Sabe-se que, com o alvorecer da
tecnologia, que propicia ao âmbito das artes novas formas de
figuração, a arte começa a se “repensar” (Couchot, 2003).
Ocorre, à partir de novos meios, novas possibilidades de expressão,
estabelecendo-se uma nova relação entre a imagem, o objeto e o
sujeito. Podemos pensar rapidamente como a televisão ressignificou o
fazer artístico trazendo para seu campo uma enorme variedade de
expressões artísticas possíveis. A televisão, como o rádio, como
a fotografia e o cinema apresentam certa vantagem sobre a arte,
“tradicionalmente” entendida, dada sua capacidade de trazer,
mais que simular, “o real” (idem, 2003) ao espectador ou
interator.
Esses novos meios trazem,
certamente, novos desafios à arte, ao mesmo tempo que trazem,
também, oportunidades, como veremos a seguir. Couchot nos chama a
atenção, em suas análises, para o fato de que as novas mídias
significam para o artista, não uma ameaça mas, antes, uma
oportunidade de se explorar as (novas) possibilidades estéticas,
visto que, nesta “nova ordem visual”, dirá o autor, “o artista
não trabalha mais com a matéria nem com a energia, mas com
símbolos”. A técnica e a ciência desempenham, neste sentido,
importante papel nas artes; não obstante toda a crítica que essa
associação recebe de alguns teóricos, são elas que se encarregam
de “auxiliar”, se assim pudermos chamar, o artista que, nessa
nova “temporada” da história da arte, se utilizará dos símbolos
como novo registro de sua produção artística.
A interação do homem com a máquina
é, pois, uma realidade no tempo presente. E se há problemas nessa
relação (como a automatização e imposição de valores e
posicionamentos), há que se pensar também nas vantagens que se pode
tirar dela. No campo das artes, trata-se de adequar-se ao novo
modelo, não necessariamente significando isso uma adesão ao seu
lado negativo (acima citado), mas, por vezes, o exercício, para o
artista, de interpretar de que modo a técnica pode favorecer sua
poética e sua expressividade; de como, enfim, a técnica pode mudar,
ou mesmo enriquecer, a arte.
O autor nos fala de uma nova “matriz
perceptual” (Couchot, 2003), onde há uma nova corporeidade
(”metade-carne, metade-cálculo”), em que o “o visual se
enriquece de outras modalidades sensoriais” (idem); isso nos soa, a
despeito de seu lado mais obscuro, também uma ampliação de
horizontes nos modos de fazer arte. É o que nos mostram artistas
como Bill Viola, Gary Hill, Nam June Paik, entre outros. Acerca dos
primeiros, o historiador de arte Hans Belting comenta: “são ambos
[...] fascinados por aquele tempo subjetivo que escapa de modo tão
flagrante ao conceito objetivo que é próprio de uma consciência
histórica” (2006: 125). Esses artistas aproveitam-se,
pertinentemente, do novo aparato para narrar algo esquecido, para
deixarem sua mensagem. É disso que Couchot está falando ao tratar
as novas mídias como uma oportunidade para o artista.
Sabemos que a imagem e o discurso,
sobretudo na televisão, são carregados de ideologia, todavia, há
modos de subverter essa função, empregando-a a favor de um outro
grupo, o menos privilegiado, em geral. No caso da televisão, que tem
a possibilidade de atingir, com sua programação, todo o mundo,
notamos com clareza as intervenções e mesmo imposições de um
posicionamento político que favoreça a classe dominante, como
ocorreu, de fato, no Brasil no período do regime militar. No
entanto, artistas que se valeram do videotape,
por exemplo, perceberam que o mesmo instrumento utilizado para a
disseminação de determinada ideologia, poderia transmitir também a
mensagem oposta, ou mesmo uma espécie de resposta a uma dada
situação, realizando, assim, uma subversão
do aparato e suas funções. A subversão é um elemento que deve ter
estado sempre presente, em todas as artes, nos diversos períodos e
movimentos, mas como um conceito, e no seu emprego explícito, de
contestação, ela é genuinamente uma característica da arte
contemporânea.
No caso de Nam June Paik (1932 –
2006), podemos citar um trabalho, que pode ser visto no vídeo
intitulado de Global
Groove, 1973, que
consiste em um videotape
com diversos trabalhos que utilizam todo o aparato tecnológico para
construir um movimento e uma dinâmica de cores e formas que poderiam
mesmo nos lembrar, em uma analogia com a pintura, telas lúdicas do
expressionismo, com sua deformação e arbitrariedade de cores, ou
mesmo o abstracionismo em alguns momentos de cenas mais
“descontruídas”, se assim pudermos chamar. O trabalho que nos
interessa é um momento, do vídeotape,
em que o artista posiciona em cena uma jovem música que toca, no
lugar de seu violoncelo, um corpo. Trata-se de um soldado,
visivelmente uniformizado e triste. O artista intercala essas cenas,
com o soldado abraçando uma peça, quase de seu tamanho, que
representa uma espécie de míssil. Se pensarmos no contexto da época
(década de 1970), podemos fazer algumas interpretações sobre a
arte de Paik; o artista poderia estar se referindo à guerra do
Vietnã ou poderia estar tocado por sua própria experiência com a
guerra. Este sul coreano, nascido em 1932, deixou seu país aos
dezoito anos devido a guerra da Coreia, instalando-se em Hong Kong e
Japão. Mais tarde, em 1964, aos 32 anos, muda-se para Nova York onde
trabalha com a violoncelista clássica Charlotte Moorman, combinando
vídeo, música e performance, desenvolvendo, assim, uma concepção
híbrida de arte. Outra característica marcante das
mediaart.
Com efeito, notamos no trabalho de
Paik uma forte alusão aos contrastes que nos conduz a refletir sobre
o cenário político-econômico da época; ao alternar corpo (humano)
e instrumento - seja o musical (violoncelo), seja o bélico (míssil)
- colocando em “confronto” música e arma, o artista faz uma
provocação que não permite ao espectador a indiferença. Trata-se,
pois, de um artista atento ao seu tempo e às ferramentas que ele
oferece, para realizar, na medida que merecer, o apelo desejado.
Se a televisão, com sua programação
planejada, constrói, como diz Couchot (1993, pp. 37-48), “uma
realidade baseada em acontecimentos triviais (...) fúteis, que não
alteram as estruturas mentais dos telespectadores”, nos parece
legítimo encarregar a arte de, em seus modos, chamar a atenção do
espectador para um universo alternativo, regido pela sensibilidade,
pelo pensamento e pela reflexão, de modo a reativar as estruturas
mentais, adormecidas, das massas. É o que Paik consegue na obra
analisada, mostrando-se um artista orientado para o presente, que
consegue, no interior do próprio “sistema” (das mídias e da
indústria, em sua versão ideologizante), se apropriar dos recursos
tecnológicos disponíveis para submetê-lo a uma espécie de
denúncia. Desta forma, o artista faz não só uma arte do seu tempo,
mas extrai o máximo das possibilidades ofertadas por ele; consegue
produzir uma arte “no interior dos modelos econômicos vigentes”
(MACHADO, 2004), mas na direção contrária a eles. E sendo arte o
produto final, podemos pensar sua produção como uma forma de
“desprogramar” o viés técnico (idem) deste cenário. Este é um
valor legítimo, entre outros, da confluência da arte com as mídias.
Em suma, para lembrar o que nos diz
A. Machado, em seu texto “A televisão levada a sério”, trata-se
de uma seleção – artistas como Paik parecem perceber essa opção.
Ainda que as mídia venham cheias de conteúdos arbitrários, há
sempre a opção de se escolher o que vai “entrar” ou não na sua
casa; o que irá ou não ser absorvido, tratado, modificado,
desconstruído, compartilhado, simulado, subvertido, ainda é uma
escolha nossa.
Veja aqui Bill Viola e "Acceptance", de 2008.
Veja aqui Bill Viola e "Acceptance", de 2008.
Fernanda, grato pela contribuição! Seria possível me informar quais livros de Edmond Couchot foram utilizados no texto?
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