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terça-feira, 6 de maio de 2014

Artemídia – um diálogo entre arte e técnica






Sabe-se que, com o alvorecer da tecnologia, que propicia ao âmbito das artes novas formas de figuração, a arte começa a se “repensar” (Couchot, 2003). Ocorre, à partir de novos meios, novas possibilidades de expressão, estabelecendo-se uma nova relação entre a imagem, o objeto e o sujeito. Podemos pensar rapidamente como a televisão ressignificou o fazer artístico trazendo para seu campo uma enorme variedade de expressões artísticas possíveis. A televisão, como o rádio, como a fotografia e o cinema apresentam certa vantagem sobre a arte, “tradicionalmente” entendida, dada sua capacidade de trazer, mais que simular, “o real” (idem, 2003) ao espectador ou interator.

Esses novos meios trazem, certamente, novos desafios à arte, ao mesmo tempo que trazem, também, oportunidades, como veremos a seguir. Couchot nos chama a atenção, em suas análises, para o fato de que as novas mídias significam para o artista, não uma ameaça mas, antes, uma oportunidade de se explorar as (novas) possibilidades estéticas, visto que, nesta “nova ordem visual”, dirá o autor, “o artista não trabalha mais com a matéria nem com a energia, mas com símbolos”. A técnica e a ciência desempenham, neste sentido, importante papel nas artes; não obstante toda a crítica que essa associação recebe de alguns teóricos, são elas que se encarregam de “auxiliar”, se assim pudermos chamar, o artista que, nessa nova “temporada” da história da arte, se utilizará dos símbolos como novo registro de sua produção artística.

A interação do homem com a máquina é, pois, uma realidade no tempo presente. E se há problemas nessa relação (como a automatização e imposição de valores e posicionamentos), há que se pensar também nas vantagens que se pode tirar dela. No campo das artes, trata-se de adequar-se ao novo modelo, não necessariamente significando isso uma adesão ao seu lado negativo (acima citado), mas, por vezes, o exercício, para o artista, de interpretar de que modo a técnica pode favorecer sua poética e sua expressividade; de como, enfim, a técnica pode mudar, ou mesmo enriquecer, a arte.

O autor nos fala de uma nova “matriz perceptual” (Couchot, 2003), onde há uma nova corporeidade (”metade-carne, metade-cálculo”), em que o “o visual se enriquece de outras modalidades sensoriais” (idem); isso nos soa, a despeito de seu lado mais obscuro, também uma ampliação de horizontes nos modos de fazer arte. É o que nos mostram artistas como Bill Viola, Gary Hill, Nam June Paik, entre outros. Acerca dos primeiros, o historiador de arte Hans Belting comenta: “são ambos [...] fascinados por aquele tempo subjetivo que escapa de modo tão flagrante ao conceito objetivo que é próprio de uma consciência histórica” (2006: 125). Esses artistas aproveitam-se, pertinentemente, do novo aparato para narrar algo esquecido, para deixarem sua mensagem. É disso que Couchot está falando ao tratar as novas mídias como uma oportunidade para o artista.

Sabemos que a imagem e o discurso, sobretudo na televisão, são carregados de ideologia, todavia, há modos de subverter essa função, empregando-a a favor de um outro grupo, o menos privilegiado, em geral. No caso da televisão, que tem a possibilidade de atingir, com sua programação, todo o mundo, notamos com clareza as intervenções e mesmo imposições de um posicionamento político que favoreça a classe dominante, como ocorreu, de fato, no Brasil no período do regime militar. No entanto, artistas que se valeram do videotape, por exemplo, perceberam que o mesmo instrumento utilizado para a disseminação de determinada ideologia, poderia transmitir também a mensagem oposta, ou mesmo uma espécie de resposta a uma dada situação, realizando, assim, uma subversão do aparato e suas funções. A subversão é um elemento que deve ter estado sempre presente, em todas as artes, nos diversos períodos e movimentos, mas como um conceito, e no seu emprego explícito, de contestação, ela é genuinamente uma característica da arte contemporânea.

No caso de Nam June Paik (1932 – 2006), podemos citar um trabalho, que pode ser visto no vídeo intitulado de Global Groove, 1973, que consiste em um videotape com diversos trabalhos que utilizam todo o aparato tecnológico para construir um movimento e uma dinâmica de cores e formas que poderiam mesmo nos lembrar, em uma analogia com a pintura, telas lúdicas do expressionismo, com sua deformação e arbitrariedade de cores, ou mesmo o abstracionismo em alguns momentos de cenas mais “descontruídas”, se assim pudermos chamar. O trabalho que nos interessa é um momento, do vídeotape, em que o artista posiciona em cena uma jovem música que toca, no lugar de seu violoncelo, um corpo. Trata-se de um soldado, visivelmente uniformizado e triste. O artista intercala essas cenas, com o soldado abraçando uma peça, quase de seu tamanho, que representa uma espécie de míssil. Se pensarmos no contexto da época (década de 1970), podemos fazer algumas interpretações sobre a arte de Paik; o artista poderia estar se referindo à guerra do Vietnã ou poderia estar tocado por sua própria experiência com a guerra. Este sul coreano, nascido em 1932, deixou seu país aos dezoito anos devido a guerra da Coreia, instalando-se em Hong Kong e Japão. Mais tarde, em 1964, aos 32 anos, muda-se para Nova York onde trabalha com a violoncelista clássica Charlotte Moorman, combinando vídeo, música e performance, desenvolvendo, assim, uma concepção híbrida de arte. Outra característica marcante das mediaart.
 
Com efeito, notamos no trabalho de Paik uma forte alusão aos contrastes que nos conduz a refletir sobre o cenário político-econômico da época; ao alternar corpo (humano) e instrumento - seja o musical (violoncelo), seja o bélico (míssil) - colocando em “confronto” música e arma, o artista faz uma provocação que não permite ao espectador a indiferença. Trata-se, pois, de um artista atento ao seu tempo e às ferramentas que ele oferece, para realizar, na medida que merecer, o apelo desejado.

Se a televisão, com sua programação planejada, constrói, como diz Couchot (1993, pp. 37-48), “uma realidade baseada em acontecimentos triviais (...) fúteis, que não alteram as estruturas mentais dos telespectadores”, nos parece legítimo encarregar a arte de, em seus modos, chamar a atenção do espectador para um universo alternativo, regido pela sensibilidade, pelo pensamento e pela reflexão, de modo a reativar as estruturas mentais, adormecidas, das massas. É o que Paik consegue na obra analisada, mostrando-se um artista orientado para o presente, que consegue, no interior do próprio “sistema” (das mídias e da indústria, em sua versão ideologizante), se apropriar dos recursos tecnológicos disponíveis para submetê-lo a uma espécie de denúncia. Desta forma, o artista faz não só uma arte do seu tempo, mas extrai o máximo das possibilidades ofertadas por ele; consegue produzir uma arte “no interior dos modelos econômicos vigentes” (MACHADO, 2004), mas na direção contrária a eles. E sendo arte o produto final, podemos pensar sua produção como uma forma de “desprogramar” o viés técnico (idem) deste cenário. Este é um valor legítimo, entre outros, da confluência da arte com as mídias.
 
Em suma, para lembrar o que nos diz A. Machado, em seu texto “A televisão levada a sério”, trata-se de uma seleção – artistas como Paik parecem perceber essa opção. Ainda que as mídia venham cheias de conteúdos arbitrários, há sempre a opção de se escolher o que vai “entrar” ou não na sua casa; o que irá ou não ser absorvido, tratado, modificado, desconstruído, compartilhado, simulado, subvertido, ainda é uma escolha nossa.

Veja aqui Bill Viola e "Acceptance", de 2008. 


Um comentário:

  1. Fernanda, grato pela contribuição! Seria possível me informar quais livros de Edmond Couchot foram utilizados no texto?

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