“A
arte protesta contra as relações sociais vigentes na medida em que
as transcende. Nesta transcendência, rompe com a consciência
dominante e revoluciona a experiência”.
É desta forma que Herbert Marcuse (1898-1979) nos introduz ao tema
desenvolvido em sua obra "A Dimensão Estética". Publicado
em 1977, este ensaio afirma, em uma perspectiva pouco otimista da
sociedade industrial – que é tão orientada para fins econômicos
- o potencial da arte como resistência ao processo reificador e,
portanto, como instrumento de libertação da ordem vigente. Por
evocar uma realidade à parte (que é objeto de nosso estudo), a
dimensão da arte subtrai-se ao chamado mundo administrado (1)
- conceito caro aos frankfurtianos - onde se opera a manipulação de
consciências, orientadas para a lógica mercantil, predominante na
realidade contemporânea. Nela encontra-se a possibilidade de abrir
uma nova dimensão da experiência, de forma a criar uma outra
realidade, que possa comunicar verdades de outro modo incomunicáveis.
O propósito deste trabalho será analisar de que maneira, na leitura
de Marcuse, esse processo se realiza.
Para
a compreensão da estética marcuseana, cumpre lembrar que o programa
estético da escola de Frankfurt, a qual Marcuse integra, está
orientado sobretudo para a libertação e emancipação, isto é,
opõe-se radicalmente à ortodoxia do realismo socialista - proposta
estética marxista -segundo a qual, apenas as obras que manifestem
partidarismo político têm seu valor reconhecido.
Numa
primeira aproximação, pode-se pensar a teoria estética de Marcuse
como uma espécie de impugnação à ortodoxia da estética marxista;
ainda que sem romper com o materialismo histórico (2).
Analisando em detalhe, nota-se que a ortodoxia marxista considera que
as obras de arte devem relacionar-se sempre com as relações de
produção existentes, sendo sua qualidade e sua verdade
condicionadas por esse critério: significa que a obra de arte deve
representar, fundamentalmente, o mundo e os interesses de
determinadas classes sociais, mais especificamente, a classe
proletária. Marcuse, por sua vez, analisa a arte no contexto das
relações sociais predominantes e também lhe reconhece função e
potencial políticos, no entanto, ao contrário da visão marxista,
que, a seu ver, reduz a arte a uma manifestação mecanicista,
considera que o potencial político da arte reside “na própria
arte”, isto é, “na forma estética em si” (Marcuse, 1981, p.
11), pois, assinala o filósofo, “em virtude de sua forma
estética” a arte é “absolutamente autónoma perante as relações
sociais existentes” (idem, p. 11), isso quer dizer que seu conteúdo
possui força legítima, independendo, assim, dos critérios impostos
pela estética marxista para assegurar seu valor e sua verdade. Em
sua autonomia, a arte (já) contesta as relações sociais
existentes, bem como as transcende; ela “subverte”, por si só,
“a consciência dominante e a experiência ordinária” (idem, pp.
11-12), não sendo necessário, pois, assumir uma posição de
classe, em detrimento do elemento subjetivo de sua construção.
Desse modo, a teoria estética de Marcuse se afigura como uma
proposta alternativa à estética marxista. Esta última é resumida
pelo filósofo em seis pontos fundamentais em sua obra, o que nos
convém citar na íntegra. Ele diz:
1.
Existe uma relação definida entre a arte e a base material, entre a
arte e a totalidade das relações de produção. Com a modificação
das relações de produção, a própria arte transforma-se como
parte da superestrutura, embora, tal como outras ideologias, possa
ficar para trás ou antecipar a mudança social; 2. Há uma conexão
definida entre arte e classe social. A única arte autêntica,
verdadeira e progressista, é a arte de uma classe em ascensão, que
exprime a tomada de consciência desta classe; 3. Consequentemente, o
político e o estético, o conteúdo revolucionário e a qualidade
artística tendem a coincidir; 4. O escritor tem a obrigação de
articular e exprimir os interesses e as necessidades da classe em
ascensão. (No capitalismo, esta seria o proletariado); 5. A classe
declinante ou os seus representantes só podem produzir uma arte
"decadente"; 6. O realismo (em vários sentidos) é
considerado a forma de arte que corresponde mais convenientemente às
relações sociais, constituindo assim a forma de arte "correta”
(idem, p.14).
Marcuse
problematiza a questão ao constatar que a interpretação
economicista e mecanicista que faz a teoria estética marxista
implica necessariamente em “uma noção normativa da base material
como a verdadeira realidade e uma desvalorização política de
forças não materiais, particularmente da consciência individual,
do subconsciente e da sua função política” (idem, p.15). A
questão central é: anular essa potência, de manifestação
interior e subjetiva, implica em negligenciar, precisamente, o
caráter subversivo da arte, sendo esta a razão pela qual Marcuse se
propõe, na obra que ora se analisa, a realizar o “reexame crítico”
(idem, p. 13) da estética marxista ortodoxa.
Na
interpretação economicista do materialismo histórico, Marcuse
observa consequências danosas para o mundo da subjetividade, das
emoções e da imaginação. Constata que, ao ignorar a subjetividade
dos indivíduos, a estética marxista incorre no mesmo erro que é
objeto fundamental de sua crítica: a reificação do sujeito, isto
é, acaba por endossar o sacrifício da subjetividade à serviço da
objetividade:
A
teoria marxista sucumbiu à própria reificação que expôs e
combateu na sociedade como um todo. A subjetividade tornou-se um
átomo da objetividade; mesmo na sua forma rebelde rendeu-se e
tornou-se um órgão executivo.
(idem, p.15).
Para
o autor, ao impor uma consciência de classe como qualidade
prevalecente na produção das obras de arte, a estética marxista
acabou por realizar a privação da consciência de si, do
reconhecimento e da livre manifestação da interioridade,
minimizando, assim, “um importante pré-requisito da revolução,
nomeadamente o fato de que a necessidade de mudança radical se deve
basear na subjetividade dos próprios indivíduos, na sua
inteligência e nas suas paixões, nos seus impulsos e nos seus
objetivos” (idem, p. 15).
Chegado
esse ponto, começamos a avistar de que forma Marcuse pretende
embasar seu argumento de que a arte logra abrir uma “nova dimensão
da experiência”, criando uma “outra realidade”, de modo que se
possa ao menos vislumbrar seu potencial emancipatório.
Com
a afirmação da interioridade da subjetividade, o indivíduo emerge
do emaranhado das relações de troca e dos valores de troca (os
verdadeiros valores da sociedade burguesa!), retira-se da realidade
desta sociedade e entra numa outra dimensão, essencialmente
diferente. (idem, p.16).
Marcuse
articula duas realidades distintas, se assim pudermos chamar, que
permanecem em tensão: a realidade existente (estabelecida) e a
realidade protegida na interioridade do sujeito (subjetiva).
Debruçar-se sobre uma realidade subjetiva, como é o caso da arte,
significa evadir-se da realidade objetiva, provocando a invalidação
dos principais valores burgueses e, deste modo, o foco da realização
individual é desviado do domínio do chamado “princípio de
realidade” (a realidade estabelecida). Isso significa que a
separação entre arte e subjetividade, como requer a estética
marxista, só pode resultar na perda do potencial revolucionário da
primeira. É precisamente a este ponto da estética marxista que
Marcuse dirige sua crítica: ao desejo de converter a consciência
individual e toda sua representatividade em mera coletividade:
A
subjetividade lutou por sair da sua interioridade para a cultura
material e intelectual. E hoje, no período totalitarista, tornou-se
mero valor político, tentando contrabalançar a socialização
agressiva e exploradora. Esta subjetividade libertadora constitui-se
na história íntima que é adequada ao indivíduo – da sua própria
história, que não é idêntica à sua existência social. É a
história particular dos seus encontros, paixões, alegrias e
tristezas – experiências que não se baseiam necessariamente na
sua situação de classe e nem sequer são compreensíveis a partir
dessa perspectiva” (idem, p.16).
Vislumbrando
a importância de se preservar a dimensão interior e individual,
compreende-se de que forma, ao transcender a realidade estabelecida,
a arte cria um mundo próprio que se opõe à realidade existente,
para abrir uma nova racionalidade e sensibilidade, as quais se
realizam apenas na sua forma.
A
arte cria o mundo em que a subversão da experiência própria da
arte se torna possível: o mundo formado pela arte é reconhecido
como uma realidade reprimida e distorcida na realidade existente...a
lógica interna da obra de arte termina na emergência de outra
razão, outra sensibilidade, que desafiam a racionalidade e a
sensibilidade incorporadas nas instituições dominantes (idem,
p.17).
Revela-se
então a transcendência para uma dimensão outra, que não a
realidade imediata; que “destrói
a objetividade das relações sociais”
e abre “uma
nova dimensão da experiência” –
que se reserva o direito de não se comprometer com as normas e os
valores dominantes. Ocorre, então, o que o autor denomina por
“renascimento
da subjetividade rebelde” ou a “contra-consciência”, que
vem a ser a negação de um pensamento “realístico-conformista”,
isto é, a negação de um modelo dado, e assim, extraída do
processo corrente da realidade, a arte termina por assumir “um
significado e uma verdade autônomos” representando a realidade,
“ao mesmo tempo que a denuncia” (idem,
pp. 18-19).
É
já ao início da obra que Marcuse nos chama a atenção para o fato
de que é na sublimação, proporcionada pela obra de arte, que se
torna evidente para o espectador aquilo que realmente lhe importa, o
que lhe é real, o que lhe apraz e o que lhe diz respeito,
desconectando-o, ainda que brevemente, de tudo aquilo que lhe causa o
sentimento oposto. Num processo em que lhe é revelado o conteúdo de
sua própria essência, se assim pudermos chamar, mostrando-a como
algo distinto e independente da realidade dada, o sentimento sublime,
produzido essencialmente pela obra de arte, executa uma espécie de
atualização e afirmação de seus projetos particulares: seus
sonhos e seus anseios mais profundos emergem na superfície;
apresentam-se com toda a força, e faz romper, em seu íntimo, com
projetos que só então são reconhecidos como alheios. Tal é o
poder da dimensão estética.
A
verdade da arte reside no seu poder de cindir o monopólio da
realidade estabelecida para definir o que é real. Nesta ruptura, que
é a realização da forma estética, o mundo fictício da arte
aparece como a verdadeira realidade (idem, p.19).
A
experiência estética torna-se, pois, “um veículo de
reconhecimento e acusação” (idem, p.19) e ao observar que “a
arte submete-se à lei do dado concreto, ao mesmo tempo que o
transgride” (idem, p.20), Marcuse nos indica que a autonomia da
arte se apresenta em uma forma dialética: uma dialética entre a
afirmação (ideologia) e, por outro lado, a denúncia do que existe
(verdade) faz parte integrante da estrutura interna da obra de arte.
Cumpre
observar que a arte a que Marcuse se refere é manifestamente a
literatura. Para exemplificar essa estética que revela “dimensões
da realidade interditas e reprimidas (arte pela arte)” (Marcuse,
1981: 26), o autor menciona a poesia de Mallarmé, que, para ele,
evoca uma “festa de sensualidade que destrói a experiência de
todos os dias e antecipa um princípio de realidade diferente”
(idem). Ao designar que uma tal obra destrói a experiência de todos
os dias, o autor nos confirma que é precisamente essa distância e
afastamento da práxis
o que constitui o valor emancipatório da arte, indicando, assim,
exatamente o contrário do que postula a estética marxista. Ao
desprezar a interioridade e o individualismo da literatura burguesa,
exemplifica o filósofo, a crítica literária marxista descartou,
inadvertidamente, o potencial contestatório da arte.
A
tensão entre arte e práxis é fundamental para a dimensão
estética: nisso reside seu potencial político e, uma vez que a arte
possui a sua própria dimensão de transformação, uma harmonização
com a práxis radical não só anularia esta dimensão, como também
a converteria em seu contrário: na dominação do mundo. No caso da
literatura, insiste Marcuse, o que conta é o destino pessoal dos
protagonistas, “não como participantes na luta de classes, mas
como amantes, vilões, tolos, e assim por diante”, isso quer dizer
que o universal que aparece em suas histórias está para além da
sociedade de classes.
Ocorre
que a natureza associal (ou não-conformada) destes personagens é o
que constitui, efetivamente, uma rebelião contra a ordem
estabelecida. Essa é a razão, inclusive, pela qual o autor suspeita
da cultura popular: porque essa, diferentemente dos exemplos citados,
evoca processos de ajustamento e não de questionamento, com relação
à ordem das coisas ou o chamado princípio de realidade. Se a arte
deve criar o seu próprio mundo, o qual nada tem a ver com a
realidade estabelecida; se ela desafia, como se disse, o monopólio
de uma única realidade existente, sua verdade só pode ser negação,
jamais adequação.
Também
são citadas obras de E. Allan Poe, C. Baudelaire, M. Proust e P.
Valéry, Victor Hugo, H. Balzac e F. Dostoievsky, como obras que
desvendam as já citadas “zonas interditas da natureza e da
sociedade”. Com esses e outros exemplos da literatura, o filósofo
assevera que a libertação é uma tarefa humana, que diz respeito a
todos os indivíduos, não apenas aos indivíduos proletários
enquanto membros de uma classe social, trata-se, antes, da
emancipação social dos próprios instintos da vida.
O
que o autor nos propõe, pode-se concluir, é uma possibilidade de se
proteger da reificação, agressiva e sistematicamente exercida pelo
chamado mundo administrado. Trata-se de perceber a dimensão estética
como uma derradeira esperança de se escapar à lógica predominante
na sociedade capitalista: uma lógica que cerceia os instintos da
vida e distancia os indivíduos de si mesmos. “A fuga para a
interioridade e a insistência numa esfera privada”, diz o autor,
“podem bem servir como baluarte contra uma sociedade que administra
todas as dimensões da existência humana” (idem, p.40). Nota-se
que a noção de subjetividade é destacada pelo autor como uma noção
subversiva, sobretudo, pelo fato de visar “uma dimensão de vida
não lucrativa” (idem, p.49), o que vem a representar a negação
do espírito capitalista, devolvendo ao indivíduo o contato com sua
própria humanidade.
A
esperança de Marcuse, observa-se, orienta-se por uma espécie de
mundo invertido, isto é, o mundo de uma obra de arte é, para o
autor, “irreal” (idem, p.53) no sentido de ser “uma realidade
fictícia” (idem), contudo, este mundo não é “inferior”, diz
o autor, à realidade existente, ao contrário, “lhe é superior e
qualitativamente diferente” (idem, p. 53):
Como
mundo fictício, como ilusão (Schein),
contém mais verdade que a realidade de todos os dias, pois esta
última é mistificada nas suas instituições e relações, que
fazem da necessidade uma escolha e da alienação uma auto-realização
(idem, p. 53).
De
forma geral, podemos assumir que a teoria estética de Marcuse
procura mostrar que a arte pode atuar, como ideia reguladora, na luta
pela transformação do mundo, uma vez que representa o objetivo
derradeiro de todas as revoluções: a liberdade e a felicidade do
indivíduo; pode atuar na transformação do mundo tanto por abrir
uma dimensão inacessível a outra experiência, em que os seres
humanos, a natureza e as coisas deixam de se submeter à lei do
princípio da realidade estabelecida, como por mostrar a liberdade
negada aos indivíduos pela sociedade repressiva. “O encontro com a
verdade da arte acontece na linguagem e imagens distanciadoras, que
tornam perceptível, visível e audível o que já não é ou ainda
não é percebido, dito e ouvido na vida diária” (idem, p.79).
Por
fim, podemos pensar que, se “toda a reificação”, como assinalam
Adorno e Horkheimer, “é um esquecimento” (1985: 215), a arte é
justamente o seu contrário: a arte é memória – memória do
sofrimento, memória da injustiça, memória do terror. É a arte o
que não deixa esquecer, o que não deixa escapar, o que resgata de
águas profundas e faz emergir na superfície, sentimentos, desejos,
valores e utopias; é álibi do espírito e inimiga da censura; é o
que combate a reificação por fazer “falar, cantar e talvez dançar
a palavra petrificada” (MARCUSE, 1981: 81).
NOTAS
- T. Adorno utiliza essa expressão para referir-se ao mundo burocrático, mercantilizado e competitivo da economia capitalista.
- O autor sublinha, em A Dimensão Estética, que sua teoria estética, bem como sua crítica à estética marxista estão construídos no interior mesmo da teoria marxista.
Bibliografia
MARCUSE,
Hebert. A Dimensão Estética. Lisboa: Edições 70, 1981.
ADORNO,
Theodor. W.; HORKHEIMER, Max. – Dialética do Esclarecimento:
fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
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