Em seu ensaio
Shakespeare, J.
G. Herder nos
permite vislumbrar um debate particular, recorrente no ambiente
alemão, suscitado pela estética do drama
shakespeareano e seus
preceitos singulares. Nos idos de 1760 havia certa
discussão acerca
das
peças do dramaturgo britânico, a respeito, sobretudo, de sua
ruptura com os padrões
clássicos, deixados
pelos modos gregos. Dado o seu desprendimento desses padrões
estéticos, predominantes, o questionamento instaurado pelo debate
colocava em dúvida o valor dessa arte e sua própria legitimidade
enquanto “tragédia”.
Em sua reflexão, Herder atenta
para o fato de que a obra de
Shakespeare e sua larga
repercussão fora, em
grande medida, expandida pela
interpretação que dela se fez: deve-se,
pois, ao trabalho daqueles
que a criticaram, que a defenderam, que a condenaram, traduziram,
etc; entre adversários e
admiradores, há,
entretanto, um aspecto para o qual Herder nos chama a atenção: com
base em sólidos
preconceitos; os
críticos de Shakespeare limitaram-se a ler as
obras pelas “lentes
do classicismo” e,
assim, acabaram por
reduzí-la, segundo o autor,
a uma “caricatura”. Assim, ao lado dos muitos adversários
de Shakespeare, que não lhe reconheciam como um bom dramaturgo, por
distanciar-se dos autores trágicos clássicos - Sófocles,
Eurípedes, Corneille e Voltaire - cometem o mesmo equívoco também
os seus defensores,
que teriam tentado apenas “desculpá-lo” pelas regras violadas e
“salvá-lo” destacando as belezas de sua obra.
Herder identifica, pois, que ambas as partes uniam-se
por adotarem o mesmo preconceito
- classicista – como
base para construir seus argumentos. (“de ambos os lados, se
edificou com fundamento apenas num preconceito, numa ilusão, que
nada é”, p. 38).
O projeto de Herder guia-se,
contudo, pelo movimento contrário: prevê não continuar este
“edifício” dos preconceitos neoclássicos, mas distanciar-se
dele (“Que biblioteca já se escreveu sobre ele, pró e contra ele!
- e de forma alguma estou disposto a aumentá-la ainda mais”), na
tentativa de compreender a obra nórdica e atribuir-lhe o valor que
lhe for digno. A pretensão
de Herder seria,
pois, em suas próprias palavras, “esclarecê-lo”.
E seu projeto, cumpre citar,
visava sobretudo extrair dessa reflexão algum proveito para sua
própria cultura (“sentí-lo como é, para serví-lo e – onde for
possível – para nô-lo reproduzir a nós, alemães”) (p. 37).
Em seus trabalhos acerca da estética
e do idealismo alemão, a professora norte-americana Kristin Gjesdal,
que analisa a contribuição de Herder e situa o debate sobre a obra
de Shakespeare no âmbito da estética enquanto nova disciplina,
chama-nos a atenção para o fato de que, dizendo respeito aos
críticos e também aos filósofos, tratava-se de uma questão que
suscitava, antes de qualquer coisa, a reflexão crítica e
sistemática sobre uma “condicionalidade [conditionedness]
histórico-cultural” do pensamento. Seria a partir dessa noção
(de condicionalidade)
que, segundo a autora, Herder voltou-se para o caso de Shakespeare. É
alinhando esta
noção à ideia de
preconceito, que Herder
concentra seus esforços em
entender as origens da má
recepção sofrida pela
tragédia de Shakespeare.
Ao observar a devoção,
irrefletida, por assim dizer, com que se persegue os dogmas
clássicos, Herder
identifica-a como a primeira premissa a ser questionada. A noção de
“condicionalidade
histórico-cultural”,
surgirá nesse âmbito (nessas análises) e sustentará as
observações
de Herder acerca do preconceito, como um problema que impediria a
crítica mais coerente e
justa, a seu ver, da tragédia
nórdica.
O pensamento de Herder se dará,
então, em três momentos:
a) pensar as origens do drama grego (para); b) diferenciá-lo do
teatro francês que, a seu ver, estão muito distantes dos cânones
helênicos e, finalmente; c) ressaltar as qualidades de Shakespeare
que - a despeito de seus caminhos, controversos - “reivindicariam”
para si valor análogo ao da tragédia grega. Sem perder de vista a
ideia central com que o autor delineará esses movimentos: a de
desnudar ou evidenciar os preceitos (infundados)
com que se privilegia as premissas clássicas, cumpre analisar o
desenvolvimento de sua reflexão.
A respeito das origens da tragédia
grega, Herder lembra que as palavras drama,
tragédia e comédia
foram herdadas pelos gregos e que, tal como o fez a cultura da
escrita, elas teriam
aberto seu “caminho” por meio da tradição. Assim,
junto delas nos
teria chegado todo
um
“acervo de regras”,
o que,
para
o autor, explicaria,
em certa medida, as
exigências do classicismo, revelando, ao mesmo tempo, a sua própria
inconsistência. Com
o intuito de problematizar esse “acervo de regras”, Herder
recorre a uma analogia para descrever a relação entre os dramas
grego e nórdico: tal como ocorreria com as crianças, diz o autor, a
formação das nações não se processam pela razão, mas pela
percepção e pela impressão, “pelo que há de divino no exemplo
e no
uso (…). E “Elas [as
nações]”, acrescenta o autor, tal qual uma criança “nunca
receberão a semente sem invólucro” (p. 39).
O que Herder quer dizer nessa
passagem fica mais claro
quando ele
afirma que na Grécia surge um drama que “não poderia ser o do
norte”, mas que, entretanto, poderá ser desenvolvido (como foi)
até adquirir características próprias, isto
é,
embora a tragédia grega seja seu
“invólucro” e mesmo o “exemplo”, o drama
nórdico teria
tomado
rumos
distintos,
para encontrar seus próprios
significados (que
diz respeito ao seu
ambiente, sua história, seu espaço, etc).
O autor lembra ainda que a
própria tragédia grega,
originada do coro e do ditirambo, também
recebera
“acréscimos” de
Ésquilo e Sófocles e, só assim, “após longo desenvolvimento”,
teria-se elevado
o drama grego “à sua grandeza” e,
o autor acrescenta,
“essas origens vêm a esclarecer certas coisas que, quando
admiradas como regras mortas, levam a mal-entendidos terríveis”
(p. 40). Nessas passagens, importa destacar, o objetivo de Herder é
evidente: demonstrar como a exigência de se seguir os preceitos
originários, neste caso as
regras rígidas de um
“antecessor” (hoje os
clássicos), não foi
preocupação fundamental dos primeiros autores trágicos (dos
próprios gregos) e, mais
que isso, nessa postura estaria, também,
a razão pela qual houve, de
fato, desenvolvimento
entre os gregos. (“Dado
que tudo no mundo se modifica, também teve de modificar-se a
natureza que foi o que propriamente criou o drama grego”, p. 43). O
próprio Aristóteles, em sua obra Poética, ressalta
Herder, teria dito o
contrário do que tradicionalmente se interpreta; “o grande homem”,
diz o autor,
“filosofava no amplo sentido do seu tempo (...)”. Pra
complementar a ideia, o autor lança mão de uma
passagem chave para demonstrar essa compreensão aristotélica: “Não
conhecia nem reconhecia outras regras que os olhos do espectador, que
a alma, que a ilusão!” e finaliza: “a arte dos poetas gregos
trilhou justamente o caminho oposto àquele que hoje nos querem
impingir aos gritos” (p. 42). À
partir disso, nota-se que
preconceito, em
Herder,
estaria no
ato de exigir de
toda a produção originária de uma matriz, a simples
(e eterna)
reprodução de sua origem; de
querer
que a “semente”, para continuar o conceito de Herder, em vez de
desenvolver-se, repita o próprio invólucro, o
que significaria impôr as condições (uma “condicionalidade”)
que já dizem pouco às produções “hodiernas” e, por isso
mesmo, as tornam artificiais. Significa dizer que, para Herder, é
essencial considerar as novas circunstâncias que atribuem
significado e valor a uma produção, segundo o tempo e espaço em
que elas nascem.
Este momento do ensaio de Herder
apresenta grande originalidade e contribuição, por nos remeter à
ideia de que, nesse sentido (de desenvolvimento, pelo desprendimento
dos antecessores) o drama nórdico, por tomar rumos distintos,
seguindo premissas próprias e singulares, se encontraria mais
próximo dos gregos (de sua
autenticidade) que os tão
aclamados dramaturgos franceses, cujo
teatro seria, a despeito do valor inegável de seus autores, apenas
uma tentativa, um “macaquear”, distante da tragédia grega.
Esse movimento, que Herder opera em sua reflexão, é,
ainda,
fecundo por
apontar para uma inversão de valores - ao se colocar as
peças francesas
como modelo e as
britânicas
(representadas
por Shakespeare) como objeto de crítica – digna de revisão.
Com efeito, no
que diz respeito às regras teatrais, atribuídas a Aristóteles –
unidade de tempo, de lugar, de ação, etc - Herder confere aos
franceses Corneille, Racine e Voltaire, grande valor; elogia seus
versos e rimas, a “regularidade, riqueza e brilho” e outras
qualidades. Contudo, o autor
faz uma observação contundente, ao dizer que
“isso não é tragédia grega! (…) nem na finalidade, nem no
efeito, nem no gênero, nem na essência!”. Esses autores, admite
Herder, falam a linguagem do sentimento, seguem em grande medida o
“seu” Aristóteles, entretanto, “são retratos de sentimentos
de terceira e alheia mão; nunca, porém, ou raramente, emoções
diretas, imediatas, sem afetação, que buscam palavras e por fim as
encontram”. Ainda
que belo, educativo e instrutivo, arremata Herder, seus objetivos
ficam longe do “objetivo grego”, isto é, a “comoção do imo”,
“o excitamento da alma (…)”, diz, “que realmente nenhuma peça
francesa conseguiu nem conseguirá realizar [pois que
nela] faltam todos os elementos da comoção, o fim e a realização
do fim” (pp. 46 – 47).
Exposto isso, o movimento seguinte
de Herder, que assume não ter, ainda, decidido nada sobre “valor e
desvalor”, mas somente destacado a “diferença” entre as duas
estéticas, será apontar para um povo que, ao contrário, isto é,
“ao invés de macaquear”, radicaliza o autor, decidiu “inventar
para si mesmo o seu drama”; e inventou segundo “a sua história”,
“o espírito da época, os costumes, as opiniões, o idioma, as
convenções (…) paixões nacionais (…) (tal como os nobres
gregos o fizeram partindo do coro)” (p. 48). Ele
refere-se aos nórdicos e
aqui deixa
explícito as razões pelas quais o drama shakespeareano se aproxima
dos gregos, na mesma medida em que dela se afasta o teatro francês.
É por esse caminho que, conclui Herder, esse povo (“junto ao seu
grande Shakespeare”) alcança o que o autor chama de “fim
dramático”. De qualquer modo, vale mencionar, o elogio de Herder
não consiste em aproximá-los, britânicos e gregos (exceto por essa
característica de desenvolvimento próprio),
mas, ao contrário, por toda a diferença e
singularidade – o que por
mais de uma vez ele exalta, dizendo:
“que distância da Grécia!”.
Ao nos remeter aos gregos que,
partindo do coro, construíram seu próprio edifício, em alusão aos
nórdicos, Herder é enfático
ao propor
o seguinte questionamento: quem poderia condená-los, “só por essa
segunda criação não ser a primeira?” Ele ressalta que sua
virtude estaria exatamente
no fato de não ser a primeira (uma
repetição dela), ou, em que
“do solo da época, nasceu de fato outra planta” (p. 49). A esse
respeito, é curioso pensar que no ensaio de Herder, ao
identificar a crítica do teatro francês (como o reverso do elogio a
Shakespeare) que, a seu ver, poderia buscar sua própria estética,
cujas referências fossem os elementos de seu próprio tempo e
realidade, identifica-se, também,
o impulso moderno pela criação, superando o elogio da mímese
(imitação), tão ativo no período em que Herder
está inserido: o
Neoclássico. Nesse sentido, poderia-se pensar Herder, que está há
um século, aproximadamente, de uma estética efetivamente modernista
(no sentido militante),
como um pensador bastante a frente de seu tempo, ao destacar em
Shakespeare (defender a sua obra), pela qualidade de “criador”.
Ele antecipa um
valor (o desprender-se
do passado), que será inegociável na
estética do século XIX (embora,
ironicamente, francesa), que
se deixa sentir em várias passagens, como essa: “Apanhou a
história como a encontrou, e compôs com espírito criativo, num
Todo maravilhoso, as coisas mais diversas” (p. 50).
A ideia do “Todo” também
desempenha papel importante na avaliação que Herder faz acerca do
dramaturgo britânico. Segundo o autor, Shakespeare canaliza suas
peças para um acontecimento, um evento. Nele, entretanto, alcança a
linguagem de “todas as idades, de todos os homens e espécies de
homens”; “ensina, comove e forma homens nórdicos”, tal qual
fizeram os gregos com os homens de seu tempo. O
valor em Shakespeare, segundo as observações de Herder, está não
só no seu desprendimento dos dogmas classicistas, mas na
universalidade dos sentimentos que ele manifesta à partir de um
acontecimento particular.
Direcionando
uma “situação” a um
“Todo”, em Shakespeare
estaria
tanto a individualidade quanto a universalidade.
O
britânico, diz Herder,
respira a “alma do acontecimento”, “ordena com o olhar” e
“anima com o sopro criador da sua alma”, arrastando consigo
“atenção, coração, todas as paixões, toda a alma” - eis o
que seria, entendido por Herder, o drama e o poeta dramático. Mas
Herder insiste: “o que há aqui não é [só] um poeta! É um
criador! É história universal!” (p. 55). Universalidade é
característica importante na criação de Shakespeare, porque é o
que fala a todos os indivíduos, mas,
também
importante na reflexão herderiana, apresenta-se a qualidade de
criar, e essa é uma característica notável, como
dito, pela antecipação que
ela evoca, no pensamento de Herder,
Finalmente, exaltando essa
indiferença à medida do tempo (para
citar apenas um elemento),
Herder conclui sua reflexão lamentando que o “criador de história
e alma universal” envelheça cada vez mais, até o dia em que se
tornar uma “ruína de colosso” que “todos admiram e ninguém
compreende”, mas sem, com
isso, deixar de se mostrar
grato por viver os tempos finais em que ainda era possível
entendê-lo e por viver,
acrescenta (referindo-se a Goethe), nos
tempos em que:
“tu,
meu amigo (…) [ainda pode] reconstruir o seu monumento, em nossa
língua, para a nossa pátria tão extraviada, inspirando-te na época
dos cavaleiros medievais. Eu te invejo o sonho, desejando que tua
ação nobre e alemã não arrefeça até que a grinalda coroe o teu
esforço” (p. 63).
Com isso, a intenção que se esboça
no começo se confirma ao final do texto, de que Herder visa
um despertar da cultura
alemã, mas em um sentido
inovador, modernizante (muito
embora essa palavra não apareça em suas observações),
que se inspirasse, em uma
palavra, não no teatro francês, mas no britânico.
Ademais, pode-se pensar que a
expectativa que Herder depositava
em seu conterrâneo, que iria
liderar o Romantismo em fins do século XVIII, seria mais que
atendida, se ele pudesse testemunhar as sementes deixadas por esse
movimento cultural, cuja dialética, se assim pudermos chamar,
culminou nas estéticas modernistas (como a impressionista), que
romperam de vez com os preceitos (e preconceitos) e toda a rigidez
classicistas para valorizar definitivamente o tempo e espaço
próprios. E, nesse
sentido, não seria arriscado
entendermos o desprendimento
de princípios, o respeito à realidade distinta, e a observação do
presente - no elogio do drama nórdico - como
elementos que caracterizam o
pensamento de Herder como uma
intuição, de certa forma,
daquilo que viria a
constituir o próprio
solo da modernidade
artística.
É nas
reflexões concernentes
à
obra shakespeareana que, nos
parece, estaria a mola
propulsora dessa “intuição”.
Bibliografia:
HERDER,
J. G.
Shakespeare. New
Jersey: Princeton University Press, 2008.
Autores
Pré-Românticos Alemães / Introdução e notas de Anatol Rosenfeld
– São Paulo: EPU, 1991.
Websites
consultados:
(visitado
em 10.12.2014)
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