Di Cavalcanti - Mulata com Gato (1966) |
A questão da arte na
América Latina parece ter sofrido significantes alterações com as novidades que
surgem na arte contemporânea. Para abordarmos o tema, contamos com as reflexões
dos dois curadores: Frederico Morais (de 1997) e Gerardo Mosqueira (de 2009).
É importante ressaltar
a data em que foram produzidos esses ensaios, pois veremos ao final que, ao
contrário do que parece, eles não são antagônicos, mas complementares, o
segundo texto, doze anos mais tarde, acaba por atualizar o primeiro, nos dando
um panorama do que mudou e o que permanece rígido.
Frederico Morais
sintetiza em seu texto o modo como desenvolvemos a arte na América Latina,
relacionando-o especialmente com nosso caráter de
povo colonizado, sobretudo nossa crise
de identidade, que significou, entre outras coisas, um atraso para nossa pesquisa plástica.
O contexto político na América Latina sempre
conduziu a criação plástica. E porque isso? Somos um povo cujo cotidiano está cercado pelas preocupações sociais e
político-econômicas, falamos sempre da desigualdade, das injustiças, da miséria
e da corrupção, de modo que o tema
central em nossa arte concentrou-se por muito tempo nessas questões
(como é o caso do muralismo no México); se pintamos o que sentimos, nossa arte
tomou para si a função (ou mesmo o gosto) de contestar o cenário sócio-político
a que o povo se via constrangido e isso, de certa forma, desacelerou, se assim
podemos chamar, nosso avanço estético (ao menos em relação a arte europeia).
Em
1928, no Brasil, teve lugar
um evento de importância continental para a arte latino-americana: Oswald de Andrade publica seu manifesto antropofágico, cujo objetivo era o
de incitar os artistas a metabolizar as
tendências artísticas europeias, para a partir disso “regurgitarmos” o novo,
adaptado ao nosso contexto próprio; um processo de apropriação, mas seguido de
ressignificação. Essa ideia tem a
característica inovadora de combater e enfrentar o establishment - que subjuga toda arte que não seja de seu interesse
- e não mais consentir, acriticamente, suas normas. De nossa arte foi sempre
exigida, pelas instâncias hegemônicas tradicionais (as bienais, os críticos e
curadores, as revistas, os colecionadores, etc) uma originalidade, uma arte que
fosse própria. Essa crítica acaba por condenar-nos, por mais que se crie, a uma
eterna imagem de copistas.
A. Malfatti - Mario de Andrade (1921-22) |
Essas instâncias, que,
para Frederico Morais representam uma extensão da colonização (uma
“neocolonização”) que, agindo com seus “estereótipos interpretativos”,
continuam impondo sua supremacia com seus critérios muito próprios, valeram-se
habilmente dessa nova estratégia (de apropriação e ressignificação), acusando-a
de mera reprodução, sem considerar a inovação que com ela também nasceu. Para perpetuarem suas ditaduras estéticas, negam
espaço ao novo ou regional e privilegiam os velhos paradigmas, eurocêntricos e
dogmáticos, além de voltados, quase sempre, para fins econômicos.
Cândido Portinari - Café (1935) |
Cândido Portinari - Criança Morta (1944) |
Di Cavalcanti - Carnaval (1965) |
Conforme Gerardo Mosquera,
que também dará suporte à nossa posição, vemos que na arte contemporânea,
surgem novos atores culturais e artísticos, que, por meio da internet e a
globalização dos meios de comunicação, aprendem a arte contemporânea e para ela
“saltam”, desprendendo-se da arte tradicional: criam grupos e espaços
alternativos, justamente pela ausência de infra-estruturas, de forma que acabam
por reagir à arte comercial, realizando a arte pela arte. Isso nos sugere que
quem decide agora sobre arte são os artistas e não os curadores, críticos e
demais representantes da arte hegemônica. Ao contrário, hoje os curadores é que
devem se esforçar para estar em dia com tudo que surge em todos os cantos do
mundo, de modo que, os novos “atores” estão redesenhando o cenário e revendo os
repertórios impostos.
A arte contemporânea,
segundo o autor, tem se mostrado, em certa medida, uma arte transgressora, pois
ignora os cânones hegemônicos, reelabora seus sentidos e desestabiliza o status quo. Os novos artistas estão fazendo,
e não digerindo para depois regurgitar; estão fazendo a partir de seu próprio
imaginário e perspectivas e, de apropriação passamos finalmente para a fase da
construção.
Xul Solar - Palacio Almi |
Para Gerardo Mosquera,
que escreve seu texto doze anos depois de Frederico Morais, vivemos um momento
em que os contextos se tornaram globais e somos todos cosmopolitas - somos
todos “cidadãos de um mesmo país”. Não se trata mais de se afirmar uma arte
latino-americana ou asiática, somos falantes ou praticamos uma mesma linguagem,
representada pela arte, significa dizer que as
fronteiras não são mais geográficas, mas de linguagem artística – mas
ainda, claro, a língua do mainstream.
Pensamos que todo o
desprendimento dos cânones que a arte contemporânea realizou não soterra,
ainda, a as instâncias tradicionais de poder que, embora sejam agora menos
reverenciadas, permanecem em seus lugares.
A tensão stablishment versus renovação, é
significante. A neurose da identidade, segundo Mosquera, ainda existe, não foi
totalmente superada, contudo, os artistas já
conseguem se libertar da exigência de retratar nosso exotismo ou explicitar,
necessariamente, nossas diferenças.
Exposto isso, como
adiantado no início de nossa reflexão, podemos notar que os dois argumentos,
dos diferentes autores, apesar de separados por uma década, se complementam.
Estamos de acordo com
ambos: com o primeiro autor porque continuamos sob os olhos da crítica (e seus
adendos) que ainda exerce um papel colonizante e garante o status quo tradicional; com o segundo autor porque testemunhamos,
de fato, no universo artístico atual, uma pluralidade de estilos e
representações diversas (culturais, geográficas, estéticas) que antes não
tinham espaço, literalmente, na cena artística (provavelmente a internet, além
de outros fatores, tem algum mérito nisso).
Pensamos que, com
efeito, na arte contemporânea já não se vê contornos tão rígidos que distinguem
uma arte europeia de uma asiática ou latino-americana. É certo que há uma
liberdade de criação maior, porém essa
liberdade de criação não garante uma
liberdade de participação nos eventos
internacionais, que divulgam e consagram os artistas e seus trabalhos,
como as bienais e museus fazem com a arte europeia. Há mais espaço porque esses
artistas é que buscaram alternativas, não por terem-na recebido
espontaneamente.
Ao que nos consta,
continuamos vendo nossa arte limitada aos museus metropolitanos, como bem cita
F. Morais, “como um troféu de caça”. Se, como
já citamos acima, nosso conteúdo político é muito próprio e portanto a
linguagem artística que lhe é correspondente também é muito própria, ao crivo
de quem devemos submeter nossa produção artística? Os europeus não vivem
nem compreendem nossa realidade, então porque deveriam julgar nossa arte? Se
não entendem nossos significados faria sentido serem eles o nosso “júri”?
Enquanto pedirmos a
aprovação dessas instâncias, continuaremos legitimando sua superioridade, tão
embasada na “precedência” (o que também é discutível, como analisaremos
adiante). Dado isso, seria plausível organizarmos nossa própria “banca”, de
latino-americanos, e somente com ela nos preocuparmos?
Xul Solar - Vuel Villa |
Falando na pretensa
superioridade da arte europeia e com base na afirmação de Gerardo Mosquera de
que todas as culturas se “roubam”, são
híbridas e dificilmente encontraremos uma que seja pura, onde seus receptores
remodelam esses elementos “roubados” (ou emprestados?) dando-lhes novo
significado de acordo com sua realidade, me coloco a pergunta: será que a
própria arte europeia não teria se valido disso? se ela se arroga superioridade
pelo critério da “precedência” como afirma Frederico Morais, ela se crê
completamente original em sua pureza e se esquece de toda a fonte de sua
inspiração: a Grécia.
Encerro nossa reflexão
propondo um curioso questionamento quanto a isso, para ilustrar, brevemente, a
ocorrência da hibridização de onde menos se espera: se todas as grandes bases
da tradição europeia se inspiraram na estética clássica que a Grécia nos legou
(é o caso da arte greco-romana, depois o Renascimento e depois o Neoclassicismo)
e a Grécia de então era território oriental, inclusive, com forte influência
dos egípcios (país africano), então o que é isso que chamamos de arte europeia,
senão mais um produto de hibridização? Bem, se a questão não fosse, sobretudo,
mercadológica, eles próprios já teriam revisto seus conceitos.
Remedios Varo - El Flautista |
Bibliografia:
MORAIS
Frederico, “Reescrevendo a história da
arte latino-americana” in: I Bienal de artes visuais do Mercosul: I
Bienal de Artes visuales del Mercosur. [S.l.]: FBAVM, 1997.
MOSQUERA G.,“Contra el arte
latinoamericano”. 2009