Translate

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Wifredo Lam - um artista do "VODU".

 

                                    Maternidad em verde, 1942. W. LAM.



Para entendermos a relevância deste artista cubano, importante representante de nossa cultura latino-americana, tão permeada de elementos de origens indígena e africana, além da herança europeia deixada pelo processo de colonização por que passou nossa história; desse importante expoente que deveria contribuir para o fortalecimento do ego latino-americano no campo artístico, importa realizarmos uma retrospectiva que aborde os principais acontecimentos em sua carreira, que teve destaque em vida, mas ainda assim, mediante as instituições eurocêntricas que legitimam os trabalhos e artistas que “devem” ou “podem” entrar para a história oficial da arte ocidental, sua obra, como a de tantos outros bons artistas não europeus, ainda é omitida nos “manuais” da história da arte. Sendo assim, por um dever de realizar, na medida do possível, certa “justiça histórica”, cabe analisarmos sua trajetória e tirarmos, nós mesmos, nossas próprias conclusões, independentemente do que deixam chegar as instituições “legitimadoras”, assim auto-proclamadas, ao nosso conhecimento.

Wifredo Lam é o oitavo filho de Enrique Lam Yam, comerciante chinês de 84 ano (quando Wifredo nasceu) e Ana Serafina, mulher de origem espanhola e africana. Nascido em 8 de dezembro do ano de 1902, Lam se instalará em Havana, aos 14 anos, onde se inscreverá na Faculdade de Direito, estudo pelo qual o futuro artista não se entusiasmará. Entre 1918 e 1923, ele frequenta a Escola de Belas Artes e expõe, já por volta dos vinte anos, suas primeiras obras no Salão da Associação de Pintores e Escultores de Havana.

Em 1923, aos 21 anos de idade, Lam embarca para Madri, onde viverá seus próximos 14 anos, e entra para o ateliê de Álvarez de Sotomayor, então diretor do Museu do Prado. Frequentador deste Museu e também do Museu Arqueológico, Lam desenvolve profunda admiração por Rubens, El Bosco e Pieter Brueghel, o velho. Realizará cópias de El Greco e viajará por toda a Espanha pintando retratos de camponeses espanhóis, de grande realismo, além de paisagens (da cidade de Cuenca) e naturezas mortas.

Em 1926, morre seu pai, aos 108 anos de idade e em 1931, devido a uma tuberculose, Lam perde também sua esposa Eva Píriz, com quem estava casado há 2 anos e também seu filho recém-nascido, de modo que os meses seguintes serão de grande dificuldade para o artista que, no entanto, superará suas perdas, focando-se fortemente em seu trabalho. Em 1936, aos 34 anos, Lam participa, voluntariamente, da defesa da República espanhola e em 1937 da defesa de Madri. Neste mesmo ano entra, pela primeira vez, em contato com o Cubismo, por meio da grande exposição itinerante de Picasso que passa por Madri. Em 1938, Lam abandona a Espanha e segue para Paris, onde encontrará Picasso, com uma carta de recomendação do escultor Manolo Hugué. Ali, instala seu ateliê atrás da estação de Montparnasse.

O encontro com Picasso influirá de forma decisiva no destino do jovem pintor. Ele será introduzido, por Picasso, no círculo artístico que, então, dominava Paris: Fernand Léger, Joan Miró, Henri Matisse, Georges e Benjamin Péret.

Em 1939 Lam tem sua primeira exposição individual, seguida da segunda, em 1939, em Nova York, onde a galeria Perls expõe seus trabalhos junto aos desenhos de Picasso. O tema da maternidade e da família, como Madre y hija (1939) caracteriza esse período.

Em 1940 com o estopim da guerra, Lam precisa abandonar Paris, dirige-se à Marselha, onde encontra vários artistas e escritores, como o poeta René Char, Pierre Mabille, os pintores Marc Chagall, Max Ernst, entre outros, e o líder do grupo Surrealista André Breton, para quem Lam ilustra com seis desenhos o poema Fata Morgana. As relações entre Lam e André Breton estreitam-se à partir do verão daquele ano de 1940, que será de grande importância na trajetória de Lam, como veremos mais adiante.

Em 1941, devido a guerra e após uma viagem de sete meses, Lam chega de volta a Havana. O retorno ao seu país natal é duro, o pintor sente dificuldades em reavivar as antigas relações, além de se sentir desolado com os problemas da ilha: a miséria econômica e o “drama colonial” (PARÍS, 1982: 144).

Em 1942, Lam começa a pintar La Jungla, sua obra-prima. Exposta pela primeira vez na galeria Pierre Matisse, em Nova York, essa obra causa um “grande alvoroço” (idem). Revela entre outras coisas referências e memórias de sua infância na ilha, como rituais de origens africana e outros elementos dessa cultura, que Lam vivenciava, sobretudo, nos tempos em que conviveu com sua avó materna, praticante da chamada Santeria, que no Brasil chamamos de “Macumba”.



La Jungla, 1942-1944.


É em 1946 que Lam toma contato com o ritual vodú, ao assistir pela primeira vez às cerimônias celebradas “em honra aos deuses da unidade” (idem, p. 145) em um período que passa quatro meses no Haití. Essas cerimônias e as emoções da magia negra o levam a renovar suas inspirações, seus temas e seu vocabulário formal. Nesse mesmo ano, Lam retorna à França, passando por Nova York, onde entra em contato com James Johnson Sweeny (diretor do Museu de Arte Moderna), Gorky, Marcel Duchamp e outros artistas americanos. É nesse período que seu estilo, renovado, inicia um período bastante fecundo, obedecendo a um impulso de caráter surrealista que amplia a presença da poesia negra em sua obra, fazendo de sua pintura uma poética “violenta e sensual” (idem, p. 145). Nos cinco anos que se seguem, entre 1947 e 1952, Lam produzirá uma grande série de quadros totêmicos e míticos, como é o caso de A Noiva de Kiriwina, de 1949.

Lam se casará novamente e terá ainda outros dois filhos (em 1961 e em 1969) e seus próximos trinta anos serão de muito trabalho e exposições, além de algumas retrospectivas importantes, como as de 1967 que passaram por Hanover, Amsterdam, Estocolmo e Bruxelas. Além disso, realizará também alguns trabalhos na India, entre 1975 e 1976. Em 1978, sofre um ataque que o debilita, obrigando-o a passar o resto de sua vida sobre uma cadeira de rodas. Morre em 1982, na cidade de Paris, aos 80 anos.



A Noiva de Kiriwina, 1949.


É com certo vigor que Catherine David (PARÍS, 1982: 17), em sua contribuição para o valioso catálogo de W. Lam, organizado por Isabel París e subsidiado pelo Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, nos adverte em suas reflexões acerca da produção de Lam, remetendo-nos, inclusive, a velhas questões, ainda em pauta, sobre nossa condição de colonizados, presente nos mais diversos campos de análise:


“Parece haver chegado o momento de outra leitura, mais atenta mas também mais arriscada, em todos os sentidos do termo, dos intercâmbios que, de modos muito distintos, foram levados a cabo entre centro(s) e periferia(s) da cultura ocidental, entre o antigo e o novo, entre tradição e modernidade, entre metrópole(s) e colônia(s), e que transbordam amplamente as noções de ‘influência’ e ‘difusão do modernismo’ que ainda predominam nas análises de uma certa História da arte”.



Para o quê C. David quer nos chamar a atenção? Não é difícil notar que na vida e na obra “excepcionais e exemplares” (idem, p. 16) de Lam, temos a mostra de uma rara coleção de obras de arte “maiores”, que, a despeito de seu valor inconteste, encontram-se, ainda, às margens dos centros tradicionais e validadores da cultura europeia e das “capitais da modernidade”. Participando mais ou menos conscientemente deste olhar eurocêntrico, a leitura e o corte modernista da arte do século XX, privilegiaram, por muito tempo, o que a autora chama de “uma dinâmica em sentido único”, de cópia e de repetição dos modelos europeus, sem dar-se conta do jogo complexo de forças que atuavam e atuam sobre o campo artístico (idem, p. 17).


A crítica em pauta refere-se ao modo como as artes plásticas, não só elas, mas também a literatura e a música, precisam enfrentar a história cruzada e dramática, das aculturações e sincretismos tão presentes em suas produções artísticas, e por isso mesmo tão negligenciadas na história tradicional da arte. O mesmo elemento, contudo, é o que faz das Antilhas e da América Latina um campo de experimentações tão diverso e tão fecundo, que tem em Lam um grande exemplo: “uma das primeiras obras mestiças deste século, nascida de encontros e conflitos de numerosas histórias, raças e continentes”, resultando em um “território novo” que produz “uma estética pouco comum” (idem, p. 18).

 
Pode-se notar que a marginalização do trabalho de Lam é paradoxal, pois sua trajetória, que segundo definição de André Breton (idem, p. 19) seguiu “o caminho inverso de Picasso”, isto é, consistiu em “alcançar, à partir do primitivo maravilhoso que levava dentro de si, o grau de consciência mais alto, para então assimilar as disciplinas mais sábias da arte europeia”; paradoxal, sobretudo, porque, quando Lam se relaciona com Breton, em fins de 1939, a época “heroica e teórica” (idem) do Surrealismo, a época dos manifestos, enfim, já tinha passado e o movimento estava buscando justamente descobrir a arte e os mitos não europeus, de modo que o talento de Lam ia bem ao encontro daquilo que o grupo buscava, todavia Lam permanecerá invisível para as mesmas instituições que validam a arte do movimento surrealista como a “boa arte”.

Gerardo Mosquera, importante crítico de arte cubano, também contribui com reflexões significantes, a respeito da obra de Lam e sua representatividade na “trama” da história da arte e as produções não europeias. Ele nos relata uma observação curiosa a respeito do texto que acompanhava a obra La Jungla, vista por ele em 1988 no Museu de Arte Moderna de Nova York. Ele diz que, além dos dados técnicos da obra e datas de nascimento e morte do autor, fazia-se necessário “esclarecer”, ironiza Mosquera, que o artista havia trabalhado na Europa e nos Estados Unidos, de modo que Cuba, permanecia como “simples dado do lugar fortuito onde Lam teria vindo ao mundo” e a contradição estava ao lado, na própria tela, que teria sido produzida em Marianao, um bairro humilde de Havana – dado este que não recebia o menor destaque.


Tal apresentação ignorava que Lam, de fato, tinha trabalhado 10 anos em Cuba, entre 1942 e 1952, além de sua formação que foi na Academia de Belas Artes de Havana. Os anos em que Lam trabalhou em Havana, importa lembrar, foram os mais importantes, pois neles produziu suas maiores obras, dado que foi o reencontro com seu país o ponto decisivo que definiu sua arte.

A esse respeito Mosquera comenta: “A redescoberta de Cuba determina uma eclosão do africano dentro de sua própria formação cultural, uma saída de sua Weltanschauung [visão de mundo] caribenha e desta com seu meio natural e social”. Ele acrescenta: “Enquanto artista moderno, deixa de trabalhar com as geometrizações africanas para, pela primeira vez, [...] trabalhar com seu sentido” (idem, p. 33). Aí está a transformação que ocorre na pintura de Lam, ela não é puramente formal. Embora o artista tenha sua dívida com Picasso, Matisse, com o geometrismo africano e a tradição clássica do ocidente (o artista seus estudos pela arte acadêmica, importa lembrar), o “transcendental”, insiste Mosquera (p. 33), que ocorre na obra de Lam, é a mudança de sentido. Picasso e muitos outros modernos se inspiraram na máscara e na estatuária africana para conseguir uma renovação, sobretudo formal, da arte ocidental, contudo, em total desconhecimento do contexto desses objetos, bem como de seus significados e funções. Lam, por sua vez, embora descubra a plástica africana e primitiva em Picasso, sob o impulso do surrealismo, acaba por ativar (ou reativar) um mundo pessoal, de que ele próprio participava, que lhe era familiar culturalmente e este determina seu trabalho mais interiorizado com tais formas. A esse respeito Mosquera diz (idem, p. 35): “Lam [...] busca transmitir, pelos meios tropológicos da arte moderna, uma cosmovisão condicionada pelos fatores africanos vivos em sua cultura de origem, um sentido místico geral, dela proveniente”.

Deste modo, a etiqueta vista em Nova York, diz Mosquera, parecia querer dizer que “apesar de ser cubano”, este artista trabalhou no Ocidente e construiu uma obra valiosa, quando o correto seria dizer que “graças a ser cubano” este homem pôde fazer uma obra valiosa no Ocidente, pelos traços dessa “consciência africana interiorizada” (idem, p. 35), pela sensibilidade e o imaginário caribenhos e por seu particular mundo simbólico. Mesmo que Lam não tivesse produzido em sua ilha natal o período mais importante de sua obra, ainda assim, sua nacionalidade não seria um simples dado, pois dela advém sua pintura, “de uma formação cultural” e além disso, acrescenta Mosquera, “seu [próprio] discurso se estrutura também à partir do cultural” (MOSQUERA, apud París, p. 21).

Essa e outras reflexões reforçam a ideia de que o discurso eurocêntrico se esforça para evitar que produções artísticas de valor, provenientes de países periféricos, recebam seu devido reconhecimento. O primitivismo perseguido pelos Surrealistas, ou por outros artistas, mais tarde tão aclamados - segundo J. Schwartz (1995: 579), além de Picasso, Vlaminck, Braque, Brancusi, Klee, Giacometti, e Modigliani, para citar apenas alguns, também “recorreram ao primitivismo negro como fonte de temas e formas” - encontrava-se nas próprias origens de Lam, que não precisava esforçar-se para transmití-lo em sua poética. Contudo, o olhar eurocêntrico, com sua “cegueira”, como diz Mosquera, foi incapaz de perceber ou distinguir que nessa arte não se tratava do Ocidente assimilando recursos das culturas “subalternas”, antes, tratava-se do que ele chama de “o Não Ocidente” começando a “expressar-se mediante os mecanismos artísticos internacionalizados pelo Ocidente e capazes de ação efetiva no mundo de hoje” (PARÍS 1982: 23).

Em suma, Mosquera nos chama a atenção no sentido de valorizar Lam e sua obra não como resultado do Surrealismo ou da presença do Primitivismo, o africano ou afro-americano na arte moderna, mas “como fruto da cultura cubana e do Caribe e como pioneira de uma ação do Terceiro Mundo na cena contemporânea” (idem). Eis o que deve ser ressaltado na trajetória do artista. Essa é a mudança de perspectiva que se deve operar, em outras palavras: “deixar de enfatizar [...] a intervenção destes elementos culturais no Surrealismo para entender este movimento como um espaço onde aqueles se manifestaram fora do campo tradicional, convertidos em acionadores da cultura de vanguarda deles mesmos” (idem). Trata-se de deixarmos de satisfazer (meramente) essa necessidade do Ocidente de captar, em outras culturas, elementos exóticos que componham sua produção para enriquecê-la ou renová-la, para valorizarmos estes elementos em si mesmos, pelo seu próprio valor, em sua autenticidade e em sua autonomia.

A mudança de ponto de vista, sugerida por Mosquera, na leitura da obra de Lam visa romper com dualismos e reconhecer os hibridismos, complexidades e até mesmo as “inautenticidades”, diz o próprio autor, “próprias da dinâmica colonial” (idem, p. 25). O diálogo intercultural, implícito na obra de Lam, além de expressar toda a pluralidade própria do Caribe, acabam por nos alertar para o fato de que esses processos de mestiçagem e hibridismo, integram, também, o tronco cultural do Ocidente, o que, se bem analisado, fragiliza o paradigma ou o “relato” totalizador da História da Arte Ocidental.

O autor considera assustador o fato de que Lam nunca foi valorizado pela crítica de arte como o primeiro artista, em toda a história da arte, a “apresentar ao mundo uma visão do africano na América” (idem, p. 26) pelo que se justifica sua conclusão, irredutível, de que faz-se urgente descentralizar esses discursos, abrindo espaço para “novos significados” e uma compreensão intercultural das artes e deixar para trás o, tão discutível, “monismo Ocidental” (idem).
     

Cuba na geração de W. Lam


Wifredo Lam, em sua juventude, faz parte de uma geração de artistas que já em 1920 irrompe na ilha, produzindo obras que desagradam a arte tradicional acadêmica. De certo modo, podemos pensar essas gerações como “filhas” da história da revolução cubana que tem início já no século XIX, em Outubro 1868, com os primeiros movimentos revolucionários, cuja figura de destaque é Carlos Manuel de Gramas e posteriormente José Martí, criador do Partido Revolucionário Cubano, alguns anos mais tarde, cujo principal resultado alcançado será a Revolução Cubana que provoca a queda do general Fulgêncio Cambraia, em Janeiro de 1959, e a chegada ao poder do líder do exército Fidel Castro.

Nesse mesmo ano foi criada a Fundação da Casa das Américas, com o fim de promover intercâmbio cultural com os países da América Latina (neste ano Lam expõe na Documenta II, em Kassel). Embora Lam tivesse vivido fora da ilha por muitos anos, é preciso dizer, devemos considerar que sua história carregará sempre como base a história de seu país natal: seus problemas, seus limites, seus anseios e também suas particularidades, suas virtudes e suas conquistas.

Nos final dos anos 20 e, sobretudo, na década de 30, Cuba, como também o Brasil, foi palco de manifestações ideológicas cujo objeto de interesse era a identidade do negro. Jorge Schwartz menciona (1995: 586) as palavras de Roger Bastide, para esclarecer o que fora o conceito de Negritude (embora este tenha sido um tanto polêmico à época), que ligava as diversas manifestações entre si. Ele diz: “[...] foi a princípio, a tomada de consciência da originalidade do pensamento africano e a descoberta de uma nova nobreza [...]”.

Não se pode perder de vista que esse é o cenário que Lam deve encontra ao voltar à sua ilha natal em 1938. É nessa década que surgem manifestações políticas “mais concretas”, de acordo com Schwartz (1995: 586), em defesa dos direitos dos negros. Já em 1925, a fundação do Partido Comunista cubano contribui para a formação de uma consciência de classe, unindo brancos e negros no sentido de substituir a ideia de “raça” pelo conceito de “cultura cubana” (idem).

Com respeito a essas manifestações, dois nomes merecem destaque, pela primazia na luta pelo direito dos negros: Fernando Ortiz (1881-1969) e Nicolás Guillén. Segundo Schwartz (1995: 587):
 
mais do que ninguém, Fernando Ortiz ajudou a criar uma consciência do valor da cultura afro-cubana - num país cuja população inclui uma parcela substancial de negros e mulatos – promovendo o estudo das linguagens, das religiões, das tradições e da literatura de origem afro-antilhana, ‘naquela Babel africana criada em Cuba pelo tráfico negreiro’ ”.
Nicolás Guillén, por sua vez, conhecido por sua poesia, desempenhou papel importante como jornalista, publicando uma série de artigos em “Ideales de uma Raza”, página negra no Diário de la Marina (idem).
 
                                                ***

Embora os conteúdos chamados “primitivos” de outras culturas tragam sua contribuição para a pintura do Ocidente revitalizando-a, podemos concluir que os mesmos conteúdos representam, também, uma ruptura, de certo modo, com as convenções tradicionais. Ilustra bem o que queremos dizer uma passagem na obra de Schwartz (1995: 581), em que ele cita as palavras do crítico uruguaio Alberto Zum Felde (1889-1976), que diz: “[...] merecem crédito os europeus, pois ironicamente são eles, numa espécie de efeito bumerangue, que levam os escritores [e aqui podemos incluir outras produções artístico-culturais] latino-americanos a reconhecer a existência do negro”.

Podemos pensar a obra de Lam como uma extensão da mesma questão, isto é, sua obra como algo que introduz um deslocamento no cenário artístico ocidental, já edificando rupturas com a tradição, como efeito do mesmo “bumerangue” mencionado por Felde. Se prestarmos atenção veremos que sua pintura, com seus elementos primitivos, tão exaltados e perseguidos pelos modernistas europeus, contém certa agressão ao “bom gosto” burguês e o pintor nos confirma essa impressão ao declarar, certa vez, que tinha vontade de criar “figuras alucinantes, capazes de surpreender, de turvar os sonhos dos exploradores”, conforme cita Max Pol Fouchet. As deformações, as formas grotescas e repugnantes pintadas por Lam apresenta, com efeito, um certo quê de épater le bourgeois, que é também característico do Surrealismo, mas que pode ser lido como uma ofensiva dos grupos considerados periféricos direcionada à estética ocidental e seu gosto “legitimado”.

Esse “corte colonial” (PARÍS, 1982: 36) que representa La Jungla, segundo Mosquera, não busca uma “virada utópica”, mas pretende ser aceita pela modernidade, obtendo um espaço não ocidental dentro do próprio Ocidente, o que significa descentralizar, transformar e “deseuropeizar” (idem) o discurso tradicional. Esse é, acreditamos, o resultado principal, na produção plástica de Lam, que nos deve saltar aos olhos.

Lam influenciou de modo notável muitos pintores cubanos durante os anos de 1940 e promoveu na região, em conjunto com o terreno já preparado pelas manifestações, um gosto particular pelos temas afro-cubanos. Com seu primitivismo pioneiro, o artista não só inseriu elementos inéditos na arte ocidental, com sua participação no grupo Surrealista, como também dinamizou a produção artística local em sua ilha, trazendo uma nova espiritualidade, revolucionando pontos de vistas e sentidos, no campo das artes de um modo geral. São artistas como ele, consideramos, que devem ser lembrados a todo custo e a despeito de todo o esforço da velha academia em promover o movimento contrário.

Nenhum comentário:

Postar um comentário