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quarta-feira, 8 de julho de 2015

A Invenção Fotográfica e a Revolução das Artes no século XIX.




Julia Cameron. I wait (1872)


Nos anos 1850 e 1860 a fotografia  desempenhou papel significativo na construção do que hoje se designa por Arte Moderna. A relação entre os dois eventos se dá a partir de inúmeras questões, mas sobretudo nas que culminam no desejo comum de se documentar a avalanche de inovações que proliferavam na vida moderna [1].

Para A. Fabris, o êxito da Fotografia está relacionado com as necessidades da Revolução Industrial. No século XIX, grande parcela da população é analfabeta e há uma demanda por informação visual. A litografia funda uma espécie de “novo estatuto da imagem” e é, entre outras coisas, a demanda social por imagens que culmina no advento da daguerreotipia.

Posta em concorrência com as produções manuais de retratos, pelo baixo preço e pela fidelidade da imagem que produzia, a fotografia terá seu desenvolvimento marcado por três etapas:
Entre 1839 e 1850 é objeto de interesse de um número restrito de amadores; a partir de 1854, com a conquista do cartão-visita, a fotografia permite às classes menos favorecidas a aquisição de um retrato, levando ao alcance de amplos setores o que antes era privilégio de uma pequena camada social e, assim, é elevada a patamares industriais; em meados de 1880 a fotografia já se convertia em um fenômeno comercial e massificado.[2]

Entre as funções que a fotografia desempenha, destacam-se as de caráter informativo ou documental. A. Fabris explica que havia, em meados do século XIX, um desejo de se fazer o “inventário do mundo”. Trata-se, sobretudo, das expedições fotográficas que, trazendo à população imagens de lugares inusitados, permitia a chamada “viagem imaginária”, dando-lhe acesso aos monumentos e paisagens e também aos costumes, de lugares os mais remotos. Nesse sentido, a fotografia permitia um sentimento de posse (“posse simbólica”) de múltiplos ângulos e características do mundo para um público que ansiava por novidades. Essas conquistas, embora em muito relacionadas com o projeto da expansão imperialista, acabam por reconfigurar a concepção de tempo e espaço, uma vez que “abole as fronteiras geográficas” e “acentua similitudes e dessimilitudes entre os homens” das mais distintas épocas e regiões. Os cartões postais, que popularizam as belezas naturais do mundo, treinam o olhar dos homens para aquilo que é belo: os que vivem longe de tais belezas desejam ir vê-las, os que vivem ao lado delas “tomam conhecimento de sua existência”. Nesse sentido, não é difícil imaginar que os pintores da nova geração (impressionistas), que buscavam no campo e na natureza, de modo geral, os novos temas de sua pintura, eram como que “alertados”, para a beleza desses espaços, pela própria fotografia. O cartão postal adquiria ainda o aspecto de uma “missão civilizadora”, dada sua capacidade de democratizar aquilo que outrora era privilégio de poucos. É assim que a fotografia vai moldando o imaginário social: ao criar “uma visão do mundo a partir do mundo” e tecer um imaginário completamente novo[3].

Com a revolução industrial e uma sociedade que se movimentava em velocidade cada vez maior, a vida quotidiana tomava novas formas e ganhava crescente atenção, sobretudo nas expressões artísticas. Pintores trocavam seus ateliês pelo mundo externo, para realizar uma pintura ao ar livre (“en plein air”) do real, de imagens vivas e mundanas.

A nova geração de artistas compromete-se a trabalhar in loco, diante do próprio tema, no anseio, entre outras coisas, de retratar com precisão fotográfica os efeitos da luz.
A “derrubada do ateliê” é não só inspirada pelos resultados da fotografia, mas também facilitada pelo recurso da tinta a óleo em tubo, o que implicará em uma mudança de rota excepcional das artes plásticas, por sugerir o novo assunto da pintura francesa. Ocorre que, para além do tema que se renova, o ímpeto de captar a sensação (ou impressão) de um momento efêmero e fugaz, provoca uma alteração das próprias técnicas pictoriais. Para se atingir os resultados desejados, isto é, captar com veracidade o instantâneo na natureza (a luz, a sombra, a chuva ou a neve - o atmosférico em geral), a agilidade torna-se um elemento essencial na execução das telas e disso decorrem as pinceladas “urgentes”, quase rústicas, da nova pintura, contemporânea à fotografia, sugerindo, por assim dizer, uma espécie de celebração da pincelada que agora, ao contrário dos preceitos clássicos, já não precisa mais ser disfarçada. Tal evento pode ser compreendido como o embrião de uma nova estética.

Note-se que, se a tinta a óleo em tubo levou os pintores a deixarem o ateliê, foi o advento da fotografia que reforçou essa obsessão, pois, trazendo aos olhos a beleza do exterior, eram os resultados fotográficos que indicavam o encanto das cenas efêmeras ou triviais e os ângulos mais pitorescos – todos se mostrando igualmente dignos de serem retratados[4].

A fotografia integra um conjunto de fatores que junto a ela, na metade do século XIX, culminou na ruptura com a mentalidade clássica da arte tradicional e redesenhou a temática das artes. Alguns desses fatores podem ser localizados em episódios relevantes: uma França pós-revolucionária (pós 1848); uma sociedade que começa a se industrializar (a partir de 1840) e os avanços tecnológicos daí decorrentes, como é o caso da tinta a óleo em tubo; a própria emergência da Fotografia (1840-1860) e ainda (não menos importante), as reformas de Haussmann - ocorridas entre 1850 e 1870 - e toda a reurbanização da metrópole em que resultou. Esse evento estimula fortemente a visão de uma sociedade que se volta para a vida moderna (para o exterior, as ruas, os bulevares), seus inúmeros recursos tecnológicos e sua (aparente) abundância, a despeito dos muitos problemas que isso também implicava[5]. Em outras palavras, em um ambiente onde tudo era reforma e tudo se transformava, esses artistas, que “viam a cidade mudar diante de seus olhos”, começavam a se interessar por uma representação que falasse de seu tempo. Também deste período, de demolição e reconstrução da cidade, decorrerá a presença crescente das pinturas de paisagens no interior das residências burguesas, as quais vão, aos poucos, substituindo os retratos das paredes, por representarem inspiração ou mesmo a lembrança de uma natureza que a cidade, em plena (re)urbanização, já não mais oferecia[6].

Ainda nesse ínterim surge a figura do poeta C. Baudelaire, com suas aspirações de se retratar o presente, o efêmero e o contingente, para dele se “extrair o eterno”. Amante da vida moderna e da boemia, ele atenta para a necessidade de se “compreender o caráter da beleza atual”, para “que a Modernidade seja digna de tornar-se [um dia] Antiguidade”[7]. As recomendações baudelairianas não serão ignoradas pelas gerações posteriores, como provam as estéticas que emergiram daquele fim de século e atravessaram as décadas posteriores, sobretudo, no papel das vanguardas históricas (a sucessão de “ismos” que marcam a história da arte recente).

Mas, a fotografia traz certa inquietude para o ambiente artístico. Serviços de cunho social, como os retratos, as ilustrações, as reportagens e afins, migram do domínio da pintura para a figura do fotógrafo, implicando em uma crise para os pintores de ofício e lançando a pintura à esfera puramente estética - uma “atividade de elite”, o que implicava em um alcance social reduzido e, portanto, dificuldades profissionais.

Com a exigência cada vez maior de verossimilhança por parte do público, alguns profissionais, como os miniaturistas por exemplo, começam a recorrer ao daguerreotipo ou mesmo a tornarem-se fotógrafos ou ajudantes de fotógrafo. Como consequência, grande parte dos artistas irão compreender a nova invenção como uma ameaça, “não apenas em termos de criação, mas de domínio de mercado”[8].

A partir disso, proliferam-se os debates acerca da situação da pintura frente a emergência da fotografia, donde decorre uma necessidade crescente de se distinguir as qualidades do pintor daquelas do fotógrafo.

A natureza do ato fotográfico se divide entre a objetividade e precisão da atividade científica e, ao mesmo tempo, a subjetividade do construto artístico. Essa segunda faceta fica clara ao constatarmos que os primeiros ensaios fotográficos deram mostras de que se conformavam ao “repertório derivado da tradição pictórica”, isto é, os retratos, as paisagens e as naturezas-mortas – composições “consolidadas no imaginário artístico da sociedade oitocentista”. Nesse âmbito, os intelectuais interessados pela fotografia, como Francis Wey, reconheciam à nova imagem a capacidade de representação fiel, entretanto, lhe negavam o esforço intelectual (“a fotografia não é interpretação porque lhe falta o ‘sopro da inspiração’ e o ‘fogo do pensamento’, o que a leva a ser uma ‘fiel representação dos objetos exteriores’, [contudo] longe da verdadeira natureza da arte”)[9]. A esse respeito Courbet se posicionava, enfatizando que na fotografia não havia a “força de trabalho” encontrada no quadro.

 A fotografia enfrentou grande resistência até ser aceita como uma atividade artística. É de se notar, contudo, que, embora haja um discurso realista no ato fotográfico (de “representação fiel”), havia fotógrafos que se interessavam pelas “possibilidades plásticas”; que buscavam efeitos genuinamente artísticos, como era o caso de Gustave Le Gray, Julia Cameron, Félix Nadar e outros fotógrafos, cujas obras revelam esforço notável de imaginação e fantasia, de dramaticidade e criação poética, em torno do simples registro.




F. Nadar - Sarah Bernhardt, Lady
Macbeth dans Macbeth
 (1884)


G. Le Gray - Grande Lame, Mediterranée (1857)




















Já em 1855, a sociedade francesa da fotografia se empenha em diferenciar os “fotógrafos–artistas” de seus “falsos irmãos”, os fotógrafos “industriais”. A esse respeito, A. Fabris explica:


"O artista fotógrafo (...) se distinguiria de um profissional qualquer pela ‘escolha da situação’, pelo ‘uso racional da luz e da sombra’, pela perspectiva, pela harmonia, pelo equilíbrio, pela unidade, no caso das paisagens; pela pose, pelo fundo, pelos detalhes, pela viragem (...)".[1]


A esse respeito, G. C. Argan argumenta que é incontestável o teor artístico da atividade fotográfica, dado que “o fotógrafo também manifesta suas inclinações estéticas e psicológicas na escolha dos temas, na disposição e iluminação dos objetos, nos enquadramentos, no enfoque (...)”[2].

Mais tarde os fotógrafos começam a se empenhar em produções que enveredam para a alegoria, para os temas históricos e literários, “ricos de imaginação”, com vistas a escapar ao rótulo de “arte mecânica” e obter o reconhecimento de seu status de arte.
Já em 1862, o tribunal decide que a fotografia pode ser “produto do pensamento e do espírito, do gosto e da inteligência”, pode ser, enfim, considerada arte.

Para alguns autores os fotógrafos jamais quiseram concorrer com a atividade pictórica. Segundo Argan, há que se ponderar que, se por um lado é incontestável que o fotógrafo trabalha no âmbito estético, por outro, isso não significa que se pode tomar a fotografia como algo a substituir os procedimentos da pintura[3], afirmando, com isso, tratar-se de criações distintas e legítimas, cada qual em seu lugar.

No entanto, se por um lado a fotografia era uma ameaça a alguns profissionais, representando “o novo rival” na arte de produzir imagens, para os pintores impressionistas ela significava oportunidade. Era ela que estimulava o “apetite do público por imagens da vida cotidiana parisiense”[4] que, como visto, gradualmente converte-se no tema moderno. Além disso, podendo o pintor ceder o lugar dos retratos ao fotógrafo, surgia a oportunidade de dedicar-se a novas pesquisas plásticas, que irão se desenvolver juntamente com a fotografia. A respeito dos impressionistas, o historiador de arte G. C. Argan ressalta que eles se valiam de informações preciosas fornecidas pela fotografia; ele explica:


"A fotografia torna visíveis inúmeras coisas que o olho humano, mais lento e menos preciso,  não consegue captar; passando a fazer parte do visível, todas essas coisas (...) como também os universos do infinitamente pequeno e do infinitamente grande, revelados pelo microscópio e pelo telescópio, passam a fazer parte da experiência visual e, portanto, da ‘competência’ do pintor".[5]


Pintores como E. Degas e T. Lautrec se valeram desses materiais fotográficos, como se pode notar em suas composições de dançarinas e cabarets, provando que a fotografia chamou a atenção dos pintores não só para os detalhes, mas também para o próprio  “espetáculo social”. A fotografia, portanto, embora tenha representado um golpe para alguns artistas, sobretudo aqueles que se ocupavam da pintura retratística, por tornar, num segundo momento, a representação realista “progressivamente caduca”, para usar um termo de Nicolas Bourriaud[6], colaborou, por outro lado, e de forma significativa, com os experimentos estéticos que serão a semente da arte moderna. Assim, dispensando o artista do compromisso realista, a fotografia acaba catalizando o fechar de um ciclo e a inauguração de outro.
Nesse âmbito interessa resgatar, brevemente, as transformações da arte no espaço de quarenta anos que separam a pintura romântica dos jovens impressionistas: Delacroix é precursor em pintar as cores vívidas (rompe com os tons marrons do clássico), privilegiando a luz e as pinceladas “energéticas”, de que beberiam os impressionistas, contudo, ele não priveligia, ainda, o tema do cotidiano. Entre esses dois momentos da pintura, encontram-se, entretanto, a fotografia e o Realismo. Neste, destaca-se o próprio G. Courbet, pintor crítico à fotografia, que marca a França representando as classes pobres e trabalhadoras, seguindo sua filosofia de pintar “aquilo que se vê”.  Esse princípio pode ser claramente compreendido como uma influência dos resultados fotográficos e se mostrará forte inspiração para as próximas gerações, sobretudo, na narrativa impressionista.

Com efeito, a fotografia, em consenso com os princípios baudelairianos, lançava na consciência artística uma vontade de representar o presente, o aqui e o agora, contemplando o simples, o trivial, o dia a dia e todo a beleza que aí pudesse existir.
Nesse sentido, Gombrich, que atribui à fotografia o papel de “aliado” na luta dos primeiros modernos (para legitimar seus métodos artísticos), explica que “a máquina fotográfica ajudou a descobrir o encanto da cena fortuita e do ângulo inesperado”, teria, ainda, chamado atenção para “a imagem destituída de traços lineares, formadas apenas por manchas claras e escuras”, elementos fundamentais, vale lembrar, na constituição do modernismo artístico. Além disso, fez “impulsionar ainda mais os artistas em seu caminho de exploração e experimento”. Se no passado a pintura voltava-se para os fins utilitários, com o surgimento da fotografia ela se vê dispensada da função tradicional, de “representar o verdadeiro”, de modo que à atividade pictórica restava impor-se como “arte pura” e mostrar valores que só são obtidos dessa maneira.

A.P. Renoir, Summer Landscape (1875)
É desse modo que a fotografia, ao “liberar” a arte pictórica do rigor naturalista e da verossimilhança, acabou por induzir os pintores a outros rumos da pesquisa plástica - e não porque os artistas queriam, mas porque se viam obrigados a entrar em outros domínios, em que a fotografia não disputasse espaço com os seus trabalhos. Não é, pois, coincidência que o desenvolvimento da máquina fotográfica portátil tenha se dado nos mesmo anos em que a pintura impressionista ganha expressão.  “Os artistas viram-se compelidos”, explica o autor, “a explorar regiões onde a fotografia não podia acompanhá-los”. Nesse sentido, ele conclui, “a arte moderna dificilmente se converteria no que é sem o impacto dessa invenção”.[7]





Fotografia, Arquitetura e Pintura

Como visto, a despeito da polêmica que a fotografia trouxe ao campo das artes plásticas, é possível identificar inúmeras contribuições de uma para outra. Fabris nos lembra, contudo, que é na arquitetura que começa a história da fotografia; ela é aliada importante na projeção da atividade fotográfica. Ela é o objeto da fotografia em seu período inaugural por ser estática e, assim, favorecer a técnica que demandava longo tempo de exposição para se atingir resultados satisfatórios[8]. Os movimentos da arquitetura eram, de modo geral, um campo de trabalho produtivo para os fotógrafos; seus registros iniciais ocupam-se em grande medida desses objetos arquitetônicos, entre os quais estavam:


"(...) os remanescentes da arquitetura medieval e da Antiguidade no continente europeu, os projetos urbanísticos que implicaram demolições e construções em áreas urbanas (...) as arquiteturas de povos e culturas exóticas do Oriente e das colônias (...)"[9].


Charles Marville – Fontaine Censier (1865)



Charles Marville - Rue de la Harpe (Partie Sud) - 1865-1869




A fotografia levava a arquitetura ao conhecimento das pessoas, divulgava seus aspectos, seus feitos e sua importância; era, pois, a um só tempo, “conhecida, divulgada e interpretada” pelos primeiros fotógrafos[1].

                                                               Charles Marville – Arts & Métiers (1877)


Nesse âmbito interessa observar como os pintores contemporâneos ocupavam-se da mesma imagem em suas representações pictóricas: a partir da década de 1860, surgem inúmeras pinturas entre Monet e Renoir e mais tarde Caillebotte e Pissarro (Figuras 4 a 6), entre outros artistas, que tratam da imagem arquitetônica e não só dela, como também de seu entorno -  ruas e pontes, pedestres, cavalos, os espaços verdes, a vida citadina, de modo geral. Nessas obras, pode-se facilmente imaginar que os registros arquitetônicos incutiam nos pintores certa admiração ou inspiração pelas composições naturalistas.


                                                          Claude Monet, Saint-Germain-l'Auxerrois – Paris, 1867



                                                             G. Caillebotte, Boulevard Haussmann in the snow -  1879


Mas os arquitetos também se beneficiavam da nova mídia; a classe “aprendia e incorporava a fotografia em seu cotidiano”, interessava-se não só pelo “instrumental útil de trabalho” que a fotografia representava - permitindo estudos dos procedimentos e dos resultados, o  acompanhamento das obras e a comprovação de sua evolução, sem contar a vantagem do uso promocional que ela propiciava - mas também porque esses profissionais desejavam algo que a fotografia podia oferecer: “perpetuar sua própria imagem”[1].


Com enfoque na cena urbana, os fotógrafos do século XIX registravam um momento (singular) do dia a dia nas cidades e seu conjunto arquitetônico[2]. E desta relação, da fotografia com o quotidiano, por meio da arquitetura, surge uma nova imagem, para impacto do público e dos artistas. Com a exigência cada vez maior de verossimilhança, por parte do público, o tema atrativo converte-se: os fatos históricos, as figuras nobres, as imagens bíblicas ou mitológicas, tão populares até a pintura romântica, perdem lugar para o tema simples da vida moderna, do quotidiano e das coisas mundanas.

A arte pictórica se beneficia da fotografia e não só de seu caráter documental, mas de seu próprio repertório, transformando a fotografia em “auxiliar” da pintura. Delacroix acreditava que o daguerreotipo era “capaz de remediar as lacunas do ensino”. Embora o pintor não reconheça a nova tecnologia como inspiração, mas apenas como “meio de informação”, percebe na fotografia “um registro fiel a ser corrigido pelo olho”. Em Corot, uma versão adaptada, em termos estilísticos, das características fotográficas já se esboçam em suas telas de 1840 e, a partir de 1848, o pintor realista apresentará uma visão bastante “modificada pela fotografia” que se revelam pelas “tonalidades difusas” e “imagens não totalmente definidas” de seus quadros. Em Courbet, os registros fotográficos lhe serviam de exemplo, tanto pela “naturalidade da pose”,  quanto “pelo caráter impessoal das figuras”[3].
As próprias dificuldades técnicas das imagens fotográficas se convertem em qualidades de uma nova linguagem:

"(...) a desintegração das formas, a contração do espaço, a desarticulação de planos e a perda de profundidade, culminam em imagens sintéticas, que anunciam mudanças nas convenções visuais instituídas pelo realismo, além de uma preocupação precoce em registrar aspectos dinâmicos da natureza, como o movimento".[4]


E. Degas, La classe de dance – 1871-1874
Em E. Degas, pintor impressionista e ele próprio fotógrafo, é possível notar diversas qualidades extraídas da fotografia e exploradas na sua pintura: valendo-se de características como  “imediatez, fragmentação, espontaneidade”, o artista dá mostras de que compreende a “nova visão artística”, oriunda da fotografia, com suas “composições descentralizadas”, seus “contornos sintéticos”, os “cortes ousados” e suas “angulações oblíquas”. Assim, transformando aquilo que seria, a princípio, defeitos do registro fotográfico em uma linguagem, Degas cria uma nova linguagem estética; um “novo léxico”. (Fig. 4).[5]

                                                                                  
As duas plataformas de registro, fotografia e pintura, intercalavam-se, pois, servindo-se uma da outra. No caso de Degas, seu maior interesse nos estudos da fotografia era analisar, em minúcia, o movimento do corpo humano (além de animais) que seriam explorados na artes plásticas (escultura e pintura). Através de sua pintura, é possível notar como a fotografia permitia ao artista observar os detalhes sutis como o contorno das vestimentas das dançarinas ou mesmo os seus gestos, o ato de ajustar um laço, de vestir-se, de alongar-se, etc. Reunia, enfim, observações acerca dos “rituais do corpo e os hábitos dos olhos”[1] que rendiam composições extraordinárias para o artista da época.

De modo geral, Realismo e Fotografia constituiam “uma dimensão única para os defensores da arte como “fantasia”. Estes viam um problema nos rumos que a arte pictórica tomava na medida em que os “aspectos descritivos da realidade” praticados por ambos implicava no “abandono do modo romântico de percepção e de todo tipo de retórica”. A critíca contra o Realismo não tardou em aparecer: responsabilizado pela “equiparação de todos os temas, o interesse pelos aspectos mais grosseiros e mais banais da realidade, o banimento do belo e a ideia do campo pictórico”, o daguerreótipo e a fotografia, para alguns, teriam sido os culpados pelo surgimento de uma arte que se mostrava “sem gosto, sem consciência” e que “se deixa subjugar pela aparência das coisas, quaisquer que elas sejam, e registra mecanicamente suas imagens”. Falavam da pintura naturalista. 
Paul Valery chama atenção, já em 1939, para uma coincidência notável: “a perda da magia da visão romântica teria começado a partir de Daguerre, cujo invento tornou o ato de ver mais preciso (...), impondo novas exigências de veracidade à própria arte”[2]. A exaltação do naturalismo teria ganhado força, segundo o poeta simbolista, graças ao advento da fotografia.
Essa arte, no entanto, guarda valor incontestável se pensarmos as conquistas da arte moderna. Fabris explica:


"Na medida em que propunha a abolição do belo e do monumental, trazendo para o circuito da arte temas considerados banais e quotidianos, teria contribuído para a superação de preconceitos, que impediam a valorização de uma realidade que se impunha fora do eixo internacional"[3].


Interessa, para esta reflexão, compreender que a fotografia contribui para o desenvolvimento de uma nova estética, original, mas pautada pelo naturalismo e que acaba por colocar em crise os valores tradicionais da pintura acadêmica.

“a pintura do final do século XIX tenta romper com a natureza idealizada da estética acadêmica, buscando na paisagem selvagem e desordenada uma nova forma de beleza”. O gosto pelo naturalismo que a fotografia faz emergir se mostrará mais tarde o embrião do que se converteria em uma arte moderna (“rompeu as pontes com o passado e abriu caminho para a pesquisa artística moderna”[4]). Os registros fotográficos executam, assim, para além da produção, a divulgação de uma nova mentalidade, que emerge da nova sociedade. Com uma linguagem própria, ela faz renascer, entre outras coisas, o interesse pelo paisagismo e remete a nova visualidade ao senso comum. Suas relações com a arte pictórica resumem-se, pois, em dois momentos importantes: a ruptura com a “visualidade tradicional” e a inauguração de um “novo padrão visual”[5].


"Era difícil dizer se era maior o interesse do fotógrafo por aqueles pintores ou o deles pela fotografia; o que é certo, em todo caso, é que um dos móveis da reformulação pictórica foi a necessidade de redefinir sua essência e finalidades frente ao novo instrumento de apreensão mecânica da realidade" (G. C. Argan)[6].




Jean Béraud - La Porte St. Denis (s/d)






BIBLIOGRAFIA

ARGAN, G. C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
BAUDELAIRE, C.  O Pintor da vida moderna. São Paulo: Ed. Vega, 2013.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
KOSINSKI, D. The Artist and the Camera. From Degas to Picasso. Dallas: Yale Press, 1999.
FABRIS, Annateresa. (org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: EDUSP, 1991.
FRIZOT, Michel. Os continentes primitivos da fotografia. In: TURAZZI, Maria Inez Turazzi (org.). Fotografia (Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nr. 27). Rio de Janeiro: IPHAN, 1998.
GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1988.
GOMPERTZ, Will. Isto é Arte?. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
NÉRÉ, Jacques. História Contemporânea. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.

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