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sábado, 30 de maio de 2015

Literatura e Pintura - O papel do intelectual e a noção de engajamento em Sartre e Merleau-Ponty.







As rupturas com o pensamento francês


Para analisarmos a leitura que fazem os contemporâneos Sartre e Merleau-Ponty acerca dos temas investigados - o intelectual, a liberdade e o engajamento - importa antes destacarmos suas posições com respeito à tradição filosófica francesa. Sabe-se que o tema “imaginário e liberdade” é bastante presente no percurso do pensamento francês, o que será, de certa forma, continuado pelas filosofias de Sartre e Merleau-Ponty, como veremos adiante; por outro lado, o que também é característico da tradição francesa, contudo objetado pelos filósofos em questão, é o que podemos chamar de “espiritualismo”. Herdado pelos sistemas filosóficos clássicos, sobretudo os de Descartes e Kant, esse espiritualismo consiste na compreensão dualista do ser, que postula nele uma cisão, como: corpo e espírito ou fenômeno e coisa em si e assim por diante. A recusa desta segunda característica da tradição francesa é o que compartilham, guardadas algumas diferenças, os pensadores Sartre e Merleau-Ponty.

Enquanto Merleau-Ponty recusa essa compreensão dualista do ser, por descordar profundamente que a subjetividade possa estar separada da corporalidade, Sartre a refuta por não conceber o espírito como uma “coisa” ou uma substância, que seja dotada de essência; para ele o espírito ou a consciência são apenas ato. Nas pegadas de Husserl, Sartre considera a consciência como uma intencionalidade, como um movimento ou um “vento” em direção a algo (2008: 42).

Exposto isso, podemos entender que ambos se posicionam de forma crítica aos dualismos clássicos filosóficos, com a diferença de que, se em Sartre há um desejo de “dessubstancializar”, isto é, a compreensão do homem como sujeito desencarnado: sua consciência compreendida não como “coisa”, mas como um processo, que está em constante movimento e é desprovido de uma essencialidade, veremos que em Merleau-Ponty, embora este também descarte seu caráter substancial, a consciência está relacionada, mesclada ao corpo, ela é “consciência encarnada”. Ele dirá: “Sou tudo aquilo que vejo, sou um campo intersubjetivo, não a despeito de meu corpo e de minha situação histórica, mas ao contrário, sendo esse corpo e essa situação e através deles todo o resto [...]” e acrescenta que: “a consciência se considera responsável por tudo, ela assume tudo, mas propriamente ela não tem nada e faz sua vida no mundo” (1999: 606).

O corpo, como aquilo que nos propicia qualquer percepção acerca do mundo com que nos relacionamos, como um “pólo de experiência” (idem) e, portanto, como produtor de sentido, não pode estar separado do espírito. Dada sua importância na exploração sensível do mundo, não se pode ignorar, para Merleau-Ponty, o papel desempenhado pelo corpo e a percepção do mundo propiciada por ele na construção de sentido e, dessa forma, reivindicar a emancipação do corpo para a consciência seria o mesmo que descartar parte essencial do trabalho na constituição da própria subjetividade.

Dito de outro modo, a consciência, que para Sartre é regida, por assim dizer, pela contingência, movimentando-se como “vento”, atua, para Merleau-Ponty, em conjunção total com o corpo, trabalhando juntos na experiência e na construção da percepção do mundo, que de outro modo não se formariam. Este é o mote, importa citar, da filosofia de Merleau-Ponty: realizar uma revisão crítica dos dualismos, mas sobretudo dedicando-se a resgatar uma espécie de encarnação do espírito, como que ligando-o de volta ao mundo, sem que isso signifique, no entanto, admiti-lo como uma coisa ou substância. Com isso, o pensador acaba por formular um novo tipo de ser: a consciência que se revela corpo; nem pura objetividade, nem pura subjetividade, trata-se de um sujeito que traz consigo um corpo e que deve ser considerado. Opondo-se a teoria cartesiana, Merleau-Ponty busca explicar o ser humano a partir da experiência “viva”, que o conecte ao mundo sensível. Essa revalorização da corporalidade na composição do ser será importante para compreendermos, mais adiante, o papel atribuído pelo filósofo ao gesto, ao comportamento e à expressão na pintura, isto é, às linguagens do corpo humano como - ao lado da escrita e da palavra – produtores legítimos de sentido.

Não são poucas as diferenças e semelhanças encontradas nos dois sistemas filosóficos; importa, todavia, nessa etapa de nossa reflexão, fixar como ponto de partida a ruptura desses pensadores com a tradição dualista do pensamento francês, para a partir dela construírem suas teorias, nas quais desenvolvem suas concepções, como já citamos, acerca da liberdade e do engajamento por parte do intelectual.



O imaginário, a liberdade e o engajamento intelectual


Exposta a base conceitual (“antidualista”) de que partem Sartre e Merleau-Ponty, para pensarem a consciência (ou espírito) em caminhos diferentes – no primeiro completamente desencarnada (não-coisificada) e, no segundo, emaranhada ao corpo – cumpre introduzirmos aqui as questões relacionadas à liberdade e o modo como elas desaguam na ideia de uma responsabilidade por parte do intelectual: a noção de engajamento.

Para Sartre, o sujeito não tem uma essência, tampouco uma finalidade e, dessa forma, encontra-se em pleno desamparo, só podendo ser explicado pela liberdade – é ela é, segundo Sartre, sua condição ontológica.

Isso nos permite pensar, segundo o filósofo, que a constituição do sujeito está sempre em processo, isto é, a própria existência é processo, pois, dado sua condição (liberdade), nunca mostra-se fixa, determinada ou mesmo acabada, é, ao contrário, sempre projeto, sempre busca e, compreendendo a liberdade como contingência, paradoxalmente o homem só pode ser definido pelo seu caráter “não-definível” ou não-determinável: puramente contingencial.

Sartre diz que na infinita contingência do mundo, estamos “condenados a ser livre” (2009: 678), isto é, há sempre que se fazer escolhas e mesmo o ato de não escolher, o autor nos adverte, já constitui uma escolha. Isso quer dizer que tal condição nos dá certo poder, na mesma medida em que implica uma grande responsabilidade. Ocorre que, se não podemos escapar da liberdade, também não podemos fugir ao seu par, sua contrapartida. Se no nada (contingência) de que meu ser é composto, tenho liberdade para mover-me para quaisquer direções, não posso evadir-me da responsabilidade que isso me traz. A radicalização formada pelo pensamento sartreano é que, sendo o sujeito pura liberdade, está em seu poder a escolha de si, isto é, a construção de si mesmo - “escolhendo-me é que me faço ser” (idem) - ainda que dentro de certos limites, impostos pelas situações dadas (tais como sexo, local de nascimento e outros) – subentendendo-se nessa construção de si mesmo, a escolha de valores, a própria criação deles e a geração de sentido.

Se assim é, se a liberdade permite a construção de si, a criação de sentido e de valor, começamos a visualizar de que modo o intelectual é chamado a um compromisso com sua sociedade. Na possibilidade de valer-se de sua liberdade e “criar valor”, o intelectual (o escritor), por meio do romance ou da prosa (modalidades ideais para Sartre), tem o dever de chamar seu leitor, por uma espécie de “apelo” (2004: 39) a uma reflexão crítica acerca de seu mundo, fazendo, diz o autor, com que ninguém possa ignorá-lo ou “considerar-se inocente diante dele” (2004: 21). O intelectual carrega, pois, esse dever de incitar em seu leitor uma reavaliação dos sentidos e dos valores, possibilitando-lhe uma reconstrução dos mesmos. Eis o compromisso do escritor - e seu trabalho, importa esclarecer, deve estar comprometido não só com seu tempo, como também orientar-se por um viés político.

Notamos que, no que toca a produção de sentido, se em Merleau-Ponty nosso ponto de partida é o corpo e a percepção, em Sartre ele será o imaginário – é ele, sendo pura liberdade, o espaço onde se pode abrir horizontes de experiência e criar o possível. Assim, se em Merleau-Ponty (1952: 99) o homem, na relação com seu corpo, é tido como ser simbólico (“qualquer uso humano do corpo já é expressão primordial”); se seu comportamento, gestos e palavras, é o que produz sentido, em Sartre é antes na imaginação que esta produção se dá. O que faz Sartre, a partir deste cenário, é: instaurando uma ponte entre o imaginário (liberdade) e o exercício do engajamento, indicar o intelectual como o responsável por essa intermediação e como o instrumento fundamental nesse movimento.

Em Merleau-Ponty, como mencionado, encontramos uma abordagem diferente do imaginário. Ele destaca antes o caráter corpóreo das produções imaginárias, como parte integrante de um todo que só assim poderia produzir sentido. A predominância da razão, como uma “instância superior” não tem lugar na filosofia de Merleau-Ponty (RAMOS, 2010). Este pensador, ao contrário, instaura o primado da corporalidade como parte fundamental da consciência e, dado que a reflexão é experimentada no corpo, ele postula, como visto, que somente entrelaçados, e não de outra forma, corpo e consciência, realizam a produção de sentido. Nesse aspecto, Merleau-Ponty parece colocar em evidência um ponto frágil do pensamento sartreano que, ao deixar de observar o papel do corpo na produção de sentido, ressaltando somente o imaginário, incorre - não obstante sua objeção ao espiritualismo francês - em um idealismo de base semelhante e que revela-se incoerente com o teor de sua filosofia. Embora a imaginação se mostre liberdade absoluta da consciência, como quer Sartre, ela nada faria, ressalta Merleau-Ponty, sem um corpo que a pusesse em contato com o mundo sensível.

A partir desse embate, importa para nosso trabalho pensar que se na produção artística o imaginário é largamente solicitado, a experiência sensível também o é – e nela, afirma Merleau-Ponty, também abre-se horizontes e perspectivas significativos, como veremos a seguir.

A questão do engajamento em Merleau-Ponty nos convém desenvolver melhor no próximo tópico, dado que para isso precisaremos falar minuciosamente sobre a modalidade da pintura.


A literatura e a pintura


Como sabemos, a modalidade privilegiada por Sartre no exercício do engajamento é a literatura e, portanto, a figura em destaque é a do escritor. Para este filósofo a literatura é o elo entre imaginação e liberdade; com ela o sujeito experimenta o exercício da mesma, ao participar de um “desvendamento crítico” do mundo. Mais especificamente, o romance ou a prosa convidam o leitor ao exercício do engajamento ao explicitarem, de diferentes formas, críticas acerca do mundo dado, as quais se seguem de propostas de transformações do mesmo. Como vimos, o papel do intelectual é, comprometido com seu tempo, construir sentido e permitir uma ação “desvendante”, sempre prenhe de novos significados. Aqui, o papel do leitor, cumpre citar, é tão importante quanto o do escritor, pois que ao desvendar o objeto de leitura, ele também está realizando uma criação, que não ocorre, no entanto, de maneira automática, isto é, mais do que ler as palavras como signos, é preciso, diz Sartre mergulhar-se na obra, lançar-se para além da escrita, entregar-se; é preciso “atravessar” a obra (2004: 37).

O processo da leitura consiste, pois, em uma “criação dirigida”, cabendo ao leitor conectar os dados fornecidos pelo autor e construir, a partir de sua própria subjetividade, o sentido que permeia a obra. A esse respeito, Sartre afirma que “o objeto literário não tem outra substância a não ser a subjetividade do leitor” (2004: 38). Há, de fato, um convite por trás de toda escrita, que só é aceito pelo leitor, mediante a própria leitura, sendo que, a partir dessa característica, o filósofo distingue a prosa da poesia: caracterizando-se mais pela utilidade do que pela beleza, o texto literário é especial no sentido de valer-se da linguagem sempre com uma intenção, a de comunicar algo que incite à ação, mais do que à simples contemplação.

Podemos notar que para Sartre o engajamento está, grosso modo, no ato de compreender que a liberdade é atividade criadora e, partindo desta premissa, orientar a experiência estética (neste caso do leitor) para uma possível vontade de ação é o que constitui o ato engajador de uma obra. Em seu texto Que é a Literatura?, Sartre não nos deixa dúvida de que esse é para ele o sentido do fenômeno estético, ao afirmar que “o mundo é minha tarefa” (2004: 49).

Posto isso, passamos para a análise que faz Merleau-Ponty acerca do mesmo tema. Primeiramente podemos pensar que a diferença mais marcante entre os dois filósofos é o fato de que, embora a noção de engajamento esteja presente em ambos, se em Sartre ele se configura como urgente, em Merleau-Ponty seu ritmo será lento. Se no primeiro o engajamento na obra de arte deve ter um viés político e estar comprometido com seu tempo, veremos no segundo um afrouxamento desses limites, não sendo necessariamente o conteúdo expresso e político o único a gerar no indivíduo experiências que possam abrir novas dimensões de experiência e suscitar transformações.

Para Merleau-Ponty a pintura é a grande arte. O poder de expressão pictórico guarda em si uma gama de possibilidades; ele explora dimensões diversas do real e suscita relações com o mundo que a linguagem, por sua vez, teria muito trabalho para realizar (1952: 84).

Com efeito, a predileção pela pintura nos remete à compreensão que faz Merleau-Ponty da chamada consciência encarnada, isto é, vincula-se ou justifica-se pela ideia do corpo como produtor de sentidos. Ocorre que, se a subjetividade se constrói, como vimos, na exploração sensível do mundo - por intermédio do corpo - merecem destaque, segundo o autor, não só a consciência (o imaginário), mas também a percepção e a expressão, traços constituintes na arte pictórica.

O corpo, para Merleau-Ponty, é em si um campo simbólico, ele carrega um passado (uma vivência) e abre por gestos (além de palavras), articulando percepção e expressão, uma dimensão do possível. O corpo é um “sistema de sistemas”, diz o filósofo; “votado à inspeção de um mundo”, ele é “capaz de transpor distâncias, de desvendar o futuro perspectivo, de desenhar [...] um sentido” (1952: 99).

O que faz Merleau-Ponty é, sobretudo, valorizar a experiência sensível - “encarnada” - e, mais importante, não restringindo a produção de sentido exclusivamente às formas conceituais. Acerca disso, o autor afirma que a “expressão do mundo” não deveria estar sujeita aos conceitos fechados, mas antes à poesia. Ele explica: “é preciso que ela seja poesia, isto é, que desperte e reconvoque por inteiro o nosso puro poder de expressar, para além das coisas já ditas ou já vistas” (idem, p. 82). Em uma palavra, o autor nos atenta para o fato de que se a própria consciência é uma experiência encarnada, corpórea e no mundo, não há razão para priorizar o conceito em detrimento da experiência sensível - tão representada na pintura. Ocorre que, segundo o autor, há emblemas simbólicos que aguardam ser explorados nos mais diversos modos e tais emblemas, como ele demonstra, não estão exclusivamente na escrita.

Pintor e escritor desvendam igualmente aspectos do mundo, com a diferença de que na pintura, a linguagem é “muda”, linguagem do visível - o que não significa, contudo, que ela não possa ser lida; trata-se de uma “linguagem tácita”, mas que fala “a seu modo” (idem, p. 76).
 

L. Afremov
A esse respeito há que se ter em mente que, para Merleau-Ponty, a arte não é exclusivamente cópia do real, embora também não seja propriamente ficção, trata-se antes de um “entre”, um “vão”, que, no entanto, também manifesta alguma informação sobre o nosso mundo e nossa relação com ele. Isso quer dizer que há, nesses espaços, nesses silêncios, um diálogo acontecendo na obra (por vezes à revelia de seu criador), com o qual se institui um sentido novo, sendo possível, pois, a partir dele, sugerir novos emblemas e promover um novo imaginário, que renova a própria experiência (idem, p. 75). Ele diz: “a obra consumada não é [...] aquela que existe em si como uma coisa, mas aquela que atinge seu espectador, convida-o a recomeçar o gesto que a criou e, [...] a reunir-se ao mundo silencioso do pintor” (idem, p. 81).

Compreendido a apreciação de Merleau-Ponty pela expressão pictórica, resta-nos compreender a leitura que ele faz a respeito do engajamento e de que modo ele estabelece uma relação entre as duas coisas.

Merleau-Ponty nos diz que, se observarmos o curso das coisas, notaremos que o mundo nos provoca constantemente; trazendo sempre novas inquietações, ele nos “pede” com frequência para “ser pintado”, ou seja, para ser interpretado. Neste âmbito, podemos pensar, situa-se a pintura: ela responde a esse impulso da sensibilidade que se quer visível. Mas para além disso, acrescenta o autor, ela responde a uma tarefa histórica; retomando o projeto de outros pintores, uma obra pictórica encontra-se sempre em um ponto entre um passado e um futuro, isto é, executando seu “momento” tacitamente, ela “desperta ecos” em direção a uma coisa e outra, “se une”, diz o autor “a todas as outras tentativas na medida mesma em que se ocupa resolutamente de seu mundo” (1952: 93).

Como isso se relaciona com o engajamento? Para Merleau-Ponty há um discurso na pintura - na história da pintura - e a responsabilidade do artista consiste justamente em participar com seu “momento” (entre um passado e um futuro) desses desdobramentos do discurso, na linha extensa do tempo. O engajamento do artista é, para além de seu tempo, histórico, e nesse sentido, diz Merleau-Ponty, ele sempre retoma uma “tradição”, na medida em que também “funda” uma (1952: 94).

Certo de que todos os pintores concentram-se numa “única tentativa” (1952: 101), Merleau-Ponty afirma que há sempre uma “busca” ou uma “questão” sendo continuada nas obras (1952: 69) e, desse modo, toda obra que dê seguimento a esse trabalho já é, para o autor, engajada.

Posto isso, podemos compreender o caráter lento do engajamento em Merleau-Ponty: essa “tentativa” descrita acima, que se constrange entre passado e futuro e que sempre retoma questões inacabadas, pressupõe, não a urgência (de Sartre), mas antes uma espera. O autor atenta que não se pode exigir do intelectual e seu engajamento um resultado instantâneo, seja no pintor, seja no escritor, estas figuras desempenham seu papel (participam) num curso longo do tempo, que só lentamente vai produzindo e reproduzindo seus desdobramentos, nos mais diversos modos e, dessa forma, o engajamento das chamadas “obras da cultura”, não se restringe a um tempo, nem obedece a orientações determinadas. Seu trabalho situa-se para além de seu próprio tempo e seu cultivo se dá a longo prazo. A esse respeito, recorrendo a filosofia hegeliana e numa posição contrária à de Sartre, Merleau-Ponty entende a história como “inscrição e acumulação, para além dos limites de países e dos tempos”, ou uma “maturação de um futuro no presente e não o sacrifício do presente a um futuro desconhecido”, e nele, diz ainda, “a regra da ação não é ser eficaz a qualquer preço, mas principalmente ser fecunda” (1952: 107).

Podemos concluir que é pautando-se por essa ideia de fecundidade que o trabalho do intelectual, em Merleau-Ponty, limita-se a despertar no indivíduo os emblemas que possam semear novos sentidos, admitindo-se aqui o futuro (em lugar de “seu próprio tempo”, como em Sartre) e um horizonte amplo de experiências, para além de um viés determinado. É, enfim, esse campo aberto o que Merleau-Ponty valoriza na arte pictórica e seu modo de produzir sentido. Enfatizando que o trabalho do pintor e do escritor exigem um esforço intelectual semelhante e dando destaque sobretudo à compreensão, aqui subentendida, de que o corpo, em si, é uma expressão espontânea e cheia de sentidos, o autor concluirá, enfim, que “é legítimo tratar a pintura como uma linguagem” (idem, p. 109), ainda que indireta, concluindo que “a linguagem diz e as vozes da pintura são as vozes do silêncio” (idem, p. 115).


Enfim...

Notamos que, no curso de nossa investigação, evidencia-se, entre divergências e aproximações, o fato de que Merleau-Ponty e Sartre, como já esboçado, não se mostram inteiramente em desacordo. No trabalho de Merleau-Ponty, que se esforça em reconciliar as posições dos intelectuais – pintor e escritor - sem instaurar qualquer predomínio de uma sobre a outra, destaca-se o ato de demonstrar, acima de qualquer coisa, que ambas as artes realizam a mesma tentativa, de expressão criadora e em cujo silêncio residem inúmeras possibilidades de experiência.

Pensar o silêncio como um “lugar” de significados já é, em si, uma reflexão inovadora. Mas para além disso, ao pensar que observar um quadro, como ler um livro, consiste em “desvendar” o mundo, somos conduzidos a valorizar a arte, em geral, como atividade e dimensão fundamental da experiência humana. Enfim, o que este filósofo faz - ao lado de Sartre - é nos chamar atenção para a possibilidade que se tem de abrir, no interior próprio da cultura, novas dimensões de experiência, nos lembrando, com isso, que “o espírito do mundo somos nós, a partir do momento em que sabemos mover-nos, a partir do momento em que sabemos olhar” e esse “milagre”, ele diz, “nos é natural [...] começa com a vida encarnada”.





Bibliografia



MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MERLEAU-PONTY, M. A Linguagem indireta e as vozes do silêncio. São Paulo: Cosac & Naify (publicado originalmente em Les Temps Modernes, jul. 1952 pp 2113-44; ago.1952, pp. 70-94).

RAMOS, SILVANA DE SOUZA. Filosofias: O prazer do pensar. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

RAMOS, SILVANA DE SOUZA. À Flor da pele. In: Revista Discutindo Filosofia.

SARTRE, J.P. Que é a Literatura? São Paulo: Ed. Ática, 2004.

SARTRE, J.P. O Ser e o Nada. Petrópolis: Ed. Vozes, 2009.

SILVA, FRANKLIN LEOPOLDO. Literatura e experiência histórica em Sartre: o engajamento. Revista Espaço Acadêmico, no. 87, Agosto de 2008. In: www.espaçoacademico.com.br/087/87silva_franklin.htm (acessado em 31/03/2014).



Sites consultados:

http://www.dgz.org.br/abr10/Art_05.htm (texto A Leitura segundo Sartre, de Clarice Fortkamp Caldin).

(acessado em 01.06.14)





segunda-feira, 11 de maio de 2015

Estética Relacional: As relações humanas como o “lugar” das criações artísticas.




Domingos da criação (1971), F. Morais.  (fotógrafo desconhecido) 
A arte contemporânea suscita debates importantes em torno de suas plataformas, seus registros e modos de produção. Questionada sobre a continuidade ou ruptura da modernidade artística, essa arte, que emergiu nos últimos cinquenta anos, apresenta um panorama de diagnósticos diversos e que são provenientes de distintos fundamentos teóricos, entre os quais destaca-se a chamada Estética Relacional, de Nicolas Bourriaud.
Ao constatar a interação e a intersubjetividade como elementos recorrentes nas criações artísticas surgidas em meados dos anos 1960/1970 – as performances, os happenings, os coletivos e outros - Nicolas Bourriaud denomina como Arte Relacional aquela que privilegia a esfera das relações humanas e seu contexto social como o lugar da obra de arte. Tratando-se de um fenômeno que remete à urbanização geral e crescente que se dá a partir da Segunda Guerra Mundial e que impulsionou os intercâmbios sociais, com reflexos para os diversos campos - incluindo-se aí a experiência artística - o autor explica que é a cidade que impõe aos homens um “estado de encontro” (ALTHUSSER Apud BOURRIAUD, 2009: 14) e que possibilita as novas formas estéticas que se testemunhou a partir da metade do século XX[1].
Engendrada neste cenário e promovendo uma alteração significativa dos objetivos estéticos, culturais e políticos, preconizados pela arte moderna, a obra de arte contemporânea já não se mostra sob a forma matéria; nela, o visitante, diz o autor, não é mais um “colecionista”, pois o que essa provê é não um objeto, mas uma “duração a ser experimentada”. A isso está ligada a grande explosão do corpo como o veículo artístico, experimentada nas últimas décadas. Essa prática articula múltiplos discursos, mas significa, sobretudo, contestar o sistema da arte e sua noção mercadológica do objeto artístico; as novas plataformas da arte dita contemporânea tratam de recorrer a um modelo que a este se oponha e que tem o papel de um “interstício” social -  termo que o autor empresta da teoria marxista para designar aquilo que escaparia à lógica mercantilista ou às leis de mercado. Trata-se, assim, de um espaço-tempo diferenciado, distante, e mesmo indiferente ao sistema vigente: um espaço para as relações humanas, que possibilite formas distintas daquelas experimentadas no cotidiano e um tempo em que são suspensas aflições, preconceitos e conflitos de toda ordem.
Eis o caráter fundamental, observa Bourriaud, da exposição de arte contemporânea: ela “cria espaços livres […] e favorece um intercâmbio humano diferente das 'zonas de comunicação' que nos são impostas”[2]; isto é, cria espaços que permitem ao espectador desfrutar de uma relação intersubjetiva e desinteressada, de uma qualidade de tempo-espaço não só diferenciada mas, sobretudo, compartilhada, onde espectador é convertido em “participador” da obra - o que faz dele, cumpre citar, um elemento fundamental para o resultado das obras, uma vez que é a sua interação com elas que define a estrutura do evento. O valor dessa arte está, pois, na tentativa de libertar-se dos esquemas sociais padronizados -  disciplinados pela comunicação de massa -  e produzir modelos alternativos de relações (“constroem modelos do social, aptos a produzir relações humanas”) (BOURRIAUD, 2009).
Em termos práticos, os artistas contemporâneos identificam no cotidiano um solo fértil para suas criações artísticas e dele recolhem o seu “material”, de modo que as obras são o resultado das próprias relações humanas. Elas nos forçam, enquanto espectador-participador, a vivenciar um novo tempo e um novo espaço - “espaço-tempo relacionais” - e a fruirmos necessariamente  daquele momento, uma vez que já não há, salienta o autor, a “coisa” a ser consumida.
Nesse sentido, pode-se pensar, a arte contemporânea ou a estética relacional apresenta um projeto genuinamente político, uma vez que, além de refutar o aspecto lucrativo do sistema da arte, problematiza também a esfera das relações, indicando-a como um espaço em perigo; um espaço ameaçado pelo caráter reificador e mercantilista de um mundo capitalista cada vez mais voraz. Essa arte coloca em questão, ainda, a autoridade do museu e das galerias de arte como o lugar – único e legítimo - das obras de arte. Ao dessacralizá-las, levando-as às ruas ou a espaços os mais diversificados, permitindo sua manipulação ou outras formas de participação interativa, o artista contemporâneo busca, de fato, dar uma resposta às questões do seu tempo e isso caracteriza um engajamento político - mais implícito, embora não menos elaborado.
Bourriaud explica que “as obras já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente (...)” (2009: 18). Se a obra de arte tem como busca a produção do sentido da existência ou da experiência humana, na estética relacional o sentido é produto da própria interação entre o artista e o chamado espectador-participador. Desse modo, o que o artista contemporâneo produz é a relação entre pessoas – delas entre si, mas também delas para com o mundo – formando, assim, uma arte que “cria modelos e não propriamente representações (…) [que] se insere no tecido social sem propriamente se inspirar nele (…) [e ainda assim] remete a valores transferíveis para a sociedade” (BOURRIAUD, 2009: 25).
Em Jacques Ranciére é possível encontrar alguns pontos de convergência com o pensamento de Bourriaud, podendo-se identificar um diálogo interessante entre as duas reflexões.
Contrário à ideia de uma Pós-modernidade em plena ruptura com a Modernidade, o filósofo valoriza a “redisposição” dos objetos ou a criação de “situações dirigidas” – tão característicos da estética contemporânea – por permitirem que nosso olhar e nossas atitudes se modifiquem com relação ao ambiente que nos cerca.
Para o autor, este é o princípio da arte relacional. Definida por ele como a arte que constrói “espaços e relações para reconfigurar material e simbolicamente o território comum”, ela visa um espaço que, isolado e distante do mundo mecantilizado[3], nos permite a “partilha do mundo comum”.

“Estas micro-situações, apenas distinguíveis daquelas da vida ordinária e apresentadas em um modo irônico e lúdico, mais que crítico e denunciador, tendem a criar ou recriar laços entre os indivíduos, a suscitar modos de confrontação e participação novos.” (RANCIÈRE, 2005: p. 15).

Rancière também compreende a estética relacional como uma atividade política, caracterizada assim por subtrair-se às funções ordinárias que se espera de uma atividade de tal natureza (representar “as estruturas da sociedade, os conflitos ou as identidades dos grupos sociais...”); por rejeitar-se a participar dos padrões estabelecidos e por escapar à lógica mercantil, ao forjar um tempo-espaço que se separa de um mundo administrado -  na concepção adorniana; por permitir, ainda, um “deslocamento da percepção”, além de uma “redistribuição dos lugares”. Essa redistribuição dos lugares é tão material quanto simbólica: refere-se à desmaterialização crescente do objeto de arte, na mesma medida em que se dá a promoção da participação do público e importa, sobretudo, por resultar em uma “partilha do sensível”, conceito que cumpre resgatar na íntegra:

A política sobrevém quando aqueles que ‘não têm’ tempo valem-se desse tempo necessário para erigir-se em habitantes de um espaço comum e para demonstrar que sua boca emite uma linguagem que fala de coisas comuns e não somente um grito que denota sofrimento. Esta distribuição e esta redistribuição de lugares e identidades, esta partilha ou repartilha de espaços e de tempos, do visível e do invisível, do ruído e da linguagem, constituem isso que chamo de a partilha do sensível. A política consiste em reconfigurar a divisão do sensível, em introduzir novos sujeitos e objetos, em fazer visível aquilo que não era [...] ” (RANCIÉRE, 2005: 19).

Relacionando dessa forma a estética e a política, e por acreditar em um certo poder da apreensão sensível, Rancière assinala que a função do artista relacional é a de intervir no campo da sensibilidade (“interromper as coordenadas normais da experiência sensorial”) de modo a surpreender o espectador com experiências específicas que possam suspender as “conexões ordinárias” a que estão habituados e, assim, permitir novas reações e apreensões acerca de um mundo já pouco humanizado, mecânico, automatizado e que, não obstante, se lhe apresenta quase naturalizado. Trata-se, em uma palavra, de ressensibilizar (“salvar o sensível heterogêneo que é a alma da autonomia da arte, portanto [a alma] de seu potencial de emancipação”), destacando-se que a autonomia estética refere-se, para além do “fazer” artístico, como quis as vanguardas da modernidade, a uma “forma de experiência sensível” e sua importância reside no fato de ser ela, segundo o autor, o que possibilita “o gérmen de uma nova humanidade” (RANCIÈRE, 2005).
Rancière nos remete, por fim, às reflexões adornianas - em que a função social da arte seria exatamente não ter uma - para lembrar que o valor da “indiferença” da arte em relação aos projetos (explicitamente) políticos está em negar toda “preferência” ou “hierarquia” e por isso denotar “democracia”.
Ressaltando, com isso, que a arte possui um projeto mais amplo e prevê maior alcance, ele conclui

“O potencial político está ligado a sua diferença radical das formas da mercadoria estetizada e do mundo administrado. Porém, este potencial não reside no simples isolamento da obra. A pureza que esse isolamento autoriza é a pureza da contradição interna, da dissonância por meio da qual a obra dá testemunho de um mundo não reconciliado” (RANCIÈRE, 2005).


Parangolé e Domingos da Criação

Expostas, brevemente, as análises e semelhanças de Bourriaud e Rancière, acerca das produções artísticas contemporâneas, destacamos duas obras, de artistas brasileiros, em que se pode identificar essas noções: Parangolé (1965), de Hélio Oiticica e Domingos da criação (1971), de Frederico Morais, cuja estética é voltada, de um modo ou de outro, para a esfera relacional.
Primeiramente, cumpre citar que, embora as obras analisadas situem-se entre as décadas de 1960 e 1970, os arcabouços teóricos de Bourriaud e Ranciére (anos 1990-2000) nos servem de igual modo para esta análise, na medida em que ambos os períodos tiveram que recorrer a uma atuação estético-política, como solução (ou tentativa) para os problemas de seu tempo presente, ainda que no sentido “apoliticamente-político”, destacado pelo próprio Ranciére (2005).
No caso do Brasil, R. Fabbrini[4] explica que, no período do regime militar, “a única saída possível, na perspectiva dos artistas de vanguarda, era a criação de espaços alternativos de produção e circulação de arte como forma de resistência ao endurecimento do regime”, o que corresponde, pode-se notar, à realidade de F. Morais, e não menos a de H. Oiticica. O autor assinala ainda que, enquanto nas décadas de 1960 e 1970 havia um autoritarismo de Estado, os anos 1990 e 2000 foram marcados por um autoritarismo de mercado, destacando, dessa forma, que os dois períodos guardariam semelhanças, no que se refere à demanda por “estratégias”, se assim pudermos chamar, de expressão e comunicação, que pudessem preservar sua autonomia em meio a um ambiente igualmente estandardizado e ideologizado, além de (no primeiro caso) censurado.
Os espaços alternativos para obras de arte compõem essa estratégia na medida em que promovem a interação de indivíduos e nela suscita novas formas de apreensão do mundo.
Parangolé (1965), a obra emblemática, ou a anti-obra, de Hélio Oiticica, nasce, segundo o próprio artista relata, “de uma necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão” (JUSTINO, 1998). Essa ânsia por novas formas de expressão se dá em uma visita, em 1964, ao morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, em que Oiticica entra em contato com o samba e toda sua efervescência, ao lado de uma comunidade que, voltada para o evento do ano – o carnaval - organizava-se, segundo sua interpretação, em torno da criação. É diante de todo o êxtase da música e do movimento, que nasce esta obra composta, a princípio, de simples capas e bandeiras a serem vestidas/carregadas pelos participantes do que seria um legítimo happening. Desse modo, a obra só existia plenamente com a participação do espectador, que tornava-se, por sua vez, a própria obra - ao incorporá-la - embaralhando, com isso, vida e arte.
Oiticica, desse modo, dá início a uma nova noção em que homem e obra de arte podem integrar-se, remetendo-nos ao que seria a passagem de espectador a participador da obra, de que falam os teóricos abordados acima. Em Parangolé, nota-se que o ato de “vestir” contrapõe-se ao simples “assistir”, fundando, assim, uma metáfora perspicaz que se refere à oposição entre ação e passividade: significa que demanda, para além da participação, também a criatividade do espectador.
Além disso, destaca-se o poder da obra em aniquilar – com seu espaço alternativo - o próprio conceito de exposição, tradicionalmente admitido, uma vez que Parangolé não pode ser “exposto”, pois, por si só, ele não se realiza enquanto obra.
Exposto isso, pode-se pensar que Parangolé é mais um “lugar” do que uma obra; um lugar que permite ao indivíduo trocar a percepção artística pela própria criação artística. Mais que isso, pode-se dizer, em conexão com as noções de Bourriaud, que Parangolé faz das relações humanas o “lugar” da obra de arte. Ele trata a arte como objeto de experiência (e não de materialidade), e por isso acabou por questionar, também, a instituição da autoria.
Com a ideia embrionária de que “museu é o mundo”, ele afirma:

“Pretendo estender o princípio de apropriação às coisas do mundo com que me deparo nas ruas, nos terrenos baldios, nos campos, no mundo ambiente, enfim - coisas que não seriam transportáveis, mas para as quais eu chamaria o público à participação - seria isso um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte etc. e ao próprio conceito de 'exposição' - ou nós o modificamos ou continuamos na mesma. Museu é o mundo, é a experiência cotidiana" (OITICICA Apud JUSTINO, 1998).

De forma geral, observa-se que Oiticica propunha uma estética da existência; das formas (possíveis) de vida, onde a obra é o ato de criar a obra. Assim, ao propor a experiência como o núcleo do ato artístico, e ao mobilizar a intersubjetividade, Oiticica opera uma estética essencialmente relacional e esse é o vórtice de seu experimentalismo.
Em um outro momento, destaca-se a obra de Frederico Morais. Crítico ao sistema de arte e adotando uma postura similar à de Oiticica, isto é, de caráter ético-estético, Morais também se interessará em mobilizar a esfera das relações humanas para suas criações.
Em 1971, curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, ele convida um grupo de artistas para criar manifestações livres, no grande vão do MAM-RJ, que deveriam ocorrer nos últimos domingos de cada mês e que, utilizando-se de materiais diversos como: terra, tecido, papel, entre outros, além do próprio corpo, teria como objetivo estimular a interatividade e a livre participação do público. Assim, os domingos temáticos - “Um domingo de papel”; “O tecido do domingo”; “O domingo por um fio” -  compunham o projeto Domingos da Criação que realizava, a um só tempo, uma crítica ao espaço do museu e do seu uso por parte da população.
Para pensar o valor da obra, cumpre lembrar que se tratava de um momento controverso em que precisavam conviver a efervescência intelectual de uma geração e a censura de um governo austero. A reunião das pessoas em torno da arte em espaço público, em plena ditadura militar, era, por si só, um feito marcante. Mas o evento (a obra) destacava-se por questionar não só o uso que se fazia do “tempo livre” aos domingos, pensava-se ainda, nas palavras de Morais, “o próprio significado do domingo (...) as polaridades lazer e trabalho, meio e fim de semana, burocracia e criatividade, arte e sociedade, infância e terceira idade, etc”[5].
Perguntado pelas suas intenções mais profundas na realização da obra, o artista diz pensar que “a arte não pertence aos museus, às galerias de arte, aos colecionadores e, no limite da interpretação, aos artistas”. Afirmando que a arte não pertence a ninguém, porque “pertence a todos” ele explica que a considera “um bem comum do cidadão, da humanidade”, eis o que regia seu projeto no MAM-RJ, naquele ano de 1971. A importância dessa obra, bem como a de Oiticica, para a abertura de caminhos na produção artística

contemporânea no Brasil (e até fora dele, como é comumente reconhecido a H. Oiticia) é incontestável e o próprio artista enfatiza:

 “(...) de forma subjacente, os Domingos da criação reviveram, de forma alegre e descontraída, boa parte da história da arte contemporânea, ou, para ser mais preciso, a passagem do moderno ao pós-moderno. Estava tudo ali: Dada, Fluxus, Pop-art, arte cinética, arte conceitual, body art, performances, happenings, Earth-art, etc”[6].

As produções de H. Oiticica e F. Morais, conclui-se, ilustram em boa medida as descrições que fazem Bourriaud e Rancière acerca da arte contemporânea. Com critérios particulares, elas representaram um momento inaugural para o universo artístico pós-vanguarda, e se provaram fecundas nas gerações posteriores, cujas produções podem ser entendidas como a evolução ou o desenvolvimento de seu modelo; um modelo que ensaiava a “estética relacional” e que já propiciava uma “partilha do sensível”.



BIBLIOGRAFIA
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
FAVARETTO, Celso. A Invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp, 1992.
FREITAS, Artur. Arte de guerrilha. Vanguarda e conceitualismo no Brasil. São Paulo: Edusp, 2013.
JUSTINO, José Maria. Seja Marginal, Seja Herói: modernidade e pós-modernidade em Hélio Oiticia. Curitiba: Ed. da UFPR, 1998.
RANCIÈRE, Jacques. Sobre políticas estéticas. Barcelona: Museu d'art contemporani de Barcelona, 2005.



Notas

[1]   Bourriaud afirma: “Esse regime de encontro casual intensivo, elevado à potência de uma regra absoluta de civilização, acabou criando práticas artísticas correspondentes, isto é, uma forma de arte cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar-juntos, o 'encontro' entre observador e quadro, a elaboração coletiva do sentido”. BOURRIAUD, Nicolas, 2009, p. 14

[2]   O autor refere-se a uma “mecanização geral das funções sociais” como o problema a que o espaço relacional se opõe. Ibid, p. 23.

[3]   Especifica-se aqui “as práticas de arte in situ, o deslocamento do cinema [...]    as formas especializadas da instalação museística, as formas contemporâneas de espacialização da música ou as práticas atuais do teatro e da dança [que] vão na mesma direção: a de uma desespecificação dos instrumentos [...] como forma de ocupar um lugar em que se redistribuem as relações entre os corpos, as imagens, os espaços e os tempos”. RANCIÉRE, Jacques, 2005.

[4]     FABBRINI, R. N. Prefácio. In: FREITAS, Artur. Arte de guerrilha. Vanguarda e   conceitualismo no    Brasil. São Paulo: Edusp, 2013, p. 15

[6]   Ibid.