O polêmico Lolita,
de Vladimir Nabokov, é publicado em inglês, no ano de 1955.
Considerado escandaloso, foi rejeitado por diversas editoras até ser
finalmente publicado, não obstante, foi o mais importante romance
escrito pelo autor.
A história é narrada em primeira
pessoa, pelo próprio protagonista, o professor de literatura
francesa Humbert Humbert, que se apaixona por sua enteada de doze
anos, Dolores Haze, a quem apelida, secretamente, de Lolita, e que
será sua própria ruína. O professor, que se encontra na idade de
37 anos, define-se a si próprio, já no início da trama, como um
pervertido intratável, mas não sem investir em uma justificativa:
um romance traumático vivido justamente em sua pré-adolescência
teria sido a causa de seus “desvios” amorosos.
A morte súbita de sua então
namorada, de idade e aspectos similares aos de Lolita, lhe teria
deixado marcas profundas na adolescência, que lhe renderam
direcionamentos pouco ortodoxos no curso de sua vida, custando-lhe,
ao final, sua própria liberdade.
A obra, que posteriormente ganhou
duas adaptações para o cinema, revela as habilidades do autor, com
suas múltiplas qualidades literárias além de uma estrutura
bastante original: o autor explora uma mistura de estilos
cinematográficos que se inicia num estilo tipicamente europeu, com a
exposição de questões psíquicas e eróticas; tornando-se depois
um drama, quando o professor vai morar em New Hampshire, uma cidade
periférica sem muito atrativo - até se ver arrebatado pela pequena
Dolores; posteriormente a obra vai adquirindo aspectos de um road
movie, quando o
protagonista, em uma longa viagem de carro pelos Estados Unidos, dá
início ao romance proibido, momento esse em que ganha espaço,
também, o enigma de um perseguidor misterioso e; termina com uma
espécie de drama policial, num estilo de film
noir.
A própria situação do
protagonista, enquanto narra sua história, já consiste em um
poderoso recurso literário, bastante original, de que o autor se
serve: Humbert está em corte, sendo julgado e é nesse momento em
que toda a trama se desenvolve: no narrar de suas memórias; o
julgamento exerce o papel de uma cena suporte em que o protagonista,
que é o réu, deve narrar os fatos, criminosos, aos jurados,
encontrando oportunidade de rememorar, não sem um misto de êxtase e
culpa, os capítulos que ele mesmo considera os mais sublimes de sua
vida, como indicam as seguintes passagens:
“O horror atroz, incrível,
insuportável e provavelmente eterno que ora sinto, era apenas uma
pequena mancha preta no azul de minha felicidade”
“Estou tentando descrever essas
coisas não para revivê-las na infinita miséria que é hoje minha
vida, mas para separar a dose de inferno e a dose de céu que existem
naquele mundo estranho, terrível, enlouquecedor, que é o amor por
uma ninfeta. A bestialidade e a beleza se encontram num determinado
ponto – e é essa fronteira que eu desejo fixar, mas sinto que meu
esforço é totalmente vão”.
Ironicamente, o réu tende a
conquistar certa simpatia do leitor exatamente por não tentá-lo
convencer. Sem nenhuma expectativa de ser compreendido, ele explica o
mundo próprio, de leis próprias e indiferente, que era a paixão
vertiginosa que ele nutria por Lolita: “...insisto
em provar que não sou, nem nunca fui, e não poderia ser jamais, um
crápula brutal. As pacíficas e sonhadoras regiões pelas quais
rastejei são o patrimônio de poetas e não o valhacouto de
criminosos”.
Abrigando-se sob as asas dos poetas, com a “verdade” estranha e,
ao mesmo tempo, popular, de que o amor está numa dimensão à parte
(embora, no seu caso, isso se mostre bastante discutível), Nabokov
faz com que o leitor se deixe seduzir, lentamente, pela subjetividade
do réu.
O arremate fundamental do autor é
nos apresentar um réu convicto de ter sido, não o sedutor, mas o
seduzido. Isso nos traz um conflito, dos mais perturbadores: “...às
seis ela estava acordada e por volta das seis e quinze éramos
tecnicamente amantes. Senhores do juri, vou contar-lhes algo muito
estranho: foi ela quem me seduziu”.
O amor que Humbert nos confessa nos
confunde, trazendo momentos que se mesclam de um total repúdio e uma
estranha simpatia, que chega a nos causar culpa; é com uma incômoda
surpresa que nos flagramos simpáticos à paixão nociva de Humbert,
dado o seu poder de nos convencer a respeito da legitimidade, não de
suas ações, mas de seus sentimentos, a partir dos quais, os
desdobramentos, esses sim serão sempre passíveis de julgamento. Não
obstante, Humbert nos coloca ainda mais um conflito de consciência,
ao informar que a pequena “ninfeta”, como ele mesmo gosta de
chamá-la, tomara as iniciativas, fatais, conforme a última passagem
citada.
O autor nos ganha pelas curvas da
sensibilidade; ainda que se trate de um crime atroz, ele consegue
colocar a paixão num patamar mais elevado do que propriamente o
crime que ela representou. E deixemos claro: para o réu, o fato é
lido como um crime pelas leis, mas não por Lolita. Trata-se de um
trabalho admirável, o de nos revelar a força da subjetividade
exposta, fazendo-nos pensar sobre o alcance das leis privadas, que
residem em cada história particular.
As passagens de Lolita nos deixam
nas mãos esse problema: um conflito no que tange a inevitabilidade
das coisas, o arrebatamento amoroso e sua fatalidade inegáveis. Nos
força a acompanhar, mesmo com aversão, toda a ambiguidade do caso
apresentado: o encantamento e a sordidez de uma paixão tão
ultrajante quanto legítima – pondo-nos a prova, ao colocar, com
suas linhas despudoradas, mas sempre bem organizadas e lúcidas, a
seguinte questão: afinal, o que é legítimo nessa dimensão?
O autor parece insistir nesse
recurso, se assim podemos dizer: a fatalidade que representa sua
ruína é também seu álibi e sua justificativa, se puder haver uma.
Essa é a potência do romance, o poder de nos mergulhar numa
profusão de sentimentos contraditórios, caóticos, constrangedores
e ao mesmo tempo fascinantes, instigantes, absolutamente
apaixonantes.
O problema no romance que estamos
chamando de incômodo, que representa, também, a genialidade do
autor, é que ele nos coloca, com sua narrativa convincente, o amor
acima de todas as coisas. Fazendo com que algo que se mostra tão
monstruoso, pareça, ao mesmo tempo, ligeiramente doce e até
compreensível. É neste ponto que uma terrível confusão de
sentimentos parece acometer o leitor e o romance se confirmar dos
mais incômodos, mas não menos cativante.
O gênio do autor fica ainda mais
evidente ao conferirmos sua obra prima em uma outra linguagem
artística. Em 1962 Lolita ganha sua primeira versão
cinematográfica, dirigida por Stanley Kubrick; posteriormente, em
1997, Adrian Lyne dirige uma segunda filmagem, que difere
substancialmente da primeira. Restringindo-nos à versão mais
recente, de Lyne, tanto a pequena Lolita (Dominique Swain), quanto o
professor Humbert, (Jeremy Irons), apresentam grandes interpretações,
contudo, o contraste dessas duas linguagens nos leva,
inevitavelmente, a reconhecer o absoluto talento literário de
Nabokov.
A força e o vigor de sua obra
residem precisamente no manuseio de suas palavras. A delicadeza e a
despretensão das palavras de Humbert (escolhidas, com todo o esmero,
por Nabokov) é precisamente aquilo que nos agarra e nos absorve com
toda a voracidade que as palavras podem esconder. As cenas da versão
cinematográfica também nos comovem e nos levam a modos de catarse,
todavia, a ausência de palavras nos revelam o valor das mesmas: é
surpreendente constatar como a substituição das palavras - que no
caso de Nabokov representa toda a força poética do romance - pelas
cenas cinematográficas, diminui significativamente a potência e o
apelo da obra.
O poder das palavras, em se tratando
de Nabokov, sobrepuja, em muito, o poder da imagem. As palavras nos
confrontam, se riem do leitor desesperado; a imagem, por sua vez, tem
qualquer coisa de “generosa”, limitando-se a apenas nos ventilar
as implicações de um tema, sem nos encaminhar, à força, como faz
impiedosamente o recurso literário, a questões nucleares da
experiência humana.
J. Irons e D. Swain na direção de Adrien Lyne, 1997. |
São questões filosóficas que
muitas vezes deixamos engavetadas, até nos depararmos com um romance
como o de Nabokov. Parece razoável afirmarmos que a boa literatura
deve contemplar, entre outras coisas, esse poder, de nos encaminhar
às questões mais inéditas, mais esquecidas ou mesmo, por vezes,
mais encobertas, proibidas, perigosas, numa palavra: incômodas, mas,
no caso da arte, sem deixar de ser sublime. Nabokov o faz com
excelência, tornando sua Lolita
um monumento da literatura.
***
Vladimir Nabokov nasceu em 1900 na
cidade russa de São Petersburgo. De família nobre, cresceu em um
ambiente trilíngue, falando russo, francês e inglês. Em 1919,
devido à instabilidade decorrente da revolução bolchevique, o
autor e sua família abandonam a então União Soviética e mudam-se
para a Europa Ocidental, inicialmente Inglaterra, onde o escritor se
forma, em Cambridge, e se licencia em literatura russa e francesa. Em
Berlim, inicia sua produção literária e intenso trabalho como
tradutor. Em 1940, fugindo dos horrores do nazismo, vai para os
Estados Unidos, onde lecionará língua e literatura russa, em
diversas universidades. Nas décadas seguintes publicará mais de
vinte obras, entre romances e contos e, em 1977, aos 78 anos, morre
na Suíça.
(* No último post selecionei as passagens mais tocantes que encontrei na obra:)
http://conversamolle.blogspot.com.br/2013/04/trechos-sublimes-de-um-classico.html
(* No último post selecionei as passagens mais tocantes que encontrei na obra:)
http://conversamolle.blogspot.com.br/2013/04/trechos-sublimes-de-um-classico.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário