração que um religioso
dispensa à
sua
deidade.
AS CERIMÔNIAS
SECULARES
Como
em outras culturas, observa Duncan, nós também construímos espaços
que representam crenças acerca da “ordem do mundo” (seu passado
e seu presente) e o lugar que os indivíduos nele ocupam. Os museus
são grandes exemplos disso: trata-se de um universo criado,
planejado, permeado de simbolismos, onde os visitantes recebem guias
que os auxiliam sobre como percorrer o espaço e também de como se
comportar nos recintos, como pode ser visto na imagem que a autora
disponibiliza em seu texto (em inglês, no original):
Soma-se
a isso as fachadas suntuosas que, inspiradas nos templos gregos e
romanos, proferem seu “discurso secular sobre beleza
arquitetônica, decoro e forma racional”, mostrando-se em acordo
com os valores Iluministas. Trazem, ainda, em seu interior os
“espaços de ritual público”: os longos corredores que terminam
em escadarias monumentais (remetendo-nos, conforme a autora, a
verdadeiras peregrinações), salas especiais para assembleias e
santuários que abrigam monumentos e efígies. São
reservados,
como
a maioria dos espaços de rituais,
para uma qualidade especial de atenção (contemplação/
conhecimento) e são
instalados,
geralmente, em parques ou grandes áreas verdes, são erigidos com
distância considerável de outras estruturas e quase sempre acima do
nível da rua (com seus lances de escadas já na portaria); possuem
portas centrais suntuosas e, por vezes, são “guardados” por
pares de leões na entrada, às vezes adornada com fontes e estátuas
que teriam, vale mencionar, a função de preparar mentalmente os
visitantes para as obras de arte que verão em seguida ou para o tipo
especial de atenção que elas demandam (ver Fig. 3 e 4). Deste modo,
Duncan
observa que os museus nos remetem aos espaços antigos de rituais,
menos pela referência arquitetônica, do que pelos próprios
cenários (settings)
de
rituais
de que dispõem, e o preparo que eles inspiram (DUNCAN, 1995: 10).
A PERFORMANCE
Além
de todo o cenário que compõe os museus públicos de arte, Duncan
nota ainda que há o elemento performático na constituição dos
“museus-rituais”, se assim pudemos chamar. Ritual também envolve
performance e o cenário descrito acima é, ele próprio, um campo de
performance, segundo a autora.
Embora
muitos possam não perceber, é o visitate que realiza o ritual. Há
uma rota pensada na construção desses espaços que força um
trajeto determinado
e
que põe em vigor a participação desejada, de
modo que esses
museus apresentam a característica de ritual não apenas pelo tipo
de atenção que ele traz ao recinto, mas também pela atuação do
visitante, que é guiada pela própria estrutura. Assim, como
“repetindo uma prece” ou “rememorando uma narrativa”, no
museu de arte, o visitante realiza a performance seguindo o
itinerário “pelos espaços sequenciados e pela disposição dos
objetos, pela iluminação e pelos detalhes arquitetônicos”
atuando, dessa forma, em favor e completando o ritual. Uma analogia
interessante é construída pela autora, comparando esse “itinerário”
do
museu
ao dos peregrinos religiosos nas catedrais da idade média, em que
havia uma rota narrativa estruturada no interior da capela, com
paradas indicadas como lugares próprios para se orar ou contemplar –
em ambos os casos, observa Duncan, o visitante/peregrino são como
que convidados a reviver uma “história sagrada” (ver Fig. 5),
assim como são eles que “põem em vigor [enact]
o ritual do museu” (DUNCAN, 1995: pp 12-13).
Mas
é preciso pensar o que estaria por trás disso, ou que interesses
guardam os museus, nesse sentido? E essas questões suscitam uma
pergunta fundamental: qual é a história que o museu quer contar à
sua comunidade e ao mundo?
Para
Duncan, há uma força ideológica que rege a experiência cultural
que, embora reivindique para si o status de objetividade/secular,
mostra-se revestida (tem essa aura) de ritual.
O
poder do museu é o poder de representação, isto é, de representar
sua comunidade, sua história, seus “valores e verdades”,
consequentemente, tem o poder de definir, inclusive, a posição dos
indivíduos dentro da comunidade. Aquilo que vemos, bem como aquilo
que não vemos nos museus, lembra a autora, “definem” quem
constitui a comunidade e quem molda sua identidade (DUNCAN, 1995).
Não
é difícil compreender que essas narrativas têm a força necessária
para construir imaginários, “conquistar” e perpetrar versões,
as mais variadas e convenientes, acerca de uma história particular.
Pensando brevemente, de forma superficial, dado que uma análise mais
aprofundada seria objeto de outras reflexões e não caberia aqui,
podemos imaginar que a narrativa que circunda as coleções podem
transmitir informações de grande interesse social, político,
econômico, histórico; podem, por exemplo, suscitar questões como
“qual é a nossa história?”; “que papel/importância
desempenhamos na história do ocidente?” “somos colonizadores/
somos colonizados?” e assim por diante.
TRANSFORMAÇÃO
ESPIRITUAL
Para
além dos interesse de ordem política das instituições, também
constitui parte importante na esfera dos museus de arte, uma noção
que é compartilhada por historiadores da arte, críticos e
curadores, a saber: a transformação espiritual.
Duncan
explica que uma experiência ritual tem um propósito definido e é
vista como transformadora: “confere (ou renova) identidade e
purifica a ordem do self
ou
do mundo, por meio do sacrifício, provações ou iluminações
(enlightenment)”.
Assim, pode-se
afirmar
que os benefícios reivindicados pelo ritual (religioso) seriam os
mesmos esperados
pela experiência do museu de arte. Os visitantes do museu de arte
deixam a instituição com o mesmo senso de transformação
(sentindo-se “espiritualmente alimentados ou restabelecidos”)
(DUNCAN, 1995: 13).
“A
única razão para reunir obras de arte em um local público é que
[…] eles produzam em nós um tipo de felicidade exaltada […] por
um momento há luz na selva; seguimos restituídos […] com uma
memória do céu” .
(Kenneth
Clark, escritor
e historiador britânico)
Exposto
isso, importa resgatar o conceito que a autora utiliza para amparar
esse momento de sua reflexão. Trata-se do conceito de liminalidade
(liminality).
Criado pelo teórico belga Arnold van Gennep e desenvolvido pelo
antropólogo escocês Victor Turner, este conceito está associado ao
ritual e indica “modo de consciência” ou um “tipo de atenção”
que se leva a um museu de arte. Posteriormente a autora aproximará o
termo original “liminal
experience”
ao conceito de “experiência estética”, desenvolvida por
filósofos do século XVIII.
A
tradução para liminal
não
é muito precisa, seria
algo como um “intermediário” ou “fronteira” (algo que separa
dois espaços), sinônimos interessantes são ”breaking point”,
“border” ou ainda “deadline”. Trata-se, de qualquer forma, de
um modo de receptividade para obras de arte: que suspende
temporariamente as regras de comportamento social (“turn
the world upside-down”)
e permite um distanciamento de preocupações triviais e questões
práticas da vida diária, propiciando um “olhar para dentro” com
“pensamentos e sentimentos diferentes”. Esse modo de
receptividade pode ser encontrado, segundo Turner, em atividades como
assistir a um espetáculo no teatro, ver um filme, visitar uma mostra
de arte, entre outros.
O
valor encontrado por Duncan na teoria do antropólogo justifica-se
pela contribuição com sua própria teoria (de Duncan) por oferecer
um conceito “geral”, mas “sofisticado”, conforme a autora,
acerca de “ritual” e que nos permite pensar, em termos práticos,
o que ocorre nos museus de arte.
O
texto é abundante em citações de pensadores que deram sua
contribuição a respeito dos museus de arte enquanto um espaço de
“experiência liminal” ou como algo “transcendente”, que “sai
do tempo” e “move-se para além da existência mundana”, entre
eles, podemos selecionar duas passagens que, pressupõe-se, resumem
satisfatoriamente o que Duncan procurou transmitir:
Germain
Bazin (curador do M. Louvre) escreveu que um museu de arte é “um
templo onde o tempo parece suspenso”, em que o visitante entra na
expectativa de encontrar “uma daquelas epifanias culturais” que
os dá “a ilusão de conhecer intuitivamente sua essência e sua
força”. (Apud
Duncan, 1995: 11)
Goran
Schildt
(escritor
sueco) escreveu que museus são lugares em que procuramos um estado
de “desapego” e “contemplação atemporal” que ”nos
assegura um tipo de libertação das batalhas da vida”. Sobre o
século XIX, observa um “elemento religioso, a substituir a
religião”. (Apud
Duncan, 1995: 11)
Esses
e outros autores estão descrevendo, com outras palavras, a
experiência liminal de que fala Turner.
Essas,
entre outras, reflexões apresentadas por Duncan, nos permitem pensar
acerca de uma “tendência geral” de se fornecer ao momento
secular os “novos valores”. No século XVIII já se fala em um
“poder transformador” dos objetos de arte, entre os filósofos e
críticos da época, sobretudo no idealismo alemão (Hegel, Schiller
e outros), mas já antes deles, Kant, Hume e Rousseau exploraram esse
campo do pensamento. Nesse sentido, a fundação da Estética
enquanto uma disciplina filosófica apresenta certa curiosidade, aos
olhos de Duncan. Ocorre que a invenção da estética pode ser
pensada como algo a repôr, segundo
a autora, os valores espirituais do reino sagrado (já abandonados
ou, ao menos, preteridos), no tempo e espaço seculares, como se
houvesse uma necessidade de se preencher aquela espécie de vácuo,
comentado anteriormente, que ficara no campo espiritual. Assim, como
se dessem uma fórmula filosófica à “condição de liminalidade”,
os estetas elaboram o novo espaço (a fronteira, a transcendência ou
a “suspensão do mundo”) para a revelação e a transformação:
trata-se da “experiência estética”.
Nesse
sentido, Goethe, em 1768, após sua primeira visita à Galeria
Dresden, deixou suas impressões acerca do “poderoso efeito
ritualístico” que sentira naquele ambiente, dando ênfase ao
“profundo silêncio que reinava” no recinto, causando uma
“impressão única e solene, semelhante à emoção experimentada
em uma igreja” (“House
of God”).
Ainda,
Wilhelm Wackenroder (escritor alemão) visitando
galerias de arte em
1797, declarou que o ato de contemplar objetos de arte teria o poder
de remover um indivíduo do “vulgar fluxo da vida” e “produzir
um efeito comparável, senão melhor, ao êxtase religioso”.
(Apud,
DUNCAN, 1995: 14-15).
Esses
e outros testemunhos nos permitem sentir o clima acerca das coleções
públicas de arte e a função atribuída a ela – um retorno da
aura sagrada que possuem os rituais, distanciados pela dicotomia
taxativa “religioso versus
secular”. Como uma demanda intrínseca a alma, captamos, ao lado de
questões mais práticas (como os interesses políticos das
instituições), o significado do elemento ritualístico ou
sacralizante identificado por Duncan nos museus públicos de arte.
Embora o texto pareça levantar as questões mais práticas
embricadas à questão, acaba por fazer emergir, também, a noções
materiais, questões mais abstratas, sutis, que nos lançam a
outras facetas de uma mesma questão.
MUSEU
ESTÉTICO E CONTEMPORANEIDADE
Duncan
encerra o capítulo recuperando uma rápida cronologia dos museus
desde fins do século XVIII, onde esses espaços eram frequentados
por uma minoria educada (poetas e artistas), passando pelo século
XIX, onde se constata um público crescente nos museus e a ideia de
galerias de arte como um lugar de “transformação” ganha lugar
cada vez maior e chegando ao século XX, onde surge um novo conceito
de museu, em oposição ao (tradicional) museu histórico: o “museu
estético”. Diferentemente do primeiro, que assumia como sua
responsabilidade a formação e aprimoramento (moral, social e
político) de sua comunidade, o museu estético assume como função
apresentar obras de arte apenas como tais, i.e, por aquilo que elas
são: objetos de contemplação estética e não ilustrações de um
fato histórico ou arqueológico. Esse novo conceito é elaborado por
membros conectados ao Boston Museum of Fine Arts, especificamente a
doutrina do museu estético é proposta por Benjamin Ives Gilman,
para quem as obras de arte uma vez expostas em museus, existem para
um único propósito: serem vistas como “objetos de beleza”.
À
partir disso, o formato das exposições contemporâneas já podem
ser compreendidos: o isolamento das obras, os longos espaços vazios
de parede entre uma obra e outra, a iluminação exclusiva nas obras
de arte, a parede exclusiva refletem a ideia proposta. As obras falam
por si e não se apresentam em relação a nada. É a figura fiel do
que se projetou como o “anti-museu-histórico”; a contemplação
é meramente estética e pressupõe a mesma sacralização do espaço
e a mesma experiência do espectador (espiritual, transcendental, de
libertação e suspensão do mundo vulgar...). Assim são as
instalações modernas – ainda denotam um espaço ritual (o museu
como templo) e propõem uma “jornada mental”, contudo,
diferentemente dos museus históricos, essa jornada não é (ao menos
não parece) definida, datada, enfim, direcionada.
O
resultado, entre outras coisas, é que o visitante do museu
contemporâneo, explica a autora, é “obcecado pela forma e pela
fatura”, não se interessa mais por “significados iconográficos
ou pela harmonia global” (ver Fig. 6 e 7), que atraía o visitante
do século XIX.