Em algum de seus livros, Nietzsche me contou achar admirável aquele que conseguia dizer as coisas mais fortes com as palavras mais sutis. Woody Allen é especialista nisso, em dizer as coisas mais fortes da vida de um modo muito sutil. Em seus filmes mais recentes, como Tudo pode dar certo (tradução horripilante, é preciso dizer, para Whatever works que, ao contrário do título em português, não pretendia evocar nenhum otimismo, mas sim desilusão – algo como “seja lá o que for” ou talvez “qualquer coisa que funcione”), Vicky, Cristina e Barcelona, Meia-Noite em Paris e muitos outros que poderiam ser citados, o grande cineasta nos deixa mensagens primorosas, que todo bom velhinho tem para dar e vender. Mas elas são bastante ácidas, desagradáveis. Ele se vale, contudo, muito habilmente, de seu “produto” (as obras primas que ainda salvam o cinema norte-americano) para lançar aos ares as terríveis “verdades” e por vezes na forma mais poética, que só um gênio poderia realizar. Outras vezes (muitas vezes, aliás) em forma de comédia, que de fato reflete bem a experiência humana.
Em Whatever Works, W. Allen usa Boris, o protagonista (um intérprete do próprio diretor), um físico-cético-intelectual, já pelos sessenta e poucos anos, para regurjitar no mundo (isto é, nos espectadores) tudo o que extraiu de suas experiências nessas poucas décadas vividas. A megalomania de W. Allen está em que ele pretende, parece, dar o recado da totalidade, em uma ou duas horas de filme. Entretanto, a intenção pode ser compreendida. Compartilhar tudo que se percebeu, quando se goza de pura lucidez aos quase oitenta anos, e produzindo arte há meio século, talvez seja não só um privilégio, mas uma necessidade. Mensagens como “eu vejo o cenário completo” e “A maior parte de sua existência é mais sorte do que gostaria de admitir”, na voz de Boris (o porta-voz de W. Allen), são bons exemplos de sua habilidade nietzscheana. No segundo filme, Vick, Cristina e Barcelona, o diretor nos atormenta com seu realismo sobre a transitoriedade do amor, a trivialidade da paixão, sobre o absurdo da monogamia e outros detalhes desagradáveis de se assumir, que só um velhinho bem vivido estaria em condições de fazer.
Em
Magia ao
Luar, W.
Allen nos provoca novamente, com relação aos misticismos, ao
charlatanismo, à
ilusão (tão perseguida) de se encontrar algum sentido nessa vida.
Mas ele nos trai, ele próprio nos ilude de
que está revendo seu ceticismo tradicional, para
depois, num
golpe instantâneo,
reafirmar o grande
vazio que sempre pregou.
Deixa-nos com cara de criança na
poltrona do cinema
quando dá a volta por cima e mostra que aquilo
que
estava
quase se legitimando
(como
mágica de
fato),
é
desnudado,
mais uma vez, como
um
belo engodo!
A
trama
é simples. O conteúdo que é rico. Passa, todavia, desapercebido
pelos que esperam só o entretenimento. Trata-se de um
mágico renomado (Stanley, Colin Firth) que se dispõe, a pedido de
seu amigo de profissão, a desmascarar uma pretensa vidente (Sophie,
personagem de Emma Stone) que teria seduzido uma família inteira,
com suas atividades supostamente paranormais. Ocorre que o próprio
mágico, Stanley, absolutamente descrente e determinado a desvendar
os truques de Sophie, começa a se convencer de
que
a jovem possui mesmo
extra-poderes
ao ouvir de sua boca os
detalhes
minuciosos, a princípio impossíveis de serem descobertos, acerca de
sua vida e sua família. Ao mesmo tempo, deixa-se levar pelos
encantos de
sua jovialidade tranquila; suas crenças e seu misticismo passam a
enfeitiçá-lo e aí está um momento extraordinário
e mesmo inesperado
na reflexão de W. Allen: Ele
nos conta com maravilhosa sutileza como a ilusão é condição
fundamental
para
a paixão e a felicidade. Que coisa incrível ele nos diz.
O
momento cabal nessa interpretação é quando Stanley, tendo
levado
Sophie a um antigo planetário que frequentara
em
sua
infância, pensando
à respeito dos astros revela
achá-los
“ameaçadores”,
e Sophie responde que os acha "poéticos".
Aqui W. Allen contrapõe ciência e poesia (ou razão e paixão) pondo em evidência as diferentes possibilidades de interpretações e suas repercusões (ela ingênua e alegre; ele racional e amargurado). W. Allen está falando muito sério nessa passagem: “há coisas que é melhor enfeitar” para poder viver e para poder se apaixonar; por outro lado ele parece nos propor a reflexão: “mas será certo bancar o cego?”. E aí está a maturidade na expressão de Woody: ele não dá a resposta. Deixa em aberto, a nosso encargo, como quem assume não poder, aos quase oitenta anos, afirmar mais nada. Embora Stanley desvende o charlatanismo de Sophie, identificando em seu próprio colega o informante dos detalhes curiosos que ela teria “descoberto”, ele está apaixonado e se mostra disposto, ao final, a relevar tudo em nome da paixão, pois (neste caso) o que importa a realidade?
Aqui W. Allen contrapõe ciência e poesia (ou razão e paixão) pondo em evidência as diferentes possibilidades de interpretações e suas repercusões (ela ingênua e alegre; ele racional e amargurado). W. Allen está falando muito sério nessa passagem: “há coisas que é melhor enfeitar” para poder viver e para poder se apaixonar; por outro lado ele parece nos propor a reflexão: “mas será certo bancar o cego?”. E aí está a maturidade na expressão de Woody: ele não dá a resposta. Deixa em aberto, a nosso encargo, como quem assume não poder, aos quase oitenta anos, afirmar mais nada. Embora Stanley desvende o charlatanismo de Sophie, identificando em seu próprio colega o informante dos detalhes curiosos que ela teria “descoberto”, ele está apaixonado e se mostra disposto, ao final, a relevar tudo em nome da paixão, pois (neste caso) o que importa a realidade?
E
assim,
num
ataque de poesia, W. Allen parece reconsiderar seu ceticismo quase
mórbido e jogar luz no que nos protege da "terrível" realidade (por acreditar, não nos misticismos mas na "magia" do amor). Ver
os astros como ciência era desolador, mas
vê-los
com lirismo, com mágica,
era
apaixonante!
Isso
fica claro no momento em que Stanley diz
que
Sophie lhe teria “devolvido a vida”.
Com
sua “mágica” e, por outro lado, com sua inocência, Stanley se
protegeu, ainda
que por pouco tempo,
de uma realidade que
o esmagava
há muito tempo.
O
título já
é,
em
si,
bastante sagaz: a magia ao luar é o próprio amor que ali nasce, em
Stanley (tão cético),
sob o
céu estrelado. É como se W. Allen nos alertasse: "veja! essa é a verdadeira magia! e não o que faz Sophie - a pretensa vidente". Aqui
W. Allen nos deixa boquiabertos com sua capacidade de construir
metáforas espetaculares. Seu
realismo poético é fascinante, mas se enriquece ainda
mais
pela sua veia filosófica. Importa esclarecer isso: Allen
não é, já há muito, um simples comediante – nunca foi. Suas
comédias,
românticas
ou não, são meras ferramentas para sua barulhenta,
dramática, madura reflexão.
E
finalizo chamando atenção para a enorme injustiça que ele sofre
por aqueles que deixam a sala dizendo: “filminho leve, nada
demais”.
Mas
no final reconheço que esse
é o ônus de saber “gritar” sutilmente, de que falava Nietzsche. W.
Allen corre sempre o risco de ser incompreendido, mas jamais será
um filme leve. Talvez
se disfarce sob esse formato, apenas para chegar ao maior número de
salas, afinal, há que se vender. Seu
grande feito, contudo,
está nas entrelinhas. Essa
é a grande riqueza de sua obra e
as cenas cômicas são apenas um pretexto, uma matéria-prima que ele lapida, com
estrondosa percepção.
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