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segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Reflexões sobre a Arte Latino-Americana




Di Cavalcanti - Mulata com Gato (1966)




A questão da arte na América Latina parece ter sofrido significantes alterações com as novidades que surgem na arte contemporânea. Para abordarmos o tema, contamos com as reflexões dos dois curadores: Frederico Morais (de 1997) e Gerardo Mosqueira (de 2009).
É importante ressaltar a data em que foram produzidos esses ensaios, pois veremos ao final que, ao contrário do que parece, eles não são antagônicos, mas complementares, o segundo texto, doze anos mais tarde, acaba por atualizar o primeiro, nos dando um panorama do que mudou e o que permanece rígido.

Frederico Morais sintetiza em seu texto o modo como desenvolvemos a arte na América Latina, relacionando-o especialmente com nosso caráter de povo colonizado, sobretudo nossa crise de identidade, que significou, entre outras coisas, um atraso para nossa pesquisa plástica.
O contexto político na América Latina sempre conduziu a criação plástica. E porque isso? Somos um povo cujo cotidiano está cercado pelas preocupações sociais e político-econômicas, falamos sempre da desigualdade, das injustiças, da miséria e da corrupção, de modo que o tema central em nossa arte concentrou-se por muito tempo nessas questões (como é o caso do muralismo no México); se pintamos o que sentimos, nossa arte tomou para si a função (ou mesmo o gosto) de contestar o cenário sócio-político a que o povo se via constrangido e isso, de certa forma, desacelerou, se assim podemos chamar, nosso avanço estético (ao menos em relação a arte europeia).

Em 1928, no Brasil, teve lugar um evento de importância continental para a arte latino-americana: Oswald de Andrade publica seu manifesto antropofágico, cujo objetivo era o de incitar os artistas a metabolizar as tendências artísticas europeias, para a partir disso “regurgitarmos” o novo, adaptado ao nosso contexto próprio; um processo de apropriação, mas seguido de ressignificação.  Essa ideia tem a característica inovadora de combater e enfrentar o establishment - que subjuga toda arte que não seja de seu interesse - e não mais consentir, acriticamente, suas normas. De nossa arte foi sempre exigida, pelas instâncias hegemônicas tradicionais (as bienais, os críticos e curadores, as revistas, os colecionadores, etc) uma originalidade, uma arte que fosse própria. Essa crítica acaba por condenar-nos, por mais que se crie, a uma eterna imagem de copistas.


A. Malfatti - Mario de Andrade (1921-22)

Essas instâncias, que, para Frederico Morais representam uma extensão da colonização (uma “neocolonização”) que, agindo com seus “estereótipos interpretativos”, continuam impondo sua supremacia com seus critérios muito próprios, valeram-se habilmente dessa nova estratégia (de apropriação e ressignificação), acusando-a de mera reprodução, sem considerar a inovação que com ela também nasceu. Para perpetuarem suas ditaduras estéticas, negam espaço ao novo ou regional e privilegiam os velhos paradigmas, eurocêntricos e dogmáticos, além de voltados, quase sempre, para fins econômicos.

Cândido Portinari - Café (1935)
Nas décadas posteriores ao Manifesto, vale lembrar, tivemos o continente permeado pelas ditaduras militares, as quais acabaram por delinear a arte latino-americana. O exercício da censura fortemente adotado pelos golpistas acabou por sugerir novas formas de arte, como a arte conceitual que aparece nas décadas de 60 e 70, devido a necessidade de se construir uma linguagem cifrada e metafórica. Posteriormente, com os museus e galerias interditados, a arte se vê forçada a ir para fora dessas instituições, onde nasce uma arte de rua e que permita a participação do público: assim nasce a arte nas formas de instalação, intervenção e happenings. O que nos indica, vale chamar a atenção, algo que nos é próprio, malgrado a crítica neocolonizadora. Nosso conteúdo político é muito próprio e portanto a linguagem artística que ele gera só pode ser, também, muito própria.



Cândido Portinari - Criança Morta (1944)



Di Cavalcanti - Carnaval (1965)

Conforme Gerardo Mosquera, que também dará suporte à nossa posição, vemos que na arte contemporânea, surgem novos atores culturais e artísticos, que, por meio da internet e a globalização dos meios de comunicação, aprendem a arte contemporânea e para ela “saltam”, desprendendo-se da arte tradicional: criam grupos e espaços alternativos, justamente pela ausência de infra-estruturas, de forma que acabam por reagir à arte comercial, realizando a arte pela arte. Isso nos sugere que quem decide agora sobre arte são os artistas e não os curadores, críticos e demais representantes da arte hegemônica. Ao contrário, hoje os curadores é que devem se esforçar para estar em dia com tudo que surge em todos os cantos do mundo, de modo que, os novos “atores” estão redesenhando o cenário e revendo os repertórios impostos.

A arte contemporânea, segundo o autor, tem se mostrado, em certa medida, uma arte transgressora, pois ignora os cânones hegemônicos, reelabora seus sentidos e desestabiliza o status quo. Os novos artistas estão fazendo, e não digerindo para depois regurgitar; estão fazendo a partir de seu próprio imaginário e perspectivas e, de apropriação passamos finalmente para a fase da construção.



Xul Solar - Palacio Almi


Para Gerardo Mosquera, que escreve seu texto doze anos depois de Frederico Morais, vivemos um momento em que os contextos se tornaram globais e somos todos cosmopolitas - somos todos “cidadãos de um mesmo país”. Não se trata mais de se afirmar uma arte latino-americana ou asiática, somos falantes ou praticamos uma mesma linguagem, representada pela arte, significa dizer que as fronteiras não são mais geográficas, mas de linguagem artística – mas ainda, claro, a língua do mainstream.

Pensamos que todo o desprendimento dos cânones que a arte contemporânea realizou não soterra, ainda, a as instâncias tradicionais de poder que, embora sejam agora menos reverenciadas, permanecem em seus lugares. 
A tensão stablishment versus renovação, é significante. A neurose da identidade, segundo Mosquera, ainda existe, não foi totalmente superada, contudo, os artistas já conseguem se libertar da exigência de retratar nosso exotismo ou explicitar, necessariamente, nossas diferenças.

Exposto isso, como adiantado no início de nossa reflexão, podemos notar que os dois argumentos, dos diferentes autores, apesar de separados por uma década, se complementam.
Estamos de acordo com ambos: com o primeiro autor porque continuamos sob os olhos da crítica (e seus adendos) que ainda exerce um papel colonizante e garante o status quo tradicional; com o segundo autor porque testemunhamos, de fato, no universo artístico atual, uma pluralidade de estilos e representações diversas (culturais, geográficas, estéticas) que antes não tinham espaço, literalmente, na cena artística (provavelmente a internet, além de outros fatores, tem algum mérito nisso).

Pensamos que, com efeito, na arte contemporânea já não se vê contornos tão rígidos que distinguem uma arte europeia de uma asiática ou latino-americana. É certo que há uma liberdade de criação maior, porém essa liberdade de criação não garante uma liberdade de participação nos eventos internacionais, que divulgam e consagram os artistas e seus trabalhos, como as bienais e museus fazem com a arte europeia. Há mais espaço porque esses artistas é que buscaram alternativas, não por terem-na recebido espontaneamente.
Ao que nos consta, continuamos vendo nossa arte limitada aos museus metropolitanos, como bem cita F. Morais, “como um troféu de caça”. Se, como já citamos acima, nosso conteúdo político é muito próprio e portanto a linguagem artística que lhe é correspondente também é muito própria, ao crivo de quem devemos submeter nossa produção artística? Os europeus não vivem nem compreendem nossa realidade, então porque deveriam julgar nossa arte? Se não entendem nossos significados faria sentido serem eles o nosso “júri”?

Enquanto pedirmos a aprovação dessas instâncias, continuaremos legitimando sua superioridade, tão embasada na “precedência” (o que também é discutível, como analisaremos adiante). Dado isso, seria plausível organizarmos nossa própria “banca”, de latino-americanos, e somente com ela nos preocuparmos?

Xul Solar - Vuel Villa



Roberto Matta - Bringing the Light without Pain


Falando na pretensa superioridade da arte europeia e com base na afirmação de Gerardo Mosquera de que  todas as culturas se “roubam”, são híbridas e dificilmente encontraremos uma que seja pura, onde seus receptores remodelam esses elementos “roubados” (ou emprestados?) dando-lhes novo significado de acordo com sua realidade, me coloco a pergunta: será que a própria arte europeia não teria se valido disso? se ela se arroga superioridade pelo critério da “precedência” como afirma Frederico Morais, ela se crê completamente original em sua pureza e se esquece de toda a fonte de sua inspiração: a Grécia.

Encerro nossa reflexão propondo um curioso questionamento quanto a isso, para ilustrar, brevemente, a ocorrência da hibridização de onde menos se espera: se todas as grandes bases da tradição europeia se inspiraram na estética clássica que a Grécia nos legou (é o caso da arte greco-romana, depois o Renascimento e depois o Neoclassicismo) e a Grécia de então era território oriental, inclusive, com forte influência dos egípcios (país africano), então o que é isso que chamamos de arte europeia, senão mais um produto de hibridização? Bem, se a questão não fosse, sobretudo, mercadológica, eles próprios já teriam revisto seus conceitos.


Remedios Varo - El Flautista





Bibliografia:

MORAIS Frederico, “Reescrevendo a história da arte latino-americana” in: I Bienal de artes visuais do Mercosul: I Bienal de Artes visuales del Mercosur. [S.l.]: FBAVM, 1997.

MOSQUERA G.,“Contra el arte latinoamericano”. 2009

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