Nesta resenha trataremos de expor
as principais ideias do segundo capítulo da obra “Que é a
Literatura”, de Jean-Paul Sartre, intitulado como “Por que
escrever?”.
Sartre inicia o texto convidando-nos
a refletir as razões múltiplas por que um artista se decide a
empenhar-se em uma obra. Para alguns a arte é um modo de “fuga”,
para outras uma “conquista” (2004: 33), mas por que um escritor
escolhe como forma de fuga ou conquista o exercício da escrita? Para
o autor, há por trás disso uma escolha “mais profunda e mais
imediata” comum a todos eles e essa é a questão central deste
segundo capítulo de sua obra, a qual nos dedicaremos a compreender.
Para acompanharmos as ideias do
autor é mister compreender um conceito que as rege, o de que a
realidade humana é “desvendante” (2004: 33), isto é, o homem
apresenta-se como condição para que as coisas recebam existência;
é ele “o meio pelo qual as coisas se manifestam” (idem). Nós é
que articulamos as relações entre as coisas, atribuindo-lhes assim
significados, como exemplifica Sartre (2004:34): “graças a nós
essa estrela [...] essa lua nova e esse rio escuro se desvendam na
unidade de uma paisagem”. Com isso quer dizer o autor que é
segundo nossos atos e em cada um deles que o mundo se nos revela sob
novas perspectivas. Contudo, ao mesmo tempo que nos sabemos como
condição na percepção do mundo, reconhecemos também nossa
“inessencialidade” para a existência dele, significa que, se por
um lado somos os “detectores do ser”, por outro, sabemos que, ao
nos distanciarmos de determinada paisagem, nós é que desaparecemos
dela, mas ela “permanecerá em sua letargia até que uma outra
consciência venha despertá-la”. Daí, conclui o autor, a nossa
certeza de sermos tão “desvendantes” quanto “inessenciais em
relação à coisa desvendada” (idem).
Contornar esse sentimento de
inessencialidade é um dos “principais motivos”, crê o autor
(idem), da criação artística: tendo a consciência de criar o
objeto, como ocorre na pintura de um rosto ou de uma montanha,
introduz-se “ordem” e impõe-se “unidade de espírito” onde
antes não havia, deste modo, adquire-se o sentimento de ser
essencial, para aquela criação. Todavia, há agora um elemento que
me escapa: ao criar um objeto, não posso, ao mesmo tempo,
desvendá-lo. Ocorre que não se pode, diz Sartre (idem), “considerar
a própria obra com os olhos de outrem e desvendar aquilo que se
criou”. Uma vez que o próprio artista estabelece suas regras e
métodos, sua intenção, seus sentimentos, não será possível
encontrar outra coisa, na obra criada, que não ele mesmo, a sua
própria subjetividade. Os resultados nunca poderão ser lidos de
forma objetiva, por já termos grande intimidade com as razões, as
motivações e os “processos” daquela obra que produzimos; esses
processos, afirma Sartre, “são nós mesmos”, de modo que, na
percepção, o objeto revela-se essencial enquanto o sujeito
mostra-se inessencial, pois, ao conquistar a sua própria
essencialidade (pelo ato da criação), acaba por privar dela o
objeto, tornando-o, assim, inessencial. Para Sartre, a arte de
escrever é a atividade mais exposta à dialética descrita
acima.
Acerca disso, o autor nos explica
que o “objeto literário” tem uma peculiaridade que o deixa
passível de não se completar, por maior que seja o empenho de seu
criador - o escritor, o poeta, o filósofo. Trata-se da condição
que lhe é intrínseca: para realizar-se precisa de um trabalho
conjunto entre autor e leitor. Se ler implica imaginar, formular
hipóteses, “prever” e “esperar”, entre outras atitudes,
então o escritor não pode ser o leitor de sua própria obra. “Sem
espera, sem futuro, sem ignorância, não há objetividade” (2004:
36). Assim, acrescenta o autor, “para onde quer que se volte, o
escritor só encontra o seu
saber, a sua
vontade, os seus
projetos, em suma, a si mesmo [...] o objeto por ele criado está
fora do seu alcance, ele não o cria para
si”, tratando-se,
portanto, do efeito que causa nos outros, ele mesmo nunca poderá
sentir, de fato, os efeitos de sua obra. É por essa razão que
Sartre caracteriza, no caso da escrita, o ato criador como “apenas
um momento incompleto”, isto é, a produção da escrita requer,
incontornavelmente, o ato da leitura (seu “correlativo dialético”).
“É o esforço conjugado do autor com o leitor que fará surgir
esse objeto concreto e imaginário que é a obra do espírito”.
Trata-se de uma síntese de percepção (leitor) e criação (autor),
é isso que ocorre no ato da leitura, momento em que, de fato, a obra
se completa e se concretiza.
O leitor, por sua vez, ao desvendar
o objeto de leitura, também está realizando uma criação, no
entanto, esse desvendamento não ocorre de maneira automática, mais
do que ler as palavras como signos, é preciso mergulhar-se na obra,
lançar-se para além da escrita, entregar-se. O sentido do objeto
literário, adverte Sartre, se dá ”através
da linguagem”, mas nunca é dado “na
linguagem”, dá-se antes por meio do “silêncio” (ou “o
inexprimível”) e “contestação da fala” (“O sentido não é
a soma das palavras, mas sua totalidade orgânica”) (2004: 37).
Para isso, enfatiza Sartre, o que se espera do leitor é uma completa
dedicação ao texto.
O processo da leitura consiste em
uma “criação dirigida”, o que significa que cabe ao leitor
conectar os dados fornecidos pelo autor e construir, à partir de sua
própria subjetividade, o sentido que permeia a obra. O filósofo
chega a afirmar que: “o objeto literário não tem outra substância
a não ser a subjetividade do leitor” (2004: 38) e ilustra a
questão ao indicar a espera de Raskolnikoff (personagem de
Dostoiévski em Crime e
Castigo) como a minha
própria espera – que
eu “empresto” a ele (idem). É esse o motivo pelo qual a criação
literária, segundo Sartre, só se concretiza no ato da leitura, por
haver uma intenção em todo ato de escrever; por haver uma espécie
de convite por trás de toda escrita, que só é aceito, por parte do
leitor, mediante a leitura; é por meio dessa característica, vale
lembrar, que o filósofo diferencia a prosa da poesia:
caracterizando-se mais pela utilidade do que pela beleza, isto é, o
texto literário é especial no sentido de valer-se da linguagem
sempre com uma intenção: a de comunicar algo que incite à ação,
não à mera contemplação.
Sartre afirma que “o artista deve
confiar a outrem a tarefa de completar aquilo que iniciou” (2004:
39) e isso implica em dizer que toda obra literária é um “apelo”
(idem). O que vem a ser este apelo? Precisamente que o leitor aceite
vivenciar a experiência de Raskolnikoff, por exemplo. Para Sartre, o
apelo que o escritor faz refere-se, sobretudo, à liberdade do leitor
– é ela (ou seu uso) que, espera o escritor, contribuirá na
produção de uma obra literária; é respondendo à obra que o
leitor faz uso de sua liberdade. “A leitura é um sonho livre”,
afirma o autor, sendo assim, podemos entender que a proposta
fundamental do escritor para o leitor é justamente que este faça
uso de sua liberdade, pois, o livro “não é um meio que vise a
algum fim: ele se propõe como fim para a liberdade do leitor”, com
isso Sartre quer dizer que não é o caso de a liberdade do leitor
colocar-se a serviço do livro ou da obra literária, antes a obra é
que se coloca, para o leitor, como possibilidade de exercitar a sua
liberdade. Ele acrescenta: “A liberdade não se prova na fruição
do livre funcionamento subjetivo, mas sim num ato criador solicitado
por um imperativo” (2004: 41).
Estamos diante de um ato de
confiança e de responsabilidade, demonstrados por Sartre, como ele
bem esclarece: “Se recorro a meu leitor para que ele leve a bom
termo a tarefa que iniciei, é evidente que o considero como
liberdade pura, puro poder criador [...] em caso algum poderia
dirigir-me à sua passividade” (idem). Ao valorizar o papel do
leitor como fundamental na obra literária, o filósofo trata a obra
de arte como valor e aqui estamos diante de um conceito caro para a
filosofia de Sartre: o engajamento. Analisemos de que modo ele se
insere na dimensão literária.
Para Sartre, já sabemos, a leitura
é “um exercício de generosidade”, um momento em que o leitor
concede doar “toda a sua pessoa”, com todas as suas qualidades,
paixões, “escala de valores” (2004: 42), etc. Entregando-se com
generosidade, crê o autor, a liberdade atravessa essa pessoa,
transformando sua sensibilidade (idem), que poderá resultar em ação.
É com vistas a essa transformação, dotado de certa habilidade e
compromisso, que o escritor engajado direciona suas ideias na
construção da obra literária - não como imposição, mas como
sugestão, ficando ao poder do leitor interpretar esses dados e agir.
É responsabilidade do autor, como bem avalia a professora Clarice
Fortkamp Caldin em seu texto A
Leitura segundo Sartre,
“apontar os acontecimentos históricos sem se esconder sob o manto
da neutralidade”, embora fique inteiramente a critério do leitor o
plano da ação.
Importa saber que, para Sartre, todo
ato criador visa o que ele chama de “uma retomada total do mundo”.
Esse conceito ficará mais claro se observarmos a seguinte passagem:
“Cada
quadro, cada livro é uma recuperação da totalidade do ser; cada um
deles apresenta essa totalidade à liberdade do espectador. Pois é
bem essa a finalidade última da arte: recuperar este mundo,
mostrando-o tal como ele é, mas como se tivesse origem na liberdade
humana” (2004: 47).
E acrescenta:
“é
pela cerimônia do espetáculo – e particularmente da leitura –
que essa recuperação é consagrada” (idem).
Com efeito, o engajamento está no
ato de compreender que a liberdade é atividade criadora e, partindo
desta premissa, orientar a experiência estética, que o leitor
extrairá da leitura para uma possível vontade de agir, é não só
o que constitui o ato engajador de uma obra, como também o mínimo
que se deve esperar de seu criador. Esse é o sentido, para Sartre,
do fenômeno estético (2004: 48). Sendo mais assertivo, Sartre
afirma: “[...] o mundo é minha tarefa [...] a função essencial e
consentida da minha liberdade consiste precisamente em fazer vir ao
ser, num movimento incondicionado, o objeto único e absoluto que é
o universo” (2004: 49). É essa a mensagem essencial que deve
chegar ao leitor, dado que, para Sartre, “a função do escritor é
fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente
diante dele” (2004: 21).
Sartre encerra o capítulo em
questão refletindo o alcance e a extensão do ato de escrever. Ao
mencionar que “não se escreve para escravos” (2004: 53), o
filósofo considera que a prosa e o regime democrático (“o único
regime onde a prosa conserva um sentido”) mantém entre si uma
relação importante, sendo que a ameaça de um deve representar a
ameaça do outro. Nesta situação Sartre se permite avançar para
uma radicalização maior, se assim pudermos chamar: o autor admite
que pode haver momentos em que a pena não basta e então será
“preciso que o escritor pegue em armas” (2004: 53). Com isso o
autor parece querer ressaltar não só que considera uma forma (de
combate) tão importante quanto a outra, mas também que ambas podem
ser “violentas”, e, para além disso, que ambas representam
formas legítimas de engajamento - quer pela escrita, quer pela
batalha, dado que ambas significam lutar pela liberdade, sobretudo,
defendendo os “valores ideais”, e finaliza:
“Qualquer
que seja o caminho que você tenha seguido para chegar a ela
[liberdade], quaisquer que sejam as opiniões que tenha professado, a
literatura o lança na batalha; escrever é uma certa maneira de
desejar a liberdade; tendo começado, de bom grado ou à força, você
estará engajado” (2004: 53).
Bibliografia
Sartre
J.P. Que é a Literatura?. São Paulo: Ed. Ática, 2004.