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quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A Identidade Pessoal em D. Hume - uma ilusão.







Esta análise visa analisar as passagens de David Hume em seu Livro I, na seção VI da Parte IV de O Tratado da Natureza Humana, concernentes ao tema da Identidade Pessoal, cuja postulação é considerada pelo autor o produto de uma ilusão, destituída de qualquer fundamento. A negação que Hume articula acerca da noção corrente de identidade pessoal, seja ela pautada em conceitos metafísicos ou abstratos, baseia-se em dois princípios fundamentais, postulados em seu sistema, a saber: o princípio da cópia e o princípio da separação, cuja conciliação é o que apresentará uma dificuldade para a constituição de uma identidade pessoal.



O princípio da cópia estabelece que toda ideia provém de uma percepção, não havendo nada em nossa mente que não tenha essa origem; já o princípio da separação estabelece que toda ideia simples pode ser distinguível e separável de qualquer outra, não necessitando de qualquer conexão para existir. Posto isso, de acordo com o primeiro princípio, a ideia de um Eu constante e ininterrupto requereria uma percepção de mesma natureza, da qual se originaria, o que, todavia, seguramente não existe, dada a frequência com que se testemunha mudanças, de toda sorte, em nossas percepções. A constante sucessão de percepções (diversidade) operada em nossa mente é o que compõe nossa existência, de modo que uma identidade, o “Eu” ou a “substância”, não podem representar mais que uma ilusão. E, considerando o princípio da separação, se todas as percepções particulares são separáveis e distinguíveis, restando delas apenas sua existência isolada, a pergunta que se coloca é: qual seria então a função de um Eu que conecta as diversas percepções? Para Hume essa noção, de uma unidade imutável e inquestionável do nosso Eu, apenas identifica o algo ao qual nossas diversas impressões e ideias se remetem, o que não lhe concede, todavia, a garantia de uma existência.



Com efeito, uma verdadeira conexão entre as percepções não ocorre de fato, a não ser por meio de nossa imaginação; a mente humana teria, pois, uma tendência natural em aproximar coisas que são diversas e tomá-las por identidade, sendo que apenas por hábito imaginamos as diversas percepções devidamente conectadas – um fenômeno, por assim dizer, cujo intuito seria o de anular a descontinuidade percebida pelos nossos sentidos e daí a hipóstase de um mundo meramente ficcional, de substâncias e seres com existência ininterrupta.



É nesta questão, identidade versus diversidade, que se encerra a reflexão de Hume nesta seção IV, que é regida pelo intuito de demonstrar as fragilidades na construção do conceito de identidade. (“A nossa tarefa principal deve ser, pois, provar que todos os objetos aos quais atribuímos identidade, sem observar a sua invariabilidade e continuidade, são aqueles que consistem em uma sucessão de objetos relacionados") (p. 304).



A identidade que forjamos na diversidade consiste em uma estreita relação entre os objetos, que os fazem ser percebidos de modo “quase igual” pela mente. Para o autor, esta confusão, de atribuir identidade onde há diversidade, é inerente à natureza da mente humana e nos remete a um paradoxo: sentimos a diversidade, mas imaginamos a identidade, como se, embora conseguindo perceber a realidade de um eterno fluxo, não pudéssemos realmente apreendê-lo e, por isso, cedêssemos ao determinismo da identidade.



É tão grande a nossa propensão para este erro, motivada pela semelhança mencionada, que caímos nele antes de nos apercebermos; e embora nos corrijamos incessantemente pela reflexão e voltemos a um método mais rigoroso de pensar, não podemos contudo por muito tempo sustentar a nossa filosofia ou retirar da imaginação esta tendência. O nosso último recurso é ceder e afirmar confiantemente que esses diferentes objetos relacionados são de fato os mesmos, não obstante a sua interrupção e variabilidade". (p. 303)



Nesse paradoxo reside a origem das formulações à respeito de substância, constância e identidade. Ocorre que, no fluxo incessante das percepções, só atribuímos identidade aos objetos que são compostos por partes conectadas por nossas relações mentais de semelhança, contiguidade e causalidade. Essa tríade representa, pois, processo de maior importância para a reflexão Humeana. São essas relações que explicam a tendência da mente em aproximar os objetos e torná-los fortemente relacionados, ou, a força que busca aproximar as ideias simples mais adequadas para a formação de ideias complexas. Essa aproximação tendenciosa que se opera, nos parece, visa a estruturar e organizar a compreensão dos diversos âmbitos da vida.



O erro de se postular a identidade deve-se, entre outros fatores que serão abordados adiante, à semelhança que reside nas duas formas de percepção (a da diversidade e a da identidade). Podemos pensar o processo como uma tentativa de “organizar”, se assim pudermos chamar, a sucessão de percepções que chegam aos nossos sentidos ininterruptamente, tornando-as em um todo idêntico e, assim, terminamos por atribuir significado real ao que não é mais que uma confusão de nosso entendimento (“...embora estas duas ideias de identidade e sucessão de objetos relacionados sejam, em si mesmas, perfeitamente distintas, e mesmo contrárias, é contudo certo que na nossa maneira comum de pensar confundimo-las geralmente uma com a outra”) (p. 302).



No intuito dessa operação parece estar a ideia de que tudo o que temos é o todo que captamos, contudo, para Hume não há qualquer relação possível entre os objetos do mundo e, portanto, não pode haver seres idênticos, ou seja, todas as impressões que nos chegam aos sentidos podem ser entendidas como diversas, não havendo fundamento para uni-las ou conectá-las em uma identidade.



O autor afirma que a diversidade presente na ideia de identidade é uma suposta variação no tempo. Quando fixamos um objeto e não percebemos alteração de nenhuma espécie em sua estrutura, e ainda julgamos que houve uma variação no tempo, então atribuímos identidade ao objeto. Por outro lado, a identidade presente na ideia de diversidade consiste numa estreita relação entre os objetos, que faz com que esses sejam percebidos de maneira quase igual por nossa mente.



Para ilustrar melhor o que se está afirmando, o autor nos propõe a seguinte reflexão:



Para atribuirmos a qualquer massa de matéria uma perfeita identidade, ela deve apresentar todas as partes idênticas, sem interrupção nem variação; se acrescentamos ou retiramos uma pequena parte, insignificante, é certo que sua identidade será destruída, porém, como não pensamos com uma tal precisão, diante de uma modificação tão ligeira continuamos lhe concedendo a mesma identidade. No entanto, Hume nota aqui uma “circunstância muito notável”, em suas palavras, a de que tendemos a pensar essas modificações proporcionalmente ao que achamos ou não relevante. O autor se vale de dois exemplos: “a diminuição de uma montanha não bastaria para produzir qualquer diversidade num planeta”, porém “a mudança de poucas polegadas poderia destruir a identidade de certos corpos” (p. 305). A questão para a qual o autor nos chama atenção é: qual seria, então, a quantidade necessária de alterações num corpo ou numa matéria para que eu note a destruição da identidade? Em seus dois exemplos está a resposta: valemo-nos simplesmente de medidas subjetivas na determinação do que é uma identidade. Se pudermos notar de modo suficientemente impactante a variação, então privamos o objeto do caráter idêntico, do contrário atribuímos-lhe a identidade. “A mudança numa parte considerável de um corpo destrói a sua identidade; mas é de notar que, quando a mudança se produz gradual e insensivelmente, somos menos capazes de reconhecer-lhe o mesmo efeito” (p. 305). Ora, fica evidente que aqui não encontramos um critério confiável, nem objetivo.



Chegado este ponto, nota-se que o autor está preparando o terreno de suas análises; começando pelos objetos (uma “massa de matéria”), passará para a identidade das plantas e vegetais para, finalmente, utilizando-se de analogias, chegar à identidade pessoal.



Ao apontar essa forma de atribuir identidade ou diversidade como um modo imperfeito, Hume constata que a identidade, seja nos objetos, seja a pessoal, não pode ter lugar em um sistema filosófico. Enquanto encontrarmos meios de relacionar as partes, umas às outras, a identidade será forçosamente (forjadamente) mantida, a partir de um equívoco, inerente ao entendimento humano, como já mencionado. Trata-se, pois, de um artifício que permite uma transição mais fluída do pensamento, contudo, sem se mostrar legítimo.



No caso das plantas e animais, há uma simpatia entre as partes, causada pelas relações (imaginadas) de causa e efeito – advindas do elemento “causalidade” da tríade supracitada – que confere uma mútua relação entre elas, facilitando nosso entendimento e por isso conferimos-lhe a ideia de identidade, ainda que se modifiquem durante toda a vida.



...embora todos devam reconhecer que dentro de poucos anos vegetais e animais sofrem uma mudança total, continuamos a atribuir-lhes identidade, enquanto que a sua forma, dimensão e substância se modificaram totalmente” (p. 306).



De modo análogo forjamos também a identidade pessoal. “A identidade que atribuímos à mente humana é apenas fictícia, do mesmo gênero a que atribuímos aos corpos vegetais e animais” (p. 308), eis o ponto a que Hume quer chegar e que ele já delineia ao apresentar, após o exemplo do “carvalho que se desenvolve de uma plantazinha até uma árvore grande”, também o exemplo de uma criança que “torna-se homem e às vezes é gorda, outras vezes é magra, sem qualquer mudança em sua identidade” (p. 306).



Guiando-nos pelos exemplos oferecidos, podemos ser levados a pensar que tanto o carvalho como a criança mantém sua identidade, a despeito de toda a alteração sofrida, ao que Hume, no entanto, responderia: o princípio da separação não pode ser destruído pela identidade; seja ela o que for, ela apenas vincula nossas diferentes percepções na mente, não lhes tirando, absolutamente, o caráter de separação.



Evidentemente a identidade que atribuímos à mente humana, por mais perfeita que possamos imaginá-la é incapaz de fundir numa só as diversas percepções diferentes e fazer-lhes perder os caracteres distintivos e diferenciais que lhes são essenciais” (p. 308).



A identidade limita-se, pois, ao papel de uma qualidade formada pela imaginação, como já dito, devido ao fluxo constante de percepções que, de um modo ou de outro,



precisam” ser organizados. Essa imaginação ou, se preferirmos, relações imaginárias, pode(m) ser entendida(s) como as relações mentais de, vale repetir, semelhança, contiguidade e causalidade (“Ora, as únicas qualidades que podem reunir ideias na imaginação são as três relações mencionadas acima. Estas são os princípios unificadores do mundo das ideias) (p. 309), ponto que se mostra fundamental na análise de Hume, por serem essas relações mentais que produzem a ideia de identidade; são elas que permitem uma conexão entre os objetos isolados e, consequentemente, são elas a fonte da noção de existência, sucessiva e invariável, que se faz de um indivíduo.



Neste momento da reflexão, Hume nos aponta uma questão que surge em decorrência de suas constatações: se alguma coisa efetivamente conecta (”amarra”) nossas diversas percepções ou se apenas associa suas ideias na imaginação; ou, nas palavras do próprio autor, ele se pergunta: “se ao pronunciarmo-nos sobre a identidade de uma pessoa observamos uma ligação real entre as percepções, ou apenas sentimos uma ligação entre as ideias que dela formamos” (p. 308).



Chegado esse ponto, o autor considera importante perguntar-se que relações, especificamente, produzem o elemento essencial para se conceber a existência de uma mente ou “pessoa pensante”, a saber: o progresso ininterrupto de nosso pensamento. Entrarão nessa análise a semelhança e a causalidade (“causação”), ficando de lado a contiguidade, em função de sua irrelevância para a questão investigada.



Refletindo sobre a semelhança e a causalidade, o autor destaca a memória como o elemento fundamental. Por ser a faculdade responsável por despertar as imagens de percepções passadas, ela se prova imprescindível ao mostrar-se como a ferramenta que coloca na “cadeia do pensamento” as percepções semelhantes (ou assim julgadas), conduzindo, dessa forma, as devidas ligações para que o todo adquira a aparência de uma continuidade e de um objeto único. Essa memória de percepções passadas, conforme considera Hume, é o que mais contribui para criar uma relação (de



semelhança), nessa sucessão de percepções, em meio a todas as suas variações (p. 310), sendo portanto ela que revela e que produz a identidade, tanto a nossa quanto a de outrem. Com respeito à causalidade é, ainda, a memória que possibilita a formação das relações de causa e efeito na mente.



Visto que só a memória nos dá a conhecer continuidade e extensão desta sucessão de percepções, devemos considera-la, sobretudo por esta razão, como a fonte da identidade pessoal (p.311).



A conclusão a que se chega é que a identidade pessoal cria-se a si mesma, o que se dá, resumidamente, por dois momentos, sendo o primeiro o fluxo constante de distintas percepções, separáveis e sem nenhum vínculo real e, um segundo momento, refere-se ao fato de que as percepções sucessivas geram na mente diversas relações (como a semelhança e a causalidade), que acabam por conectar as percepções, gerando a ideia ficcional de um Eu. Essa ideia, como já dito, concebe nada mais que o “algo” comum, ao qual nossas diversas impressões se remetem, formando uma ideia de constância e identidade. E, ao postular uma identidade ao outro, a partir da reunião de impressões que dele se faz, confere-se a si próprio a mesma propriedade, concebendo-se assim a própria identidade, ou o que Hume chama de o próprio feixe de percepções”. Notamos, pois, uma espécie de círculo de ilusões, onde, supondo uma identidade, passamos a nos remeter uns aos outros como fôssemos todos dotados de invariabilidade e ininterruptibilidade, como seres idênticos e estáticos, de modo a reforçar a crença recíproca de identidade pessoal.



O sujeito e sua forma de perceber o mundo, segundo as relações acima, geram uma distorção nos fatos, que passam a ser percebidos como fossem conectados e por princípios que a eles não se aplicam. Com isso Hume reforça a ilusão em que consiste a crença em uma identidade pessoal, quando o que há é apenas o feixe ou uma coleção de percepções, independentes, desencadeadas e que queremos organizar, o que, se observarmos, está bem claro já no início de sua exposição, quando o autor nos relata:







Quando penetro mais intimamente naquilo a que chamo Eu próprio, tropeço sempre em uma ou outra percepção particular, de frio ou calor, de luz ou sombra, de amor ou ódio, de dor ou prazer. Nunca consigo apanhar-me a mim próprio, a qualquer momento, sem uma percepção, e nada posso observar a não ser a percepção [ele quer dizer: sou percepções...mas o Eu, propriamente dito, onde está?]. Quando as minhas percepções são afastadas por um tempo, como por um sono tranquilo, durante esse tempo não tenho consciência de mim próprio e pode-se dizer verdadeiramente que não existo” (p. 300).



...pondo de parte alguns metafísicos... atrevo-me a afirmar do resto dos homens que cada um deles não passa de um feixe ou coleção de diferentes percepções que se sucedem umas às outras com inconcebível rapidez e que estão em perpétuo fluxo e movimento”. (p. 301)



Com efeito, as relações de semelhança, causalidade e contiguidade organizam nossos pensamentos e geram a ilusão de que da mesma forma estão organizados também os objetos, que, em verdade, existem por si mesmos e, não se relacionam, crê o autor, sob nenhuma circunstância. Essas relações gerem o universo das ideias, mas não os objetos do mundo – e é justamente a não observação deste ponto, deduz-se, o que nos faz incorrer em erro.



Pressupondo que há uma tendência natural da percepção em transformar as informações que nos chegam, adaptando-as à necessidades específicas e enxergando identidade onde só há diversidade, então pouco podemos afirmar, conclui-se, sobre a existência dos objetos. Hume reconhece a dificuldade, senão a impossibilidade, de se dar uma solução adequada para o problema, mas não sem deixar o caminho aberto, com valiosas contribuições, para novas descobertas.

(para finalizar eu cito o autor que diz, a respeito de suas considerações):



¨...a nossa maneira variada de raciocinar conduziu-nos a diversas considerações, as quais, ou vão esclarecer e confirmar alguma parte anterior desta exposição, ou vão preparar o caminho para nossas opiniões subsequentes.” (p. 312)

















Bibliografia



Hume, D. Tratado da Natureza Humana. Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 2001.