Julia Cameron. I wait (1872) |
Nos
anos 1850 e 1860 a fotografia desempenhou papel significativo na construção
do que hoje se designa por Arte Moderna. A relação entre os dois eventos se dá
a partir de inúmeras questões, mas sobretudo nas que culminam no desejo comum de se documentar a avalanche de inovações que proliferavam na vida
moderna [1].
Para
A. Fabris, o êxito da Fotografia está relacionado com as necessidades da
Revolução Industrial. No século XIX, grande parcela da população é analfabeta e
há uma demanda por informação visual. A litografia funda uma espécie de “novo
estatuto da imagem” e é, entre outras coisas, a demanda social por imagens que
culmina no advento da daguerreotipia.
Posta
em concorrência com as produções manuais de retratos, pelo baixo preço e pela
fidelidade da imagem que produzia, a fotografia terá seu desenvolvimento marcado
por três etapas:
Entre
1839 e 1850 é objeto de interesse de um número restrito de amadores; a partir
de 1854, com a conquista do cartão-visita, a fotografia permite às classes
menos favorecidas a aquisição de um retrato, levando ao alcance de amplos
setores o que antes era privilégio de uma pequena camada social e, assim, é
elevada a patamares industriais; em meados de 1880 a fotografia já se convertia
em um fenômeno comercial e massificado.[2]
Entre
as funções que a fotografia desempenha, destacam-se as de caráter informativo
ou documental. A. Fabris explica que havia, em meados do século XIX, um desejo
de se fazer o “inventário do mundo”. Trata-se, sobretudo, das expedições
fotográficas que, trazendo à população imagens de lugares inusitados, permitia
a chamada “viagem imaginária”, dando-lhe acesso aos monumentos e paisagens e
também aos costumes, de lugares os mais remotos. Nesse sentido, a fotografia
permitia um sentimento de posse (“posse simbólica”) de múltiplos ângulos e
características do mundo para um público que ansiava por novidades. Essas
conquistas, embora em muito relacionadas com o projeto da expansão
imperialista, acabam por reconfigurar a concepção de tempo e espaço, uma vez
que “abole as fronteiras geográficas” e “acentua similitudes e dessimilitudes
entre os homens” das mais distintas épocas e regiões. Os cartões postais, que
popularizam as belezas naturais do mundo, treinam o olhar dos homens para
aquilo que é belo: os que vivem longe de tais belezas desejam ir vê-las, os que
vivem ao lado delas “tomam conhecimento de sua existência”. Nesse sentido, não
é difícil imaginar que os pintores da nova geração (impressionistas), que buscavam
no campo e na natureza, de modo geral, os novos temas de sua pintura, eram como
que “alertados”, para a beleza desses espaços, pela própria fotografia. O
cartão postal adquiria ainda o aspecto de uma “missão civilizadora”, dada sua
capacidade de democratizar aquilo que outrora era privilégio de poucos. É assim
que a fotografia vai moldando o imaginário social: ao criar “uma visão do mundo
a partir do mundo” e tecer um imaginário completamente novo[3].
Com a
revolução industrial e uma sociedade que se movimentava em velocidade cada vez
maior, a vida quotidiana tomava novas formas e ganhava crescente atenção,
sobretudo nas expressões artísticas. Pintores trocavam seus ateliês pelo mundo
externo, para realizar uma pintura ao ar livre (“en plein air”) do real, de imagens vivas e mundanas.
A nova
geração de artistas compromete-se a trabalhar in loco, diante do próprio tema, no anseio, entre outras coisas, de
retratar com precisão fotográfica os efeitos da luz.
A
“derrubada do ateliê” é não só inspirada pelos resultados da fotografia, mas
também facilitada pelo recurso da tinta a óleo em tubo, o que implicará em uma
mudança de rota excepcional das artes plásticas, por sugerir o novo assunto da
pintura francesa. Ocorre que, para além do tema que se renova, o ímpeto de
captar a sensação (ou impressão) de um momento efêmero e fugaz, provoca uma
alteração das próprias técnicas pictoriais. Para se atingir os resultados
desejados, isto é, captar com veracidade o instantâneo na natureza (a luz, a
sombra, a chuva ou a neve - o atmosférico em geral), a agilidade torna-se um
elemento essencial na execução das telas e disso decorrem as pinceladas
“urgentes”, quase rústicas, da nova pintura, contemporânea à fotografia, sugerindo,
por assim dizer, uma espécie de celebração da pincelada que agora, ao contrário
dos preceitos clássicos, já não precisa mais ser disfarçada. Tal evento pode
ser compreendido como o embrião de uma nova estética.
Note-se
que, se a tinta a óleo em tubo levou os pintores a deixarem o ateliê, foi o
advento da fotografia que reforçou essa obsessão, pois, trazendo aos olhos a
beleza do exterior, eram os resultados fotográficos que indicavam o encanto das cenas efêmeras ou
triviais e os ângulos mais pitorescos – todos se mostrando igualmente dignos de
serem retratados[4].
A
fotografia integra um conjunto de fatores que junto a ela, na metade do século
XIX, culminou na ruptura com a mentalidade clássica da arte tradicional e
redesenhou a temática das artes. Alguns desses fatores podem ser localizados em
episódios relevantes: uma França pós-revolucionária (pós 1848); uma sociedade
que começa a se industrializar (a partir de 1840) e os avanços tecnológicos daí
decorrentes, como é o caso da tinta a óleo em tubo; a própria emergência da
Fotografia (1840-1860) e ainda (não menos importante), as reformas de Haussmann
- ocorridas entre 1850 e 1870 - e toda a reurbanização da metrópole em que
resultou. Esse evento estimula fortemente a visão de uma sociedade que se volta
para a vida moderna (para o exterior, as ruas, os bulevares), seus inúmeros
recursos tecnológicos e sua (aparente) abundância, a despeito dos muitos
problemas que isso também implicava[5].
Em outras palavras, em um ambiente onde tudo era reforma e tudo se
transformava, esses artistas, que “viam a cidade mudar diante de seus olhos”,
começavam a se interessar por uma representação que falasse de seu tempo.
Também deste período, de demolição e reconstrução da cidade, decorrerá a
presença crescente das pinturas de paisagens no interior das residências burguesas, as quais vão, aos poucos,
substituindo os retratos das paredes, por representarem inspiração ou mesmo a
lembrança de uma natureza que a cidade, em plena (re)urbanização, já não mais
oferecia[6].
Ainda
nesse ínterim surge a figura do poeta C. Baudelaire, com suas aspirações de se
retratar o presente, o efêmero e o contingente, para dele se “extrair o eterno”.
Amante da vida moderna e da boemia, ele atenta para a necessidade de se “compreender
o caráter da beleza atual”, para “que a Modernidade seja digna de tornar-se [um
dia] Antiguidade”[7].
As recomendações baudelairianas não serão ignoradas pelas gerações posteriores,
como provam as estéticas que emergiram daquele fim de século e atravessaram as
décadas posteriores, sobretudo, no papel das vanguardas históricas (a sucessão
de “ismos” que marcam a história da arte recente).
Mas, a
fotografia traz certa inquietude para o ambiente artístico. Serviços de cunho
social, como os retratos, as ilustrações, as reportagens e afins, migram do domínio
da pintura para a figura do fotógrafo, implicando em uma crise para os pintores
de ofício e lançando a pintura à esfera puramente estética - uma “atividade de
elite”, o que implicava em um alcance social reduzido e, portanto, dificuldades
profissionais.
Com a exigência
cada vez maior de verossimilhança por parte do público, alguns profissionais,
como os miniaturistas por exemplo, começam a recorrer ao daguerreotipo ou mesmo
a tornarem-se fotógrafos ou ajudantes de fotógrafo. Como consequência, grande
parte dos artistas irão compreender a nova invenção como uma ameaça, “não
apenas em termos de criação, mas de domínio de mercado”[8].
A
partir disso, proliferam-se os debates acerca da situação da pintura frente a
emergência da fotografia, donde decorre uma necessidade crescente de se
distinguir as qualidades do pintor daquelas do fotógrafo.
A natureza
do ato fotográfico se divide entre a objetividade e precisão da atividade
científica e, ao mesmo tempo, a subjetividade do construto artístico. Essa
segunda faceta fica clara ao constatarmos que os primeiros ensaios fotográficos
deram mostras de que se conformavam ao “repertório derivado da tradição
pictórica”, isto é, os retratos, as paisagens e as naturezas-mortas –
composições “consolidadas no imaginário artístico da sociedade oitocentista”.
Nesse âmbito, os intelectuais interessados pela fotografia, como Francis Wey, reconheciam
à nova imagem a capacidade de representação fiel, entretanto, lhe negavam o
esforço intelectual (“a fotografia não é interpretação porque lhe falta o ‘sopro
da inspiração’ e o ‘fogo do pensamento’, o que a leva a ser uma ‘fiel
representação dos objetos exteriores’, [contudo] longe da verdadeira natureza
da arte”)[9].
A esse respeito Courbet se posicionava, enfatizando que na fotografia não havia
a “força de trabalho” encontrada no quadro.
A
fotografia enfrentou grande resistência até ser aceita como uma atividade artística.
É de se notar, contudo, que, embora haja um discurso realista no ato fotográfico
(de “representação fiel”), havia fotógrafos que se interessavam pelas “possibilidades
plásticas”; que buscavam efeitos genuinamente artísticos, como era o caso de
Gustave Le Gray, Julia Cameron, Félix Nadar e outros fotógrafos, cujas obras
revelam esforço notável de imaginação e fantasia, de dramaticidade e criação
poética, em torno do simples registro.
Já em 1855, a sociedade francesa da fotografia se empenha em diferenciar os “fotógrafos–artistas” de seus “falsos irmãos”, os fotógrafos “industriais”. A esse respeito, A. Fabris explica:
"O artista fotógrafo (...) se distinguiria de
um profissional qualquer pela ‘escolha da situação’, pelo ‘uso racional da luz
e da sombra’, pela perspectiva, pela harmonia, pelo equilíbrio, pela unidade,
no caso das paisagens; pela pose, pelo fundo, pelos detalhes, pela viragem
(...)".[1]
A esse
respeito, G. C. Argan argumenta que é incontestável o teor artístico da
atividade fotográfica, dado que “o fotógrafo também manifesta suas inclinações
estéticas e psicológicas na escolha dos temas, na disposição e iluminação dos
objetos, nos enquadramentos, no enfoque (...)”[2].
Mais
tarde os fotógrafos começam a se empenhar em produções que enveredam para a alegoria,
para os temas históricos e literários, “ricos de imaginação”, com vistas a
escapar ao rótulo de “arte mecânica” e obter o reconhecimento de seu status de
arte.
Já em
1862, o tribunal decide que a fotografia pode ser “produto do pensamento e do
espírito, do gosto e da inteligência”, pode ser, enfim, considerada arte.
Para
alguns autores os fotógrafos jamais quiseram concorrer com a atividade
pictórica. Segundo Argan, há que se ponderar que, se por um lado é
incontestável que o fotógrafo trabalha no âmbito estético, por outro, isso não
significa que se pode tomar a fotografia como algo a substituir os
procedimentos da pintura[3],
afirmando, com isso, tratar-se de criações distintas e legítimas, cada qual em
seu lugar.
No
entanto, se por um lado a fotografia era uma ameaça a alguns profissionais,
representando “o novo rival” na arte de produzir imagens, para os pintores impressionistas
ela significava oportunidade. Era ela que estimulava o “apetite do público por
imagens da vida cotidiana parisiense”[4]
que, como visto, gradualmente converte-se no tema moderno. Além disso, podendo o
pintor ceder o lugar dos retratos ao fotógrafo, surgia a oportunidade de
dedicar-se a novas pesquisas plásticas, que irão se desenvolver juntamente com
a fotografia. A respeito dos impressionistas, o historiador de arte G. C. Argan
ressalta que eles se valiam de informações preciosas fornecidas pela fotografia;
ele explica:
"A fotografia torna visíveis inúmeras coisas que o olho humano, mais
lento e menos preciso, não consegue captar;
passando a fazer parte do visível, todas essas coisas (...) como também os
universos do infinitamente pequeno e do infinitamente grande, revelados pelo
microscópio e pelo telescópio, passam a fazer parte da experiência visual e,
portanto, da ‘competência’ do pintor".[5]
Pintores como E. Degas
e T. Lautrec se valeram desses materiais fotográficos, como se pode notar em suas
composições de dançarinas e cabarets,
provando que a fotografia chamou a atenção dos pintores não só para os detalhes,
mas também para o próprio “espetáculo
social”. A fotografia, portanto, embora tenha representado um golpe para alguns
artistas, sobretudo aqueles que se ocupavam da pintura retratística, por tornar,
num segundo momento, a representação realista “progressivamente caduca”, para usar um termo de Nicolas Bourriaud[6],
colaborou, por outro lado, e de forma significativa, com os experimentos
estéticos que serão a semente da arte moderna. Assim, dispensando o artista do
compromisso realista, a fotografia acaba catalizando o fechar de um ciclo e a
inauguração de outro.
Nesse âmbito
interessa resgatar, brevemente, as transformações da arte no espaço de quarenta
anos que separam a pintura romântica dos jovens impressionistas: Delacroix é
precursor em pintar as cores vívidas (rompe com os tons marrons do clássico),
privilegiando a luz e as pinceladas “energéticas”, de que beberiam os
impressionistas, contudo, ele não priveligia, ainda, o tema do cotidiano. Entre
esses dois momentos da pintura, encontram-se, entretanto, a fotografia e o
Realismo. Neste, destaca-se o próprio G. Courbet, pintor crítico à fotografia, que
marca a França representando as classes pobres e trabalhadoras, seguindo sua
filosofia de pintar “aquilo que se vê”. Esse
princípio pode ser claramente compreendido como uma influência dos resultados
fotográficos e se mostrará forte inspiração para as próximas gerações,
sobretudo, na narrativa impressionista.
Com
efeito, a fotografia, em consenso com os princípios baudelairianos, lançava na
consciência artística uma vontade de representar o presente, o aqui e o agora, contemplando
o simples, o trivial, o dia a dia e todo a beleza que aí pudesse existir.
Nesse
sentido, Gombrich, que atribui à fotografia o papel de “aliado” na luta dos
primeiros modernos (para legitimar seus métodos artísticos), explica que “a
máquina fotográfica ajudou a descobrir o encanto da cena fortuita e do ângulo
inesperado”, teria, ainda, chamado atenção para “a imagem destituída de traços
lineares, formadas apenas por manchas claras e escuras”, elementos fundamentais,
vale lembrar, na constituição do modernismo artístico. Além disso, fez
“impulsionar ainda mais os artistas em seu caminho de exploração e experimento”.
Se no passado a pintura voltava-se para os fins utilitários, com o surgimento da
fotografia ela se vê dispensada da função tradicional, de “representar o
verdadeiro”, de modo que à atividade pictórica restava impor-se como “arte
pura” e mostrar valores que só são obtidos dessa maneira.
A.P. Renoir, Summer Landscape (1875) |
É desse
modo que a fotografia, ao “liberar” a arte pictórica do rigor naturalista e da
verossimilhança, acabou por induzir os pintores a outros rumos da pesquisa plástica
- e não porque os artistas queriam, mas porque se viam obrigados a entrar em
outros domínios, em que a fotografia não disputasse espaço com os seus
trabalhos. Não é, pois, coincidência que o desenvolvimento da máquina
fotográfica portátil tenha se dado nos mesmo anos em que a pintura
impressionista ganha expressão. “Os
artistas viram-se compelidos”, explica o autor, “a explorar regiões onde a
fotografia não podia acompanhá-los”. Nesse sentido, ele conclui, “a arte
moderna dificilmente se converteria no que é sem o impacto dessa invenção”.[7]
Fotografia, Arquitetura e Pintura
Como
visto, a despeito da polêmica que a fotografia trouxe ao campo das artes
plásticas, é possível identificar inúmeras contribuições de uma para outra. Fabris
nos lembra, contudo, que é na arquitetura que começa a história da fotografia;
ela é aliada importante na projeção da atividade fotográfica. Ela é o objeto da
fotografia em seu período inaugural por ser estática e, assim, favorecer a
técnica que demandava longo tempo de exposição para se atingir resultados
satisfatórios[8].
Os movimentos da arquitetura eram, de modo geral, um campo de trabalho
produtivo para os fotógrafos; seus registros iniciais ocupam-se em grande
medida desses objetos arquitetônicos, entre os quais estavam:
"(...) os remanescentes da arquitetura medieval
e da Antiguidade no continente europeu, os projetos urbanísticos que implicaram
demolições e construções em áreas urbanas (...) as arquiteturas de povos e
culturas exóticas do Oriente e das colônias (...)"[9].
Charles Marville – Fontaine Censier (1865)
|
Charles Marville - Rue de la Harpe (Partie Sud) - 1865-1869
A
fotografia levava a arquitetura ao conhecimento das pessoas, divulgava seus
aspectos, seus feitos e sua importância; era, pois, a um só tempo, “conhecida,
divulgada e interpretada” pelos primeiros fotógrafos[1].
Charles Marville – Arts & Métiers (1877)
Nesse
âmbito interessa observar como os pintores contemporâneos ocupavam-se da mesma
imagem em suas representações pictóricas: a partir da década de 1860, surgem
inúmeras pinturas entre Monet e Renoir e mais tarde Caillebotte e Pissarro
(Figuras 4 a 6), entre outros artistas, que tratam da imagem arquitetônica e
não só dela, como também de seu entorno - ruas e pontes, pedestres, cavalos, os espaços
verdes, a vida citadina, de modo geral. Nessas obras, pode-se facilmente imaginar
que os registros arquitetônicos incutiam nos pintores certa admiração ou
inspiração pelas composições naturalistas.
Claude Monet, Saint-Germain-l'Auxerrois – Paris,
1867
G. Caillebotte, Boulevard Haussmann in the snow -
1879
Mas os
arquitetos também se beneficiavam da nova mídia; a classe “aprendia e
incorporava a fotografia em seu cotidiano”, interessava-se não só pelo “instrumental
útil de trabalho” que a fotografia representava - permitindo estudos dos
procedimentos e dos resultados, o acompanhamento das obras e a comprovação de
sua evolução, sem contar a vantagem do uso promocional que ela propiciava - mas
também porque esses profissionais desejavam algo que a fotografia podia
oferecer: “perpetuar sua própria imagem”[1].
Com
enfoque na cena urbana, os fotógrafos do século XIX registravam um momento
(singular) do dia a dia nas cidades e seu conjunto arquitetônico[2]. E desta
relação, da fotografia com o quotidiano, por meio da arquitetura, surge uma
nova imagem, para impacto do público e dos artistas. Com a exigência cada vez
maior de verossimilhança, por parte do público, o tema atrativo converte-se: os
fatos históricos, as figuras nobres, as imagens bíblicas ou mitológicas, tão
populares até a pintura romântica, perdem lugar para o tema simples da vida
moderna, do quotidiano e das coisas mundanas.
A arte
pictórica se beneficia da fotografia e não só de seu caráter documental, mas de
seu próprio repertório, transformando a fotografia em “auxiliar” da pintura. Delacroix acreditava que o daguerreotipo era “capaz
de remediar as lacunas do ensino”. Embora o pintor não reconheça a nova
tecnologia como inspiração, mas apenas como “meio de informação”, percebe na
fotografia “um registro fiel a ser corrigido pelo olho”. Em Corot, uma versão
adaptada, em termos estilísticos, das características fotográficas já se esboçam
em suas telas de 1840 e, a partir de 1848, o pintor realista apresentará uma
visão bastante “modificada pela fotografia” que se revelam pelas “tonalidades
difusas” e “imagens não totalmente definidas” de seus quadros. Em Courbet, os
registros fotográficos lhe serviam de exemplo, tanto pela “naturalidade da pose”,
quanto “pelo caráter impessoal das
figuras”[3].
As próprias
dificuldades técnicas das imagens fotográficas se convertem em qualidades de
uma nova linguagem:
"(...) a desintegração das formas, a contração
do espaço, a desarticulação de planos e a perda de profundidade, culminam em
imagens sintéticas, que anunciam mudanças nas convenções visuais instituídas
pelo realismo, além de uma preocupação precoce em registrar aspectos dinâmicos
da natureza, como o movimento".[4]
E. Degas, La classe de dance – 1871-1874 |
As duas plataformas de registro, fotografia e pintura, intercalavam-se, pois, servindo-se uma da outra. No caso de Degas, seu maior interesse nos estudos da fotografia era analisar, em minúcia, o movimento do corpo humano (além de animais) que seriam explorados na artes plásticas (escultura e pintura). Através de sua pintura, é possível notar como a fotografia permitia ao artista observar os detalhes sutis como o contorno das vestimentas das dançarinas ou mesmo os seus gestos, o ato de ajustar um laço, de vestir-se, de alongar-se, etc. Reunia, enfim, observações acerca dos “rituais do corpo e os hábitos dos olhos”[1] que rendiam composições extraordinárias para o artista da época.
De
modo geral, Realismo e Fotografia constituiam “uma dimensão única para os defensores
da arte como “fantasia”. Estes viam um problema nos rumos que a arte pictórica
tomava na medida em que os “aspectos descritivos da realidade” praticados por
ambos implicava no “abandono do modo romântico de percepção e de todo tipo de
retórica”. A critíca contra o Realismo não tardou em aparecer: responsabilizado
pela “equiparação de todos os temas, o interesse pelos aspectos mais grosseiros
e mais banais da realidade, o banimento do belo e a ideia do campo pictórico”, o
daguerreótipo e a fotografia, para alguns, teriam sido os culpados pelo
surgimento de uma arte que se mostrava “sem gosto, sem consciência” e que “se
deixa subjugar pela aparência das coisas, quaisquer que elas sejam, e registra
mecanicamente suas imagens”. Falavam da pintura naturalista.
Paul
Valery chama atenção, já em 1939, para uma coincidência notável: “a perda da
magia da visão romântica teria começado a partir de Daguerre, cujo invento
tornou o ato de ver mais preciso (...), impondo novas exigências de veracidade
à própria arte”[2].
A exaltação do naturalismo teria ganhado força, segundo o poeta simbolista,
graças ao advento da fotografia.
Essa
arte, no entanto, guarda valor incontestável se pensarmos as conquistas da arte
moderna. Fabris explica:
"Na medida em que propunha a abolição do belo e
do monumental, trazendo para o circuito da arte temas considerados banais e
quotidianos, teria contribuído para a superação de preconceitos, que impediam a
valorização de uma realidade que se impunha fora do eixo internacional"[3].
Interessa,
para esta reflexão, compreender que a fotografia contribui para o
desenvolvimento de uma nova estética, original, mas pautada pelo naturalismo e que
acaba por colocar em crise os valores tradicionais da pintura acadêmica.
“a pintura
do final do século XIX tenta romper com a natureza idealizada da estética
acadêmica, buscando na paisagem selvagem e desordenada uma nova forma de
beleza”. O gosto pelo naturalismo que a fotografia faz emergir se mostrará mais
tarde o embrião do que se converteria em uma arte moderna (“rompeu as pontes
com o passado e abriu caminho para a pesquisa artística moderna”[4]).
Os registros fotográficos executam, assim, para além da produção, a divulgação
de uma nova mentalidade, que emerge da nova sociedade. Com uma linguagem
própria, ela faz renascer, entre outras coisas, o interesse pelo paisagismo e remete
a nova visualidade ao senso comum. Suas relações com a arte pictórica resumem-se,
pois, em dois momentos importantes: a ruptura com a “visualidade tradicional” e
a inauguração de um “novo padrão visual”[5].
"Era difícil dizer se era maior o interesse do
fotógrafo por aqueles pintores ou o deles pela fotografia; o que é certo, em
todo caso, é que um dos móveis da reformulação pictórica foi a necessidade de
redefinir sua essência e finalidades frente ao novo instrumento de apreensão
mecânica da realidade" (G. C. Argan)[6].
Jean Béraud - La Porte St. Denis (s/d) |
BIBLIOGRAFIA
ARGAN, G. C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
BAUDELAIRE, C. O Pintor da vida moderna. São Paulo: Ed. Vega, 2013.
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KOSINSKI, D. The Artist and the Camera. From Degas to Picasso. Dallas: Yale Press, 1999.
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FRIZOT, Michel. Os continentes primitivos da fotografia. In: TURAZZI, Maria Inez Turazzi (org.). Fotografia (Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nr. 27). Rio de Janeiro: IPHAN, 1998.
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GOMPERTZ, Will. Isto é Arte?. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
NÉRÉ, Jacques. História Contemporânea. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.
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