Esta análise visa analisar as
passagens de David Hume em seu Livro I, na seção VI da Parte IV de
O Tratado da Natureza
Humana, concernentes ao
tema da Identidade Pessoal, cuja postulação é considerada pelo
autor o produto de uma ilusão, destituída de qualquer fundamento. A
negação que Hume articula acerca da noção corrente de identidade
pessoal, seja ela pautada em conceitos metafísicos ou abstratos,
baseia-se em dois princípios fundamentais, postulados em seu
sistema, a saber: o princípio da cópia e o princípio da separação,
cuja conciliação é o que apresentará uma dificuldade para a
constituição de uma identidade pessoal.
O princípio da cópia estabelece
que toda ideia provém de uma percepção, não havendo nada em nossa
mente que não tenha essa origem; já o princípio da separação
estabelece que toda ideia simples pode ser distinguível e separável
de qualquer outra, não necessitando de qualquer conexão para
existir. Posto isso, de acordo com o primeiro princípio, a ideia de
um Eu constante e ininterrupto requereria uma percepção de mesma
natureza, da qual se originaria, o que, todavia, seguramente não
existe, dada a frequência com que se testemunha mudanças, de toda
sorte, em nossas percepções. A
constante sucessão de percepções (diversidade) operada em nossa
mente é o que compõe nossa existência,
de modo que uma identidade, o “Eu”
ou a “substância”, não podem representar mais que uma
ilusão. E,
considerando o princípio da separação, se todas as percepções
particulares são separáveis e distinguíveis, restando delas apenas
sua existência isolada, a pergunta que se coloca é: qual seria
então a função de um Eu que conecta as diversas percepções? Para
Hume essa noção, de uma unidade imutável e inquestionável do
nosso
Eu, apenas identifica
o
algo ao qual nossas diversas impressões e ideias se remetem,
o que não lhe concede, todavia, a garantia de uma existência.
Com efeito, uma verdadeira conexão
entre as percepções não ocorre de fato, a não ser por meio de
nossa imaginação; a mente humana teria, pois, uma tendência
natural em aproximar
coisas que são diversas e tomá-las por identidade,
sendo que apenas
por hábito imaginamos as diversas percepções devidamente
conectadas – um
fenômeno, por assim dizer, cujo intuito seria o de anular a
descontinuidade percebida pelos nossos sentidos e daí a hipóstase
de um mundo meramente ficcional, de substâncias e seres com
existência ininterrupta.
É nesta questão, identidade
versus
diversidade, que se
encerra a reflexão de Hume nesta seção IV, que é regida pelo
intuito de demonstrar as fragilidades na construção do conceito de
identidade. (“A nossa
tarefa principal deve ser, pois, provar que todos os objetos aos
quais atribuímos identidade, sem observar a sua invariabilidade e
continuidade, são aqueles que consistem em uma sucessão de objetos
relacionados") (p.
304).
A identidade que forjamos na
diversidade consiste em uma estreita relação entre os objetos, que
os fazem ser percebidos de modo “quase igual” pela mente. Para o
autor, esta confusão,
de atribuir identidade onde há diversidade,
é inerente à natureza da mente humana e nos remete a um paradoxo:
sentimos
a diversidade, mas imaginamos a identidade,
como se, embora conseguindo perceber a realidade de um eterno fluxo,
não pudéssemos realmente apreendê-lo e, por isso, cedêssemos ao
determinismo da identidade.
“É
tão grande a nossa propensão para este erro, motivada pela
semelhança mencionada, que caímos nele antes de nos apercebermos; e
embora nos corrijamos incessantemente pela reflexão e voltemos a um
método mais rigoroso de pensar, não podemos contudo por muito tempo
sustentar a nossa filosofia ou retirar da imaginação esta
tendência. O nosso último recurso é ceder e afirmar confiantemente
que esses diferentes objetos relacionados são de fato os mesmos, não
obstante a sua interrupção e variabilidade".
(p.
303)
Nesse paradoxo reside a origem das
formulações à respeito de substância, constância e identidade.
Ocorre que, no fluxo incessante das percepções, só atribuímos
identidade aos objetos que são compostos por partes conectadas por
nossas relações mentais de semelhança,
contiguidade e causalidade.
Essa tríade representa, pois, processo de maior importância para a
reflexão Humeana. São essas relações
que explicam a tendência da mente em aproximar os objetos e
torná-los fortemente relacionados,
ou, a força que busca aproximar as ideias simples mais adequadas
para a formação de ideias complexas. Essa aproximação tendenciosa
que se opera, nos parece, visa a estruturar e organizar a compreensão
dos diversos âmbitos da vida.
O erro de se postular a identidade
deve-se, entre outros fatores que serão abordados adiante, à
semelhança que reside nas duas formas de percepção (a da
diversidade e a da identidade). Podemos pensar o processo como uma
tentativa de “organizar”,
se assim pudermos chamar, a sucessão
de percepções que chegam aos nossos sentidos ininterruptamente,
tornando-as em um
todo idêntico e,
assim, terminamos por atribuir significado real ao que não é mais
que uma confusão de nosso entendimento (“...embora
estas duas ideias de identidade e sucessão de objetos relacionados
sejam, em si mesmas, perfeitamente distintas, e mesmo contrárias, é
contudo certo que na nossa maneira comum de pensar confundimo-las
geralmente uma com a outra”)
(p. 302).
No intuito dessa operação parece
estar a ideia de que tudo o que temos é o todo que captamos,
contudo, para Hume não há qualquer relação possível entre os
objetos do mundo e, portanto, não pode haver seres idênticos, ou
seja, todas as impressões que nos chegam aos sentidos podem ser
entendidas como diversas, não havendo fundamento para uni-las ou
conectá-las em uma identidade.
O autor afirma que a
diversidade presente na ideia de identidade
é uma suposta variação no tempo. Quando fixamos um objeto e não
percebemos alteração de nenhuma espécie em sua estrutura, e ainda
julgamos que houve uma variação no tempo, então atribuímos
identidade ao objeto. Por outro lado, a
identidade presente na ideia de diversidade
consiste numa estreita relação entre os objetos, que faz com que
esses sejam percebidos de maneira quase igual por nossa mente.
Para ilustrar melhor o que se está
afirmando, o autor nos propõe a seguinte reflexão:
Para atribuirmos a qualquer massa de
matéria uma perfeita identidade, ela deve apresentar todas as partes
idênticas, sem interrupção nem variação; se acrescentamos ou
retiramos uma pequena parte, insignificante, é certo que sua
identidade será destruída, porém, como não pensamos com uma tal
precisão,
diante de uma modificação tão ligeira continuamos lhe concedendo a
mesma identidade. No entanto, Hume nota aqui uma “circunstância
muito notável”, em
suas palavras, a de que tendemos a pensar essas modificações
proporcionalmente ao que achamos ou não relevante. O autor se vale
de dois exemplos: “a
diminuição de uma montanha não bastaria para produzir qualquer
diversidade num planeta”,
porém “a mudança de
poucas polegadas poderia destruir a identidade de certos corpos”
(p. 305). A questão para a qual o autor nos chama atenção é: qual
seria, então, a quantidade necessária de alterações num corpo ou
numa matéria para que eu note a destruição da identidade? Em seus
dois exemplos está a resposta: valemo-nos
simplesmente de medidas subjetivas
na determinação do que é uma identidade.
Se pudermos notar de modo suficientemente impactante a variação,
então privamos o objeto do caráter idêntico, do contrário
atribuímos-lhe a identidade. “A
mudança numa parte considerável de um corpo destrói a sua
identidade; mas é de notar que, quando a mudança se produz gradual
e insensivelmente, somos menos capazes de reconhecer-lhe o mesmo
efeito” (p. 305). Ora,
fica evidente que aqui não encontramos um critério confiável, nem
objetivo.
Chegado este ponto, nota-se que o
autor está preparando o terreno de suas análises; começando pelos
objetos (uma “massa de
matéria”), passará
para a identidade das plantas e vegetais para, finalmente,
utilizando-se de analogias, chegar à identidade pessoal.
Ao apontar essa forma de atribuir
identidade ou diversidade como um modo imperfeito,
Hume constata que a
identidade, seja nos
objetos, seja a pessoal,
não pode ter lugar em um sistema filosófico.
Enquanto encontrarmos meios de relacionar as partes, umas às outras,
a identidade será forçosamente (forjadamente) mantida, a partir de
um equívoco, inerente ao entendimento humano, como já mencionado.
Trata-se, pois, de um artifício que permite uma transição mais
fluída do pensamento, contudo, sem se mostrar legítimo.
No caso das plantas e animais, há
uma simpatia entre as partes, causada pelas relações (imaginadas)
de causa e efeito – advindas do elemento “causalidade” da
tríade supracitada – que confere uma mútua relação entre elas,
facilitando nosso entendimento e por isso conferimos-lhe a ideia de
identidade, ainda que se modifiquem durante toda a vida.
“...embora
todos devam reconhecer que dentro de poucos anos vegetais e animais
sofrem uma mudança total, continuamos a atribuir-lhes identidade,
enquanto que a sua forma, dimensão e substância se modificaram
totalmente”
(p. 306).
De modo análogo forjamos também a
identidade pessoal. “A
identidade que atribuímos à mente humana é apenas fictícia, do
mesmo gênero a que atribuímos aos corpos vegetais e animais”
(p. 308), eis o ponto a que Hume quer chegar e que ele já delineia
ao apresentar, após o exemplo do “carvalho
que se desenvolve de uma plantazinha até uma árvore grande”,
também o exemplo de uma criança que “torna-se
homem e às vezes é gorda, outras vezes é magra, sem qualquer
mudança em sua identidade”
(p. 306).
Guiando-nos pelos exemplos
oferecidos, podemos ser levados a pensar que tanto o carvalho como a
criança mantém sua identidade, a despeito de toda a alteração
sofrida, ao que Hume, no entanto, responderia: o
princípio da separação não pode ser destruído pela identidade;
seja ela o que for, ela apenas vincula nossas diferentes percepções
na mente, não lhes tirando, absolutamente, o caráter de separação.
“Evidentemente
a identidade que atribuímos à mente humana, por mais perfeita que
possamos imaginá-la é incapaz
de fundir numa só as diversas percepções diferentes
e fazer-lhes perder os caracteres distintivos e diferenciais que lhes
são essenciais”
(p. 308).
A identidade limita-se, pois, ao
papel de uma qualidade formada pela imaginação, como já dito,
devido ao fluxo
constante de percepções
que, de um modo ou de outro,
“precisam” ser organizados. Essa
imaginação ou, se preferirmos, relações imaginárias, pode(m) ser
entendida(s) como as relações
mentais de, vale
repetir, semelhança,
contiguidade e causalidade
(“Ora, as únicas
qualidades que podem reunir ideias na imaginação
são as três relações mencionadas acima. Estas são os princípios
unificadores do mundo das ideias”)
(p. 309), ponto que se mostra fundamental na análise de Hume, por
serem essas relações mentais que produzem a ideia de identidade;
são elas que permitem
uma conexão entre os objetos isolados
e, consequentemente, são elas a fonte
da noção de existência, sucessiva e invariável, que se faz de um
indivíduo.
Neste momento da reflexão, Hume nos
aponta uma questão que surge em decorrência de suas constatações:
se alguma coisa efetivamente conecta (”amarra”)
nossas diversas
percepções ou se apenas associa suas ideias na imaginação; ou,
nas palavras do próprio autor, ele se pergunta: “se
ao pronunciarmo-nos sobre a identidade de uma pessoa observamos uma
ligação real
entre as percepções, ou
apenas
sentimos uma
ligação entre as ideias que dela formamos”
(p. 308).
Chegado esse ponto, o autor
considera importante perguntar-se que relações, especificamente,
produzem o elemento
essencial para se conceber a existência de uma mente ou “pessoa
pensante”, a saber: o
progresso
ininterrupto de nosso pensamento.
Entrarão nessa análise a semelhança e a causalidade (“causação”),
ficando de lado a contiguidade, em função de sua irrelevância para
a questão investigada.
Refletindo sobre a semelhança e a
causalidade, o autor destaca a memória
como o elemento fundamental.
Por ser a faculdade responsável por despertar as imagens
de percepções passadas,
ela se prova imprescindível ao mostrar-se como a ferramenta que
coloca na “cadeia do
pensamento” as
percepções semelhantes (ou assim julgadas), conduzindo, dessa
forma, as devidas
ligações para que o todo adquira a aparência de uma continuidade e
de um objeto único.
Essa memória
de percepções passadas,
conforme considera Hume, é o que mais contribui para criar uma
relação (de
semelhança), nessa sucessão de
percepções, em meio a todas as suas variações (p. 310), sendo
portanto
ela que revela e que produz a identidade,
tanto a nossa quanto a de outrem. Com respeito à causalidade é,
ainda, a memória que possibilita a formação das relações de
causa e efeito na mente.
“Visto
que só a
memória
nos dá a conhecer continuidade e extensão desta sucessão de
percepções, devemos considera-la, sobretudo por esta razão, como a
fonte da identidade pessoal”
(p.311).
A conclusão a que se chega é que a
identidade pessoal cria-se a si mesma, o que se dá, resumidamente,
por dois momentos, sendo o primeiro o fluxo constante de distintas
percepções, separáveis e sem nenhum vínculo real e, um segundo
momento, refere-se ao fato de que as percepções sucessivas geram na
mente diversas relações (como a semelhança e a causalidade), que
acabam por conectar
as percepções,
gerando
a ideia ficcional de um Eu.
Essa ideia, como já dito, concebe nada mais que o “algo” comum,
ao qual nossas diversas impressões se remetem, formando uma ideia de
constância e identidade. E, ao postular
uma identidade ao
outro, a partir da reunião
de impressões que
dele se faz, confere-se a si próprio a mesma propriedade,
concebendo-se assim a própria identidade, ou o que Hume chama de o
próprio “feixe
de percepções”.
Notamos, pois, uma espécie de círculo de ilusões, onde, supondo
uma identidade, passamos a nos remeter uns aos outros como
fôssemos todos dotados de invariabilidade e ininterruptibilidade,
como seres idênticos e estáticos, de modo a reforçar a crença
recíproca de identidade pessoal.
O sujeito e sua forma de perceber o
mundo, segundo as relações acima, geram uma distorção
nos fatos, que passam
a ser percebidos
como fossem conectados
e por princípios que a eles não se aplicam. Com isso Hume reforça
a ilusão em que consiste a crença em uma identidade pessoal, quando
o que há é apenas o feixe ou uma coleção de percepções,
independentes, desencadeadas e que queremos organizar,
o que, se observarmos, está bem claro já no início de sua
exposição, quando o autor nos relata:
“Quando
penetro mais intimamente naquilo a que chamo Eu próprio, tropeço
sempre em uma ou outra percepção particular, de frio ou calor, de
luz ou sombra, de amor ou ódio, de dor ou prazer. Nunca
consigo apanhar-me a mim próprio, a qualquer momento, sem uma
percepção, e nada posso observar a não ser a percepção [ele quer
dizer: sou percepções...mas o Eu, propriamente dito, onde está?].
Quando
as minhas percepções são afastadas por um tempo, como por um sono
tranquilo, durante esse tempo não tenho consciência de mim próprio
e pode-se dizer verdadeiramente que não existo”
(p. 300).
“...pondo
de parte alguns metafísicos... atrevo-me a afirmar do resto dos
homens que cada um deles não passa de um feixe
ou coleção de diferentes percepções
que se sucedem umas às outras com inconcebível rapidez e que estão
em perpétuo
fluxo e movimento”.
(p. 301)
Com efeito,
as relações de semelhança, causalidade e contiguidade organizam
nossos pensamentos e geram a ilusão de que da mesma forma estão
organizados também os objetos, que, em verdade, existem por si
mesmos e, não se relacionam, crê o autor, sob nenhuma
circunstância. Essas
relações gerem o universo das ideias, mas não os objetos do mundo
– e é justamente a não observação deste ponto, deduz-se, o que
nos faz incorrer em erro.
Pressupondo que há uma tendência
natural da percepção em transformar as informações que nos
chegam, adaptando-as à necessidades específicas e enxergando
identidade onde só há diversidade,
então pouco podemos afirmar, conclui-se, sobre a existência dos
objetos. Hume reconhece a dificuldade, senão a impossibilidade, de
se dar uma solução adequada para o problema, mas não sem deixar o
caminho aberto, com valiosas contribuições, para novas descobertas.
(para
finalizar eu cito o autor que diz, a respeito de suas considerações):
¨...a
nossa maneira variada de raciocinar conduziu-nos a diversas
considerações, as quais, ou vão esclarecer e confirmar alguma
parte anterior desta exposição, ou vão preparar o caminho para
nossas opiniões subsequentes.”
(p.
312)
Bibliografia
Hume,
D. Tratado da Natureza Humana. Lisboa, Fund. Calouste
Gulbenkian, 2001.
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