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quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O segredo das pinturas

 

E. Delacroix - A liberdade guiando o povo (1830)


Aquele que percorrer com um olhar atento a história da arte perceberá como nela se revelam, desde a mitologia grega até as pinturas contemporâneas, as questões mais latentes da humanidade. O que se repete periodicamente só pode ser aquilo que nos é intrínseco e inevitável; que dorme nas profundezas do espírito e, eventualmente, acorda cheio de fúria: as guerras, as lutas de classe, a sede de glória e poder, as paixões viscerais, a sensualidade, a boemia, a concupiscência, os racismos diversos, as modas, o convívio social, o conflito interno, as angústias, as conquistas, a relação destrutiva que sempre mantivemos com a natureza, e, enfim, um pouco de bondade, diluída num mar de atrocidades.

Tudo isso somos nós, há milênios, nos cantos mais recônditos do que chamamos "mundo". Como num eterno ciclo, que não se cansa de repetir, atravessamos os séculos executando, alternadamente, as coisas mais belas e as mais repugnantes: criamos a religião para dar conta da criação e, ao mesmo tempo, promovemos massacres; criamos a arte para expressar (entre outras coisas) o encanto que a natureza produz em nós e também destruímos, deliberadamente, o próprio planeta; apreciamos o belo, mas anulamos facilmente sua importância quando se trata de riqueza.

Tudo isso pode ser visto nas telas (algumas, claro) e, se elas retratam a realidade de então, em alguns aspectos, a história não se mostra linear, ou seja, em evolução; ao menos no aspecto humano e cultural não parecemos evoluir com o passar do tempo. Não é difícil notar que a sucessão dos séculos não tem representado um progresso contínuo, mas apenas um looping irracional, com momentos altos e baixos levado ao sabor do acaso e suas imprevisíveis reações - o que também é algo fascinante de se pensar. (Quem teria imaginado uma aberração como o nazismo depois de uma Belle Époque, que celebrava justamente um período de paz e progresso na Europa? ou, quem imaginaria o empenho necessário em legitimar o casamento homossexual nos dias atuais, quando há dois milênios atrás era justamente esse o "amor nobre" considerado pelos gregos, aquele que se dava entre dois homens e por afinidade intelectual). Bem, a rota feliz hegeliana, rumo ao Saber Absoluto não se mostrou confiável.

Uma comparação entre a Grécia antiga e o vertiginoso século vinte (fiquemos nele, pois o nosso está só começando) revela que todo o excesso material e os recursos da contemporaneidade promovem um déficit intelectual com relacão aos nossos antepassados (toda a tecnologia nos deixa mais alienados do que propriamente cultos) e não chegamos nem perto da vasta produção cultural dos gregos antigos. Não é intrigante pensar nisso? É isso que a arte nos mostra, especialmente as pinturas.
 
Merecem destaque esses artistas que, dos diversos movimentos e tendências de cada época, cobriram grandes eventos com suas narrativas coloridas.
É preciso dizer que, fazendo as vezes da fotografia e retratando (fosse a intenção ou não) suas realidades nas telas, eles legaram, para o desfrute da posteridade, verdadeiras reportagens - foram grandes "fotógrafos" dedicados de outrora, que nos dão acesso a conhecer outros tempos e outros povos que montaram as bases do nosso presente e, assim, nos permitem verdadeiras viagens: no tempo e para dentro de nós mesmos, para a nossa história.
Esse é o segredo das pinturas, se você olhar atentamente para elas, elas te contarão muitas coisas...
 



quarta-feira, 14 de agosto de 2013

O que Nietzsche quis te contar...




Eu sei que Nietzsche, como a própria filosofia, causa certa preguiça em muitas pessoas, mas também acredito que muitos têm curiosidade de saber o quê, afinal, esse homem pensou, porque é tão célebre, na literatura e na filosofia ocidental, o que de tão importante e arrasador ele tinha para dizer.
Friedrich Nietzsche, ao contrário do rótulo que lhes imputam os leigos, é um pensador da exuberância, da práxis e portanto da realização, da liberdade. Sua leitura, se (e somente se) bem compreendida, é capaz de provocar grande entusiasmo na alma e uma vontade surda de viver. É por apontar de forma impiedosa as instituições, das mais tradicionais, como a fonte da infelicidade humana que Nietzsche acaba desfrutando de pouca receptividade nas mentes mais formatadas - previsível: a missão da ala tradicional sempre foi denegrir e, preferencialmente, calar as ideias mais elevadas, contudo, isso jamais abalou as convicções do filósofo, dada sua autenticidade “incorrigível”. Este gênio irrefutável tem mesmo o dom de incomodar os seres supersticiosos, e para esses, deixou seu conselho: “a verdade é para os corajosos”. Ponto.
Sendo assim, por considerar seu trabalho, antes de mais nada, uma leitura que fascina e um terreno de profundo interesse a qualquer ser pensante, decidi postar aqui um pequeno resumo para, em último caso, despertar em alguns certo interesse...mas se não isso, ao menos, para que o conheçam (ainda que superficialmente, pois esse seria um trabalho para a vida toda), livre de estereótipos e numa linguagem fácil - de uma simples estudante.

Em primeiro lugar, para ler Nietzsche é preciso ter duas coisas: calma, pois ele vai voltar lá nos gregos para entender a raíz dos "nossos problemas" - mas não sem clareza, pois, apesar de sua erudição, ele se mostra um pensador prático, que vai direto ao ponto (e até demais, indiferente aos seus "sentimentos",  ou seja,  visões de mundo, que serão detonados)  e, em segundo lugar, é preciso uma pequena dose de coragem, pois ele certamente te causará pensamentos perturbadores sobre a sua própria condição (humana), mas muito interessantes, de uma lucidez  genial e, por vezes, irreversíveis.  Exatamente isso, este é um daqueles pensadores que remodelam sua concepção de mundo, para sempre. Esse filósofo, de origem alemã, que viveu entre os anos de 1844 e 1900, foi um pensador muito a frente de seu tempo, como ele mesmo entendeu quando previu (e acertou) que seus escritos teriam valor somente em tempos futuros. Seu sucesso se deu postumamente, ele mesmo não o testemunhou, pois seus contemporâneos não estavam preparados para lhe dar o valor que mereceu. Mas você está! então, dê uma chance ao bigode e ele te surpreenderá.
Como os elementos do pensamento Nietzscheano são vastos, o que tentarei fazer é expôr, nesse breve espaço (e que exigirá mais que uma postagem), aqueles que são basilares em sua construção filosófica.
Para entender o projeto de Nietzsche é fundamental ter em mente seu objeto de estudo: a civilização e seus valores. 
Do que estamos falando? de seu modo de vida : o que é certo fazer, como devo viver, porque é assim, etc. O tema que ele se propõe investigar - os valores - é, obviamente  de interesse geral, por ser o que determina nosso modo de vida, e, portanto, nossa própria história. Seus valores estão prontos para você muito antes de você nascer, e eles vão te moldar, te formar, te realizar e te frustrar. Você vai mesmo se sentir muito mal às vezes, um zero,  e isso não tem nada a ver com você, mas foi preparado para você. Esse é o campo de fenômenos que o intriga, pois sua preocupação  essencial é o que o próprio autor chama de “a elevação do tipo homem”, isso quer dizer que Nietzsche vê na educação superior da humanidade o maior de todos os deveres e para isso elege como tarefa suprema do filósofo (do futuro) a avaliação dos valores e a determinação de sua hierarquia, ou seja, o que valorizamos e porquê?. É disso que ele irá se ocupar. Chegado este momento acho que posso dar a dica: a elevação do tipo homem requer o desprendimento daquilo que o rebaixa, é o caso das superstições, dos mitos, das invenções gerais que visam suportar relações de domínio, controle social e controle de consciência.
Bem, ao empreender uma profunda análise sobre os valores do ideário moderno de civilização, o autor verifica que esses estão profundamente calcados no cristianismo, portanto, seu alvo de crítica será o ideal moderno de homem: bom, virtuoso e solidário (oriundos da moral cristã). O autor constata que o cristianismo e sua obsessão pelo “além”, pelo “verdadeiro mundo” tem sua raíz no platonismo, que, ao dividir o mundo em “verdadeiro” e “aparente”, hipostasiou um “mundo em si”, gerando, assim,  um outro mundo (o além), que para ele seria "o verdadeiro", para que o nosso, o mundo material, o que nos é dado (e o único de que se tem garantia) fosse rebaixado, como inverdade e inferior. E isso não por acaso, mas exatamente para suportar as relações de que falei há pouco, de domínio.
Posteriormente o cristianismo se ocupará de disseminar, doutrinariamente, essa concepção corrompida de mundo, permeando séculos de ignorância, inculcando centenas de gerações de uma moral "ideal" (mas ideal para quem? é a pergunta de Nietzsche); criou para a humanidade uma aversão aos seus próprios instintos (o famoso "pecado"), ao mundo e as coisas terrestres, o que culminará em uma desnaturalização do homem.

Esse sentimento hostil, de negação ao mundo dado, que tem sua gênese no platonismo e seu reforço no cristianismo, produz, segundo Nietzsche, os espíritos fracos de vontade, sempre dependentes de uma explicação metafísica, que lhes forneça o sentido da vida e do sofrimento, este sempre associado  à mudança, ao devir, à impermanência das coisas, à mortalidade enfim - todas elas tão próprias deste mundo. É neste cenário que surgem conceitos desastrosos, cerceadores para a experiência humana, tais como: o pecado, a culpa, o castigo. Instrumentos formidáveis de poder.
Nietzsche é um admirador do mundo helênico, o anterior a Sócrates, porta-voz de Platão (século IV a.C), onde a compreensão de mundo era mais pura, mais saudável, pois não se submetia os instintos à razão (de novo, até aparecer Sócrates e seu racionalismo) e nem por isso tratava-se de uma civilização bárbara. Não se temia um deus, punidor, ao contrário, perseguia-se os deuses e suas virtudes, entre as quais estava a força e não a humildade (cristã); os instintos não eram reprovados, havia certo equilíbrio entre eles e isso era para o filósofo...saúde. Com o racionalismo socrático, ao contrário, vem a decadência, ou seja, o combate radical aos instintos pela tirania da razão; elevação de uma parte da alma (razão) em detrimento de todas as outras – isso é para Nietzsche a decadência, a doença do espírito, pois constitui o desequilíbrio e a desnaturalização do tipo homem. Falando abertamente, Nietzsche abomina a humildade e solidariedade cristãs.
O desdobramento disso no cristianismo significará a negação do ego, a debilitação das potências – a produção de homens de vontade fraca, formados para a obediência. Uma vez que a preocupação de Nietzsche é promover um resgate dos direitos da natureza (profanados pela religião e seus valores coibidores), faz-se urgente empreender uma valoração dos valores - da moral vigente – que já duram séculos, para prejuízo de várias gerações que viveram em função do “além” e não do único mundo que lhe foi dado experimentar.

Essa é precisamente a inquietação de Nietzsche, de modo que tal valoração, ou se preferir, tal reavaliação dos valores suscitará a necessidade de se esclarecer uma pergunta fundamental no pensamento nietzscheano : quem interpreta a moral? (ou seja, quem a estabeleceu? aos interesses de quem ela serve? ou teria ela surgido com a criação do mundo?) E aqui entra um aspecto importante para a compreensão dessa filosofia.
Para responder a isso, o autor realizará uma genealogia da moral para compreender em que circunstâncias nascem esses valores. E essa será a “parte II” da minha tarefa (que virá em seguida) e também do nosso espanto.