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segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

“ Que é a Literatura?”, segundo Sartre (Resenha)



 
 
 
 
Nesta resenha trataremos de expor as principais ideias do segundo capítulo da obra “Que é a Literatura”, de Jean-Paul Sartre, intitulado como “Por que escrever?”.

Sartre inicia o texto convidando-nos a refletir as razões múltiplas por que um artista se decide a empenhar-se em uma obra. Para alguns a arte é um modo de “fuga”, para outras uma “conquista” (2004: 33), mas por que um escritor escolhe como forma de fuga ou conquista o exercício da escrita? Para o autor, há por trás disso uma escolha “mais profunda e mais imediata” comum a todos eles e essa é a questão central deste segundo capítulo de sua obra, a qual nos dedicaremos a compreender.

Para acompanharmos as ideias do autor é mister compreender um conceito que as rege, o de que a realidade humana é “desvendante” (2004: 33), isto é, o homem apresenta-se como condição para que as coisas recebam existência; é ele “o meio pelo qual as coisas se manifestam” (idem). Nós é que articulamos as relações entre as coisas, atribuindo-lhes assim significados, como exemplifica Sartre (2004:34): “graças a nós essa estrela [...] essa lua nova e esse rio escuro se desvendam na unidade de uma paisagem”. Com isso quer dizer o autor que é segundo nossos atos e em cada um deles que o mundo se nos revela sob novas perspectivas. Contudo, ao mesmo tempo que nos sabemos como condição na percepção do mundo, reconhecemos também nossa “inessencialidade” para a existência dele, significa que, se por um lado somos os “detectores do ser”, por outro, sabemos que, ao nos distanciarmos de determinada paisagem, nós é que desaparecemos dela, mas ela “permanecerá em sua letargia até que uma outra consciência venha despertá-la”. Daí, conclui o autor, a nossa certeza de sermos tão “desvendantes” quanto “inessenciais em relação à coisa desvendada” (idem).

Contornar esse sentimento de inessencialidade é um dos “principais motivos”, crê o autor (idem), da criação artística: tendo a consciência de criar o objeto, como ocorre na pintura de um rosto ou de uma montanha, introduz-se “ordem” e impõe-se “unidade de espírito” onde antes não havia, deste modo, adquire-se o sentimento de ser essencial, para aquela criação. Todavia, há agora um elemento que me escapa: ao criar um objeto, não posso, ao mesmo tempo, desvendá-lo. Ocorre que não se pode, diz Sartre (idem), “considerar a própria obra com os olhos de outrem e desvendar aquilo que se criou”. Uma vez que o próprio artista estabelece suas regras e métodos, sua intenção, seus sentimentos, não será possível encontrar outra coisa, na obra criada, que não ele mesmo, a sua própria subjetividade. Os resultados nunca poderão ser lidos de forma objetiva, por já termos grande intimidade com as razões, as motivações e os “processos” daquela obra que produzimos; esses processos, afirma Sartre, “são nós mesmos”, de modo que, na percepção, o objeto revela-se essencial enquanto o sujeito mostra-se inessencial, pois, ao conquistar a sua própria essencialidade (pelo ato da criação), acaba por privar dela o objeto, tornando-o, assim, inessencial. Para Sartre, a arte de escrever é a atividade mais exposta à dialética descrita acima.

Acerca disso, o autor nos explica que o “objeto literário” tem uma peculiaridade que o deixa passível de não se completar, por maior que seja o empenho de seu criador - o escritor, o poeta, o filósofo. Trata-se da condição que lhe é intrínseca: para realizar-se precisa de um trabalho conjunto entre autor e leitor. Se ler implica imaginar, formular hipóteses, “prever” e “esperar”, entre outras atitudes, então o escritor não pode ser o leitor de sua própria obra. “Sem espera, sem futuro, sem ignorância, não há objetividade” (2004: 36). Assim, acrescenta o autor, “para onde quer que se volte, o escritor só encontra o seu saber, a sua vontade, os seus projetos, em suma, a si mesmo [...] o objeto por ele criado está fora do seu alcance, ele não o cria para si”, tratando-se, portanto, do efeito que causa nos outros, ele mesmo nunca poderá sentir, de fato, os efeitos de sua obra. É por essa razão que Sartre caracteriza, no caso da escrita, o ato criador como “apenas um momento incompleto”, isto é, a produção da escrita requer, incontornavelmente, o ato da leitura (seu “correlativo dialético”). “É o esforço conjugado do autor com o leitor que fará surgir esse objeto concreto e imaginário que é a obra do espírito”. Trata-se de uma síntese de percepção (leitor) e criação (autor), é isso que ocorre no ato da leitura, momento em que, de fato, a obra se completa e se concretiza.

O leitor, por sua vez, ao desvendar o objeto de leitura, também está realizando uma criação, no entanto, esse desvendamento não ocorre de maneira automática, mais do que ler as palavras como signos, é preciso mergulhar-se na obra, lançar-se para além da escrita, entregar-se. O sentido do objeto literário, adverte Sartre, se dá ”através da linguagem”, mas nunca é dado “na linguagem”, dá-se antes por meio do “silêncio” (ou “o inexprimível”) e “contestação da fala” (“O sentido não é a soma das palavras, mas sua totalidade orgânica”) (2004: 37). Para isso, enfatiza Sartre, o que se espera do leitor é uma completa dedicação ao texto.

O processo da leitura consiste em uma “criação dirigida”, o que significa que cabe ao leitor conectar os dados fornecidos pelo autor e construir, à partir de sua própria subjetividade, o sentido que permeia a obra. O filósofo chega a afirmar que: “o objeto literário não tem outra substância a não ser a subjetividade do leitor” (2004: 38) e ilustra a questão ao indicar a espera de Raskolnikoff (personagem de Dostoiévski em Crime e Castigo) como a minha própria esperaque eu “empresto” a ele (idem). É esse o motivo pelo qual a criação literária, segundo Sartre, só se concretiza no ato da leitura, por haver uma intenção em todo ato de escrever; por haver uma espécie de convite por trás de toda escrita, que só é aceito, por parte do leitor, mediante a leitura; é por meio dessa característica, vale lembrar, que o filósofo diferencia a prosa da poesia: caracterizando-se mais pela utilidade do que pela beleza, isto é, o texto literário é especial no sentido de valer-se da linguagem sempre com uma intenção: a de comunicar algo que incite à ação, não à mera contemplação.

Sartre afirma que “o artista deve confiar a outrem a tarefa de completar aquilo que iniciou” (2004: 39) e isso implica em dizer que toda obra literária é um “apelo” (idem). O que vem a ser este apelo? Precisamente que o leitor aceite vivenciar a experiência de Raskolnikoff, por exemplo. Para Sartre, o apelo que o escritor faz refere-se, sobretudo, à liberdade do leitor – é ela (ou seu uso) que, espera o escritor, contribuirá na produção de uma obra literária; é respondendo à obra que o leitor faz uso de sua liberdade. “A leitura é um sonho livre”, afirma o autor, sendo assim, podemos entender que a proposta fundamental do escritor para o leitor é justamente que este faça uso de sua liberdade, pois, o livro “não é um meio que vise a algum fim: ele se propõe como fim para a liberdade do leitor”, com isso Sartre quer dizer que não é o caso de a liberdade do leitor colocar-se a serviço do livro ou da obra literária, antes a obra é que se coloca, para o leitor, como possibilidade de exercitar a sua liberdade. Ele acrescenta: “A liberdade não se prova na fruição do livre funcionamento subjetivo, mas sim num ato criador solicitado por um imperativo” (2004: 41).

Estamos diante de um ato de confiança e de responsabilidade, demonstrados por Sartre, como ele bem esclarece: “Se recorro a meu leitor para que ele leve a bom termo a tarefa que iniciei, é evidente que o considero como liberdade pura, puro poder criador [...] em caso algum poderia dirigir-me à sua passividade” (idem). Ao valorizar o papel do leitor como fundamental na obra literária, o filósofo trata a obra de arte como valor e aqui estamos diante de um conceito caro para a filosofia de Sartre: o engajamento. Analisemos de que modo ele se insere na dimensão literária.

Para Sartre, já sabemos, a leitura é “um exercício de generosidade”, um momento em que o leitor concede doar “toda a sua pessoa”, com todas as suas qualidades, paixões, “escala de valores” (2004: 42), etc. Entregando-se com generosidade, crê o autor, a liberdade atravessa essa pessoa, transformando sua sensibilidade (idem), que poderá resultar em ação. É com vistas a essa transformação, dotado de certa habilidade e compromisso, que o escritor engajado direciona suas ideias na construção da obra literária - não como imposição, mas como sugestão, ficando ao poder do leitor interpretar esses dados e agir. É responsabilidade do autor, como bem avalia a professora Clarice Fortkamp Caldin em seu texto A Leitura segundo Sartre, “apontar os acontecimentos históricos sem se esconder sob o manto da neutralidade”, embora fique inteiramente a critério do leitor o plano da ação.

Importa saber que, para Sartre, todo ato criador visa o que ele chama de “uma retomada total do mundo”. Esse conceito ficará mais claro se observarmos a seguinte passagem:


Cada quadro, cada livro é uma recuperação da totalidade do ser; cada um deles apresenta essa totalidade à liberdade do espectador. Pois é bem essa a finalidade última da arte: recuperar este mundo, mostrando-o tal como ele é, mas como se tivesse origem na liberdade humana” (2004: 47).



E acrescenta:

é pela cerimônia do espetáculo – e particularmente da leitura – que essa recuperação é consagrada” (idem).


Com efeito, o engajamento está no ato de compreender que a liberdade é atividade criadora e, partindo desta premissa, orientar a experiência estética, que o leitor extrairá da leitura para uma possível vontade de agir, é não só o que constitui o ato engajador de uma obra, como também o mínimo que se deve esperar de seu criador. Esse é o sentido, para Sartre, do fenômeno estético (2004: 48). Sendo mais assertivo, Sartre afirma: “[...] o mundo é minha tarefa [...] a função essencial e consentida da minha liberdade consiste precisamente em fazer vir ao ser, num movimento incondicionado, o objeto único e absoluto que é o universo” (2004: 49). É essa a mensagem essencial que deve chegar ao leitor, dado que, para Sartre, “a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele” (2004: 21).
Sartre encerra o capítulo em questão refletindo o alcance e a extensão do ato de escrever. Ao mencionar que “não se escreve para escravos” (2004: 53), o filósofo considera que a prosa e o regime democrático (“o único regime onde a prosa conserva um sentido”) mantém entre si uma relação importante, sendo que a ameaça de um deve representar a ameaça do outro. Nesta situação Sartre se permite avançar para uma radicalização maior, se assim pudermos chamar: o autor admite que pode haver momentos em que a pena não basta e então será “preciso que o escritor pegue em armas” (2004: 53). Com isso o autor parece querer ressaltar não só que considera uma forma (de combate) tão importante quanto a outra, mas também que ambas podem ser “violentas”, e, para além disso, que ambas representam formas legítimas de engajamento - quer pela escrita, quer pela batalha, dado que ambas significam lutar pela liberdade, sobretudo, defendendo os “valores ideais”, e finaliza:
 
Qualquer que seja o caminho que você tenha seguido para chegar a ela [liberdade], quaisquer que sejam as opiniões que tenha professado, a literatura o lança na batalha; escrever é uma certa maneira de desejar a liberdade; tendo começado, de bom grado ou à força, você estará engajado” (2004: 53).

 



Bibliografia



Sartre J.P. Que é a Literatura?. São Paulo: Ed. Ática, 2004.









segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

A Dimensão Estética, de H. Marcuse.








A arte protesta contra as relações sociais vigentes na medida em que as transcende. Nesta transcendência, rompe com a consciência dominante e revoluciona a experiência”. É desta forma que Herbert Marcuse (1898-1979) nos introduz ao tema desenvolvido em sua obra "A Dimensão Estética". Publicado em 1977, este ensaio afirma, em uma perspectiva pouco otimista da sociedade industrial – que é tão orientada para fins econômicos - o potencial da arte como resistência ao processo reificador e, portanto, como instrumento de libertação da ordem vigente. Por evocar uma realidade à parte (que é objeto de nosso estudo), a dimensão da arte subtrai-se ao chamado mundo administrado (1) - conceito caro aos frankfurtianos - onde se opera a manipulação de consciências, orientadas para a lógica mercantil, predominante na realidade contemporânea. Nela encontra-se a possibilidade de abrir uma nova dimensão da experiência, de forma a criar uma outra realidade, que possa comunicar verdades de outro modo incomunicáveis. O propósito deste trabalho será analisar de que maneira, na leitura de Marcuse, esse processo se realiza.

Para a compreensão da estética marcuseana, cumpre lembrar que o programa estético da escola de Frankfurt, a qual Marcuse integra, está orientado sobretudo para a libertação e emancipação, isto é, opõe-se radicalmente à ortodoxia do realismo socialista - proposta estética marxista -segundo a qual, apenas as obras que manifestem partidarismo político têm seu valor reconhecido.

Numa primeira aproximação, pode-se pensar a teoria estética de Marcuse como uma espécie de impugnação à ortodoxia da estética marxista; ainda que sem romper com o materialismo histórico (2). Analisando em detalhe, nota-se que a ortodoxia marxista considera que as obras de arte devem relacionar-se sempre com as relações de produção existentes, sendo sua qualidade e sua verdade condicionadas por esse critério: significa que a obra de arte deve representar, fundamentalmente, o mundo e os interesses de determinadas classes sociais, mais especificamente, a classe proletária. Marcuse, por sua vez, analisa a arte no contexto das relações sociais predominantes e também lhe reconhece função e potencial políticos, no entanto, ao contrário da visão marxista, que, a seu ver, reduz a arte a uma manifestação mecanicista, considera que o potencial político da arte reside “na própria arte”, isto é, “na forma estética em si” (Marcuse, 1981, p. 11), pois, assinala o filósofo, “em virtude de sua forma estética” a arte é “absolutamente autónoma perante as relações sociais existentes” (idem, p. 11), isso quer dizer que seu conteúdo possui força legítima, independendo, assim, dos critérios impostos pela estética marxista para assegurar seu valor e sua verdade. Em sua autonomia, a arte (já) contesta as relações sociais existentes, bem como as transcende; ela “subverte”, por si só, “a consciência dominante e a experiência ordinária” (idem, pp. 11-12), não sendo necessário, pois, assumir uma posição de classe, em detrimento do elemento subjetivo de sua construção. Desse modo, a teoria estética de Marcuse se afigura como uma proposta alternativa à estética marxista. Esta última é resumida pelo filósofo em seis pontos fundamentais em sua obra, o que nos convém citar na íntegra. Ele diz:

1. Existe uma relação definida entre a arte e a base material, entre a arte e a totalidade das relações de produção. Com a modificação das relações de produção, a própria arte transforma-se como parte da superestrutura, embora, tal como outras ideologias, possa ficar para trás ou antecipar a mudança social; 2. Há uma conexão definida entre arte e classe social. A única arte autêntica, verdadeira e progressista, é a arte de uma classe em ascensão, que exprime a tomada de consciência desta classe; 3. Consequentemente, o político e o estético, o conteúdo revolucionário e a qualidade artística tendem a coincidir; 4. O escritor tem a obrigação de articular e exprimir os interesses e as necessidades da classe em ascensão. (No capitalismo, esta seria o proletariado); 5. A classe declinante ou os seus representantes só podem produzir uma arte "decadente"; 6. O realismo (em vários sentidos) é considerado a forma de arte que corresponde mais convenientemente às relações sociais, constituindo assim a forma de arte "correta” (idem, p.14).

Marcuse problematiza a questão ao constatar que a interpretação economicista e mecanicista que faz a teoria estética marxista implica necessariamente em “uma noção normativa da base material como a verdadeira realidade e uma desvalorização política de forças não materiais, particularmente da consciência individual, do subconsciente e da sua função política” (idem, p.15). A questão central é: anular essa potência, de manifestação interior e subjetiva, implica em negligenciar, precisamente, o caráter subversivo da arte, sendo esta a razão pela qual Marcuse se propõe, na obra que ora se analisa, a realizar o “reexame crítico” (idem, p. 13) da estética marxista ortodoxa.

Na interpretação economicista do materialismo histórico, Marcuse observa consequências danosas para o mundo da subjetividade, das emoções e da imaginação. Constata que, ao ignorar a subjetividade dos indivíduos, a estética marxista incorre no mesmo erro que é objeto fundamental de sua crítica: a reificação do sujeito, isto é, acaba por endossar o sacrifício da subjetividade à serviço da objetividade:



A teoria marxista sucumbiu à própria reificação que expôs e combateu na sociedade como um todo. A subjetividade tornou-se um átomo da objetividade; mesmo na sua forma rebelde rendeu-se e tornou-se um órgão executivo. (idem, p.15).


Para o autor, ao impor uma consciência de classe como qualidade prevalecente na produção das obras de arte, a estética marxista acabou por realizar a privação da consciência de si, do reconhecimento e da livre manifestação da interioridade, minimizando, assim, “um importante pré-requisito da revolução, nomeadamente o fato de que a necessidade de mudança radical se deve basear na subjetividade dos próprios indivíduos, na sua inteligência e nas suas paixões, nos seus impulsos e nos seus objetivos” (idem, p. 15).

Chegado esse ponto, começamos a avistar de que forma Marcuse pretende embasar seu argumento de que a arte logra abrir uma “nova dimensão da experiência”, criando uma “outra realidade”, de modo que se possa ao menos vislumbrar seu potencial emancipatório.


Com a afirmação da interioridade da subjetividade, o indivíduo emerge do emaranhado das relações de troca e dos valores de troca (os verdadeiros valores da sociedade burguesa!), retira-se da realidade desta sociedade e entra numa outra dimensão, essencialmente diferente. (idem, p.16).


Marcuse articula duas realidades distintas, se assim pudermos chamar, que permanecem em tensão: a realidade existente (estabelecida) e a realidade protegida na interioridade do sujeito (subjetiva). Debruçar-se sobre uma realidade subjetiva, como é o caso da arte, significa evadir-se da realidade objetiva, provocando a invalidação dos principais valores burgueses e, deste modo, o foco da realização individual é desviado do domínio do chamado “princípio de realidade” (a realidade estabelecida). Isso significa que a separação entre arte e subjetividade, como requer a estética marxista, só pode resultar na perda do potencial revolucionário da primeira. É precisamente a este ponto da estética marxista que Marcuse dirige sua crítica: ao desejo de converter a consciência individual e toda sua representatividade em mera coletividade:


A subjetividade lutou por sair da sua interioridade para a cultura material e intelectual. E hoje, no período totalitarista, tornou-se mero valor político, tentando contrabalançar a socialização agressiva e exploradora. Esta subjetividade libertadora constitui-se na história íntima que é adequada ao indivíduo – da sua própria história, que não é idêntica à sua existência social. É a história particular dos seus encontros, paixões, alegrias e tristezas – experiências que não se baseiam necessariamente na sua situação de classe e nem sequer são compreensíveis a partir dessa perspectiva” (idem, p.16).

 

Vislumbrando a importância de se preservar a dimensão interior e individual, compreende-se de que forma, ao transcender a realidade estabelecida, a arte cria um mundo próprio que se opõe à realidade existente, para abrir uma nova racionalidade e sensibilidade, as quais se realizam apenas na sua forma.



A arte cria o mundo em que a subversão da experiência própria da arte se torna possível: o mundo formado pela arte é reconhecido como uma realidade reprimida e distorcida na realidade existente...a lógica interna da obra de arte termina na emergência de outra razão, outra sensibilidade, que desafiam a racionalidade e a sensibilidade incorporadas nas instituições dominantes (idem, p.17).



Revela-se então a transcendência para uma dimensão outra, que não a realidade imediata; que “destrói a objetividade das relações sociais” e abre “uma nova dimensão da experiência” – que se reserva o direito de não se comprometer com as normas e os valores dominantes. Ocorre, então, o que o autor denomina por “renascimento da subjetividade rebelde” ou a “contra-consciência”, que vem a ser a negação de um pensamento “realístico-conformista”, isto é, a negação de um modelo dado, e assim, extraída do processo corrente da realidade, a arte termina por assumir “um significado e uma verdade autônomos” representando a realidade, “ao mesmo tempo que a denuncia” (idem, pp. 18-19).

É já ao início da obra que Marcuse nos chama a atenção para o fato de que é na sublimação, proporcionada pela obra de arte, que se torna evidente para o espectador aquilo que realmente lhe importa, o que lhe é real, o que lhe apraz e o que lhe diz respeito, desconectando-o, ainda que brevemente, de tudo aquilo que lhe causa o sentimento oposto. Num processo em que lhe é revelado o conteúdo de sua própria essência, se assim pudermos chamar, mostrando-a como algo distinto e independente da realidade dada, o sentimento sublime, produzido essencialmente pela obra de arte, executa uma espécie de atualização e afirmação de seus projetos particulares: seus sonhos e seus anseios mais profundos emergem na superfície; apresentam-se com toda a força, e faz romper, em seu íntimo, com projetos que só então são reconhecidos como alheios. Tal é o poder da dimensão estética.

 

A verdade da arte reside no seu poder de cindir o monopólio da realidade estabelecida para definir o que é real. Nesta ruptura, que é a realização da forma estética, o mundo fictício da arte aparece como a verdadeira realidade (idem, p.19).

 

A experiência estética torna-se, pois, “um veículo de reconhecimento e acusação” (idem, p.19) e ao observar que “a arte submete-se à lei do dado concreto, ao mesmo tempo que o transgride” (idem, p.20), Marcuse nos indica que a autonomia da arte se apresenta em uma forma dialética: uma dialética entre a afirmação (ideologia) e, por outro lado, a denúncia do que existe (verdade) faz parte integrante da estrutura interna da obra de arte.

Cumpre observar que a arte a que Marcuse se refere é manifestamente a literatura. Para exemplificar essa estética que revela “dimensões da realidade interditas e reprimidas (arte pela arte)” (Marcuse, 1981: 26), o autor menciona a poesia de Mallarmé, que, para ele, evoca uma “festa de sensualidade que destrói a experiência de todos os dias e antecipa um princípio de realidade diferente” (idem). Ao designar que uma tal obra destrói a experiência de todos os dias, o autor nos confirma que é precisamente essa distância e afastamento da práxis o que constitui o valor emancipatório da arte, indicando, assim, exatamente o contrário do que postula a estética marxista. Ao desprezar a interioridade e o individualismo da literatura burguesa, exemplifica o filósofo, a crítica literária marxista descartou, inadvertidamente, o potencial contestatório da arte.

A tensão entre arte e práxis é fundamental para a dimensão estética: nisso reside seu potencial político e, uma vez que a arte possui a sua própria dimensão de transformação, uma harmonização com a práxis radical não só anularia esta dimensão, como também a converteria em seu contrário: na dominação do mundo. No caso da literatura, insiste Marcuse, o que conta é o destino pessoal dos protagonistas, “não como participantes na luta de classes, mas como amantes, vilões, tolos, e assim por diante”, isso quer dizer que o universal que aparece em suas histórias está para além da sociedade de classes.

Ocorre que a natureza associal (ou não-conformada) destes personagens é o que constitui, efetivamente, uma rebelião contra a ordem estabelecida. Essa é a razão, inclusive, pela qual o autor suspeita da cultura popular: porque essa, diferentemente dos exemplos citados, evoca processos de ajustamento e não de questionamento, com relação à ordem das coisas ou o chamado princípio de realidade. Se a arte deve criar o seu próprio mundo, o qual nada tem a ver com a realidade estabelecida; se ela desafia, como se disse, o monopólio de uma única realidade existente, sua verdade só pode ser negação, jamais adequação.

Também são citadas obras de E. Allan Poe, C. Baudelaire, M. Proust e P. Valéry, Victor Hugo, H. Balzac e F. Dostoievsky, como obras que desvendam as já citadas “zonas interditas da natureza e da sociedade”. Com esses e outros exemplos da literatura, o filósofo assevera que a libertação é uma tarefa humana, que diz respeito a todos os indivíduos, não apenas aos indivíduos proletários enquanto membros de uma classe social, trata-se, antes, da emancipação social dos próprios instintos da vida.

O que o autor nos propõe, pode-se concluir, é uma possibilidade de se proteger da reificação, agressiva e sistematicamente exercida pelo chamado mundo administrado. Trata-se de perceber a dimensão estética como uma derradeira esperança de se escapar à lógica predominante na sociedade capitalista: uma lógica que cerceia os instintos da vida e distancia os indivíduos de si mesmos. “A fuga para a interioridade e a insistência numa esfera privada”, diz o autor, “podem bem servir como baluarte contra uma sociedade que administra todas as dimensões da existência humana” (idem, p.40). Nota-se que a noção de subjetividade é destacada pelo autor como uma noção subversiva, sobretudo, pelo fato de visar “uma dimensão de vida não lucrativa” (idem, p.49), o que vem a representar a negação do espírito capitalista, devolvendo ao indivíduo o contato com sua própria humanidade.

A esperança de Marcuse, observa-se, orienta-se por uma espécie de mundo invertido, isto é, o mundo de uma obra de arte é, para o autor, “irreal” (idem, p.53) no sentido de ser “uma realidade fictícia” (idem), contudo, este mundo não é “inferior”, diz o autor, à realidade existente, ao contrário, “lhe é superior e qualitativamente diferente” (idem, p. 53):
 

Como mundo fictício, como ilusão (Schein), contém mais verdade que a realidade de todos os dias, pois esta última é mistificada nas suas instituições e relações, que fazem da necessidade uma escolha e da alienação uma auto-realização (idem, p. 53).



De forma geral, podemos assumir que a teoria estética de Marcuse procura mostrar que a arte pode atuar, como ideia reguladora, na luta pela transformação do mundo, uma vez que representa o objetivo derradeiro de todas as revoluções: a liberdade e a felicidade do indivíduo; pode atuar na transformação do mundo tanto por abrir uma dimensão inacessível a outra experiência, em que os seres humanos, a natureza e as coisas deixam de se submeter à lei do princípio da realidade estabelecida, como por mostrar a liberdade negada aos indivíduos pela sociedade repressiva. “O encontro com a verdade da arte acontece na linguagem e imagens distanciadoras, que tornam perceptível, visível e audível o que já não é ou ainda não é percebido, dito e ouvido na vida diária” (idem, p.79).

Por fim, podemos pensar que, se “toda a reificação”, como assinalam Adorno e Horkheimer, “é um esquecimento” (1985: 215), a arte é justamente o seu contrário: a arte é memória – memória do sofrimento, memória da injustiça, memória do terror. É a arte o que não deixa esquecer, o que não deixa escapar, o que resgata de águas profundas e faz emergir na superfície, sentimentos, desejos, valores e utopias; é álibi do espírito e inimiga da censura; é o que combate a reificação por fazer “falar, cantar e talvez dançar a palavra petrificada” (MARCUSE, 1981: 81).




NOTAS

  1. T. Adorno utiliza essa expressão para referir-se ao mundo burocrático, mercantilizado e competitivo da economia capitalista.
  2. O autor sublinha, em A Dimensão Estética, que sua teoria estética, bem como sua crítica à estética marxista estão construídos no interior mesmo da teoria marxista.




Bibliografia




MARCUSE, Hebert. A Dimensão Estética. Lisboa: Edições 70, 1981.

ADORNO, Theodor. W.; HORKHEIMER, Max. – Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

As emoções da Tragédia, segundo D. Hume


 





Em seu ensaio Da tragédia, publicado originalmente em 1757, D. Hume pontua o curioso entrelaçamento entre a tristeza, o terror e o prazer. Às paixões “incômodas e desagradáveis”, diz, seguem-se as mais “deliciosas” comoções e quanto mais afetado se sentir o espectador, maior será o seu deleite. As cenas de “completa alegria” são admitidas, ou ao final, ou para exercerem o papel de contraste e, por consequência, decepção (“para mergulhar os atores em uma aflição mais profunda”). Para o filósofo, provocar a compaixão e a indignação, a ansiedade e o ressentimento do público constitui o alvo do “grande poeta” (p. 199) e é grande prazer para o homem, nota ainda aliviar seus temores e aflições com lágrimas e soluços. E o que estaria por trás desse fenômeno?, pergunta-se Hume.
 

O filósofo comenta que alguns críticos teriam notado tal fenômeno, mas põe em destaque a solução elaborada pelo Abade Dubos, em suas reflexões sobre a pintura e a poética. Ele afirma que, para o espírito, qualquer paixão é mais desejável que a ausência dela; que para fugir desta ausência ou “estado de indolência” (p. 200), o espírito humano é capaz de recorrer às mais distintas atividades, das mais prazerosas às mais desagradáveis, do jogo ao trabalho, e o objeto perseguido é sempre “despertar as paixões”, com o intuito determinado de “afastar de si mesmo a atenção do espírito humano” (idem). A paixão mais incômoda seria, portanto, mais suportável do que seu oposto: a serenidade. Busca-se, na experiência humana, a intensidade.
 

Hume declara considerar esta reflexão “parcialmente” aceitável. Ele a endossa quando observa que o espetáculo do jogo e as emoções que ele propicia, atraem o indivíduo, seja para perdas, seja para ganhos, pela simples capacidade de oferecer alguma distração. O que o homem não quer, conclui o autor, é abandonar-se aos seus pensamentos.


Há, entretanto, uma diferença entre a aflição e o terror que se sente na tragédia e aqueles da vida real, isto é, a aplicabilidade da primeira situação não se confirma na segunda, onde, em vez de prazer, o indivíduo seria invadido por um extremo desagrado. É nesse sentido que, segundo Hume, M. Fontenelle teria dado uma outra resposta, notável, para o mesmo fenômeno ou, ao menos, uma “contribuição” à teoria supremencionada. Ele diz: “o prazer e a dor […] que são dois sentimentos em si mesmos tão diferentes, não diferem tanto quanto às suas causas” (idem). O que quer dizer isso? Para ilustrar, ele utiliza como exemplo o prazer de se receber cócegas que, levado a um certo ponto, converte-se em dor; o movimento contrário também é possível, isto é, a dor amenizada pode ter ares de prazer. Com isso desvela um mecanismo que parece se aproximar da Tragédia: “uma tristeza suave e agradável” que seria “uma dor enfraquecida e diminuída”. Acrescenta ainda que “o coração gosta” desses movimentos, desses trajetos, onde o que é desastroso é “suavizado” e explica que é esse misto, de terror e suavidade, que vivenciamos no teatro, diante da tragédia, o que nos faz transformar a dor em prazer. À compaixão e sofrimento que sentimos pelo herói com o qual nos identificamos mistura-se a consciência da falsidade da representação, que nos acalma, como que lembrando-nos não se tratar de realidade.


Choramos pelas desgraças de um herói a que nos afeiçoamos. No mesmo instante consolamo-nos, refletindo que se trata apenas de uma ficção. E é precisamente essa mistura de sentimentos que constitui uma tristeza agradável, e provoca lágrimas que nos deliciam” (p. 201).



Para Hume, essa reflexão mostra-se convincente, mas ainda carece de uma outra contribuição. Ele pondera, nesta análise, que os epílogos de Cícero, por exemplo, a despeito de seu mérito como orador, contemplavam “o prazer mais delicioso” sem que se configurassem como ficção. A resposta estaria, então, em que esse efeito (“extraordinário”) seria consequência da “mesma eloquência com que a cena melancólica é representada” (p. 202). Trata-se, para o filósofo, de gênio, da “arte de [saber] reunir todas as circunstâncias patéticas”, e dispô-las de modo consciente. Ele diz:


o exercício desses nobres talentos, juntamente com a força da expressão e a beleza das peças de oratória, difundem no auditório a mais alta satisfação e excitam os mais deliciosos movimentos (idem).


Com isso, Hume mostra-se convencido de que aquilo que transforma o “impulso das paixões” em prazer é, mais que o contraste das emoções ou a consciência da natureza fictícia como elemento que “suaviza” as paixões, o deleite a que somos conduzidos pela eloquência do orador. Mas esta deve estar acompanhada, atenta o filósofo, de “força de expressão” e “sentimentos de beleza”. Estes últimos é o que direciona os impulsos derivados da tristeza ou da indignação; eles constituem o que Hume chamou de “emoção predominante” e, por isso, alteram completamente a natureza das outras paixões. “E a alma”, conclui Hume, “ao mesmo tempo despertada pela paixão e fascinada pela eloquência, sente no conjunto um forte movimento que é plenamente delicioso” (idem). O que Hume ressalta nessa passagem é que há uma tensão entre forças (paixões) subordinadas e forças predominantes, onde as primeiras convertem-se nas segundas, reforçando a presença destas.


Hume destaca ainda um outro elemento que despertaria “naturalmente” o espírito: a novidade.  Ele diz:


quer um acontecimento provoque alegria ou tristeza, orgulho ou vergonha, raiva ou boa vontade, é inevitável que produza uma afeição intensa, sempre que é novo e inabitual (…) [ele] intensifica tanto as paixões dolorosas como as agradáveis” (p. 203)



Ele explica que se desejamos prender a atenção de uma pessoa narrando um acontecimento, o “melhor método” para potencializar a comoção será demorar-se “habilmente” na revelação dos fatos. Antes de conhecê-los, diz Hume, a curiosidade e impaciência devem ser excitados. Eis o artifício, afirma o filósofo, usado por Shakespeare em Otelo. “As dificuldades intensificam paixões de toda a espécie (…) produzem uma emoção que vai alimentar a afeição dominante”. Há ainda outros exemplos, bastante simples e interessantes, sobre a intensificação que as “dificuldades” exerceriam nas paixões. Hume diz que “nada torna um amigo mais querido para nós do que o desgosto pela sua morte. O prazer de sua companhia não possui influência tão poderosa”, ou, ainda, que para o amor, nada é tão favorável como o ciúme e a ausência (idem).


Com essas passagens, a dificuldade revela-se, na reflexão de Hume, sobretudo no primeiro exemplo (o de narrar um acontecimento, cultivando no espectador curiosidade e impaciência), uma ferramenta ou, ainda, um instrumento de eloquência. Nesse sentido, Hume salienta a simplicidade (e mesmo a necessidade) que está por trás dessas emoções que se apresentam, inicialmente, como desgosto, tristeza e indignação, para converterem-se, mais tarde, em prazer. Ele esclarece, sobre estes prazeres, que “não é tão extraordinário e paradoxal como à primeira vista pode parecer” e conclui que é a junção das coisas mais distintas (“a imaginação, o poder da expressão […] o encanto da imitação”) e a articulação delas – pelo princípio das paixões predominantes e as subordinadas – o que constitui “as delícias do espírito” (idem). Há alguns casos que demandam maior habilidade. No caso de Cícero, diz Hume, o terror de Verres “aumentara proporcionalmente à nobre eloquência e veemência” do orador, pois “as primeiras paixões eram demasiado fortes […] e agiram, embora segundo o mesmo princípio, de maneira contrária”. Alguns movimentos de dor ficariam, pois, impossíveis de “suavizar” e de transformar-se em prazer (p. 205).


De todo modo, no teatro, para agradar o público (para sua “satisfação completa”), os sentimentos de compaixão devem ser sempre suavizados por alguma passagem agradável. O triunfo da dor e ou da tirania constituiria um espetáculo desagradável e por isso é evitado “por todos os mestres do palco”, explica Hume. (“Para que o público vá embora inteiramente contente e satisfeito, é preciso que a virtude se transforme num nobre e corajoso desespero, ou que o vício receba o devido castigo”) (p. 206).


É justamente por essa razão, contudo, que os pintores teriam sido, segundo Hume, “muito infelizes” em seus temas: trabalhando para igrejas só poderiam representar cenas terríveis, de extremo desgosto para o olhar (como o fazem os martírios e torturas), sem nenhuma paixão agradável que pudesse, ao final, direcionar a experiência para um viés mais prazeroso. Um desequilíbrio dessa natureza, observa Hume, destrói a “saúde” das emoções e do prazer, inclusive na vida quotidiana. “Se a paixão subordinada”, diz o autor, “for intensificada a ponto de tornar dominante, ela absorve aquela afeição que, anteriormente, alimentava e incrementava”. Ele exemplifica tal pensamento com o excesso de ciúme, que pode levar à extinção do amor, ou, ainda, a narração de uma história desastrosa que só contemple momentos melancólicos, sendo despertada somente a paixão desagradável, sem que a ela se dê aquela guinada para as paixões agradáveis, que suavize a primeira tornando-a, finalmente, em satisfação (“alguma espécie de vivacidade, de gênio ou de eloquência”) - esta não poderia comunicar outra coisa que não o mero desagrado.
Hume encerra o ensaio alertando que há uma medida certa para a inserção das dificuldades (seja na vida quotidiana, na poesia ou na oratória), pois, ele finaliza, “o excesso de dificuldades nos torna indiferentes” (p. 206). O gênio dos grandes mestres, podemos concluir, consiste então em saber dosar, articular, conduzir a eloquência e o elemento da dificuldade, como instrumentos que podem valorizar, bem como destruir o próprio espetáculo.



Bibliografia:


HUME, D. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002.

Shakespeare em Herder, uma intuição da Modernidade




 
 
 
Em seu ensaio Shakespeare, J. G. Herder nos permite vislumbrar um debate particular, recorrente no ambiente alemão, suscitado pela estética do drama shakespeareano e seus preceitos singulares. Nos idos de 1760 havia certa discussão acerca das peças do dramaturgo britânico, a respeito, sobretudo, de sua ruptura com os padrões clássicos, deixados pelos modos gregos. Dado o seu desprendimento desses padrões estéticos, predominantes, o questionamento instaurado pelo debate colocava em dúvida o valor dessa arte e sua própria legitimidade enquanto “tragédia”.


Em sua reflexão, Herder atenta para o fato de que a obra de Shakespeare e sua larga repercussão fora, em grande medida, expandida pela interpretação que dela se fez: deve-se, pois, ao trabalho daqueles que a criticaram, que a defenderam, que a condenaram, traduziram, etc; entre adversários e admiradores, há, entretanto, um aspecto para o qual Herder nos chama a atenção: com base em sólidos preconceitos; os críticos de Shakespeare limitaram-se a ler as obras pelas “lentes do classicismo” e, assim, acabaram por reduzí-la, segundo o autor, a uma “caricatura”. Assim, ao lado dos muitos adversários de Shakespeare, que não lhe reconheciam como um bom dramaturgo, por distanciar-se dos autores trágicos clássicos - Sófocles, Eurípedes, Corneille e Voltaire - cometem o mesmo equívoco também os seus defensores, que teriam tentado apenas “desculpá-lo” pelas regras violadas e “salvá-lo” destacando as belezas de sua obra. Herder identifica, pois, que ambas as partes uniam-se por adotarem o mesmo preconceito - classicista – como base para construir seus argumentos. (“de ambos os lados, se edificou com fundamento apenas num preconceito, numa ilusão, que nada é”, p. 38).


O projeto de Herder guia-se, contudo, pelo movimento contrário: prevê não continuar este “edifício” dos preconceitos neoclássicos, mas distanciar-se dele (“Que biblioteca já se escreveu sobre ele, pró e contra ele! - e de forma alguma estou disposto a aumentá-la ainda mais”), na tentativa de compreender a obra nórdica e atribuir-lhe o valor que lhe for digno. A pretensão de Herder seria, pois, em suas próprias palavras, “esclarecê-lo”. E seu projeto, cumpre citar, visava sobretudo extrair dessa reflexão algum proveito para sua própria cultura (“sentí-lo como é, para serví-lo e – onde for possível – para nô-lo reproduzir a nós, alemães”) (p. 37).


Em seus trabalhos acerca da estética e do idealismo alemão, a professora norte-americana Kristin Gjesdal, que analisa a contribuição de Herder e situa o debate sobre a obra de Shakespeare no âmbito da estética enquanto nova disciplina, chama-nos a atenção para o fato de que, dizendo respeito aos críticos e também aos filósofos, tratava-se de uma questão que suscitava, antes de qualquer coisa, a reflexão crítica e sistemática sobre uma “condicionalidade [conditionedness] histórico-cultural” do pensamento. Seria a partir dessa noção (de condicionalidade) que, segundo a autora, Herder voltou-se para o caso de Shakespeare. É alinhando esta noção à ideia de preconceito, que Herder concentra seus esforços em entender as origens da má recepção sofrida pela tragédia de Shakespeare.


Ao observar a devoção, irrefletida, por assim dizer, com que se persegue os dogmas clássicos, Herder identifica-a como a primeira premissa a ser questionada. A noção de “condicionalidade histórico-cultural”, surgirá nesse âmbito (nessas análises) e sustentará as observações de Herder acerca do preconceito, como um problema que impediria a crítica mais coerente e justa, a seu ver, da tragédia nórdica.


O pensamento de Herder se dará, então, em três momentos: a) pensar as origens do drama grego (para); b) diferenciá-lo do teatro francês que, a seu ver, estão muito distantes dos cânones helênicos e, finalmente; c) ressaltar as qualidades de Shakespeare que - a despeito de seus caminhos, controversos - “reivindicariam” para si valor análogo ao da tragédia grega. Sem perder de vista a ideia central com que o autor delineará esses movimentos: a de desnudar ou evidenciar os preceitos (infundados) com que se privilegia as premissas clássicas, cumpre analisar o desenvolvimento de sua reflexão.


A respeito das origens da tragédia grega, Herder lembra que as palavras drama, tragédia e comédia foram herdadas pelos gregos e que, tal como o fez a cultura da escrita, elas teriam aberto seu “caminho” por meio da tradição. Assim, junto delas nos teria chegado todo um “acervo de regras”, o que, para o autor, explicaria, em certa medida, as exigências do classicismo, revelando, ao mesmo tempo, a sua própria inconsistência. Com o intuito de problematizar esse “acervo de regras”, Herder recorre a uma analogia para descrever a relação entre os dramas grego e nórdico: tal como ocorreria com as crianças, diz o autor, a formação das nações não se processam pela razão, mas pela percepção e pela impressão, “pelo que há de divino no exemplo e no uso (…). E “Elas [as nações]”, acrescenta o autor, tal qual uma criança “nunca receberão a semente sem invólucro” (p. 39).


O que Herder quer dizer nessa passagem fica mais claro quando ele afirma que na Grécia surge um drama que “não poderia ser o do norte”, mas que, entretanto, poderá ser desenvolvido (como foi) até adquirir características próprias, isto é, embora a tragédia grega seja seu “invólucro” e mesmo o “exemplo”, o drama nórdico teria tomado rumos distintos, para encontrar seus próprios significados (que diz respeito ao seu ambiente, sua história, seu espaço, etc).


O autor lembra ainda que a própria tragédia grega, originada do coro e do ditirambo, também recebera “acréscimos” de Ésquilo e Sófocles e, só assim, “após longo desenvolvimento”, teria-se elevado o drama grego “à sua grandeza” e, o autor acrescenta, “essas origens vêm a esclarecer certas coisas que, quando admiradas como regras mortas, levam a mal-entendidos terríveis” (p. 40). Nessas passagens, importa destacar, o objetivo de Herder é evidente: demonstrar como a exigência de se seguir os preceitos originários, neste caso as regras rígidas de um “antecessor” (hoje os clássicos), não foi preocupação fundamental dos primeiros autores trágicos (dos próprios gregos) e, mais que isso, nessa postura estaria, também, a razão pela qual houve, de fato, desenvolvimento entre os gregos. (“Dado que tudo no mundo se modifica, também teve de modificar-se a natureza que foi o que propriamente criou o drama grego”, p. 43). O próprio Aristóteles, em sua obra Poética, ressalta Herder, teria dito o contrário do que tradicionalmente se interpreta; “o grande homem”, diz o autor, “filosofava no amplo sentido do seu tempo (...)”. Pra complementar a ideia, o autor lança mão de uma passagem chave para demonstrar essa compreensão aristotélica: “Não conhecia nem reconhecia outras regras que os olhos do espectador, que a alma, que a ilusão!” e finaliza: “a arte dos poetas gregos trilhou justamente o caminho oposto àquele que hoje nos querem impingir aos gritos” (p. 42). À partir disso, nota-se que preconceito, em Herder, estaria no ato de exigir de toda a produção originária de uma matriz, a simples (e eterna) reprodução de sua origem; de querer que a “semente”, para continuar o conceito de Herder, em vez de desenvolver-se, repita o próprio invólucro, o que significaria impôr as condições (uma “condicionalidade”) que já dizem pouco às produções “hodiernas” e, por isso mesmo, as tornam artificiais. Significa dizer que, para Herder, é essencial considerar as novas circunstâncias que atribuem significado e valor a uma produção, segundo o tempo e espaço em que elas nascem.


Este momento do ensaio de Herder apresenta grande originalidade e contribuição, por nos remeter à ideia de que, nesse sentido (de desenvolvimento, pelo desprendimento dos antecessores) o drama nórdico, por tomar rumos distintos, seguindo premissas próprias e singulares, se encontraria mais próximo dos gregos (de sua autenticidade) que os tão aclamados dramaturgos franceses, cujo teatro seria, a despeito do valor inegável de seus autores, apenas uma tentativa, um “macaquear”, distante da tragédia grega. Esse movimento, que Herder opera em sua reflexão, é, ainda, fecundo por apontar para uma inversão de valores - ao se colocar as peças francesas como modelo e as britânicas (representadas por Shakespeare) como objeto de crítica – digna de revisão.


Com efeito, no que diz respeito às regras teatrais, atribuídas a Aristóteles – unidade de tempo, de lugar, de ação, etc - Herder confere aos franceses Corneille, Racine e Voltaire, grande valor; elogia seus versos e rimas, a “regularidade, riqueza e brilho” e outras qualidades. Contudo, o autor faz uma observação contundente, ao dizer que “isso não é tragédia grega! (…) nem na finalidade, nem no efeito, nem no gênero, nem na essência!”. Esses autores, admite Herder, falam a linguagem do sentimento, seguem em grande medida o “seu” Aristóteles, entretanto, “são retratos de sentimentos de terceira e alheia mão; nunca, porém, ou raramente, emoções diretas, imediatas, sem afetação, que buscam palavras e por fim as encontram”. Ainda que belo, educativo e instrutivo, arremata Herder, seus objetivos ficam longe do “objetivo grego”, isto é, a “comoção do imo”, “o excitamento da alma (…)”, diz, “que realmente nenhuma peça francesa conseguiu nem conseguirá realizar [pois que nela] faltam todos os elementos da comoção, o fim e a realização do fim” (pp. 46 – 47).
 
Exposto isso, o movimento seguinte de Herder, que assume não ter, ainda, decidido nada sobre “valor e desvalor”, mas somente destacado a “diferença” entre as duas estéticas, será apontar para um povo que, ao contrário, isto é, “ao invés de macaquear”, radicaliza o autor, decidiu “inventar para si mesmo o seu drama”; e inventou segundo “a sua história”, “o espírito da época, os costumes, as opiniões, o idioma, as convenções (…) paixões nacionais (…) (tal como os nobres gregos o fizeram partindo do coro)” (p. 48). Ele refere-se aos nórdicos e aqui deixa explícito as razões pelas quais o drama shakespeareano se aproxima dos gregos, na mesma medida em que dela se afasta o teatro francês. É por esse caminho que, conclui Herder, esse povo (“junto ao seu grande Shakespeare”) alcança o que o autor chama de “fim dramático”. De qualquer modo, vale mencionar, o elogio de Herder não consiste em aproximá-los, britânicos e gregos (exceto por essa característica de desenvolvimento próprio), mas, ao contrário, por toda a diferença e singularidade – o que por mais de uma vez ele exalta, dizendo: “que distância da Grécia!”.


Ao nos remeter aos gregos que, partindo do coro, construíram seu próprio edifício, em alusão aos nórdicos, Herder é enfático ao propor o seguinte questionamento: quem poderia condená-los, “só por essa segunda criação não ser a primeira?” Ele ressalta que sua virtude estaria exatamente no fato de não ser a primeira (uma repetição dela), ou, em que “do solo da época, nasceu de fato outra planta” (p. 49). A esse respeito, é curioso pensar que no ensaio de Herder, ao identificar a crítica do teatro francês (como o reverso do elogio a Shakespeare) que, a seu ver, poderia buscar sua própria estética, cujas referências fossem os elementos de seu próprio tempo e realidade, identifica-se, também, o impulso moderno pela criação, superando o elogio da mímese (imitação), tão ativo no período em que Herder está inserido: o Neoclássico. Nesse sentido, poderia-se pensar Herder, que está há um século, aproximadamente, de uma estética efetivamente modernista (no sentido militante), como um pensador bastante a frente de seu tempo, ao destacar em Shakespeare (defender a sua obra), pela qualidade de “criador”. Ele antecipa um valor (o desprender-se do passado), que será inegociável na estética do século XIX (embora, ironicamente, francesa), que se deixa sentir em várias passagens, como essa: “Apanhou a história como a encontrou, e compôs com espírito criativo, num Todo maravilhoso, as coisas mais diversas” (p. 50).


A ideia do “Todo” também desempenha papel importante na avaliação que Herder faz acerca do dramaturgo britânico. Segundo o autor, Shakespeare canaliza suas peças para um acontecimento, um evento. Nele, entretanto, alcança a linguagem de “todas as idades, de todos os homens e espécies de homens”; “ensina, comove e forma homens nórdicos”, tal qual fizeram os gregos com os homens de seu tempo. O valor em Shakespeare, segundo as observações de Herder, está não só no seu desprendimento dos dogmas classicistas, mas na universalidade dos sentimentos que ele manifesta à partir de um acontecimento particular.

Direcionando uma “situação” a um “Todo”, em Shakespeare estaria tanto a individualidade quanto a universalidade. O britânico, diz Herder, respira a “alma do acontecimento”, “ordena com o olhar” e “anima com o sopro criador da sua alma”, arrastando consigo “atenção, coração, todas as paixões, toda a alma” - eis o que seria, entendido por Herder, o drama e o poeta dramático. Mas Herder insiste: “o que há aqui não é [só] um poeta! É um criador! É história universal!” (p. 55). Universalidade é característica importante na criação de Shakespeare, porque é o que fala a todos os indivíduos, mas, também importante na reflexão herderiana, apresenta-se a qualidade de criar, e essa é uma característica notável, como dito, pela antecipação que ela evoca, no pensamento de Herder,


Finalmente, exaltando essa indiferença à medida do tempo (para citar apenas um elemento), Herder conclui sua reflexão lamentando que o “criador de história e alma universal” envelheça cada vez mais, até o dia em que se tornar uma “ruína de colosso” que “todos admiram e ninguém compreende”, mas sem, com isso, deixar de se mostrar grato por viver os tempos finais em que ainda era possível entendê-lo e por viver, acrescenta (referindo-se a Goethe), nos tempos em que:



tu, meu amigo (…) [ainda pode] reconstruir o seu monumento, em nossa língua, para a nossa pátria tão extraviada, inspirando-te na época dos cavaleiros medievais. Eu te invejo o sonho, desejando que tua ação nobre e alemã não arrefeça até que a grinalda coroe o teu esforço” (p. 63).



Com isso, a intenção que se esboça no começo se confirma ao final do texto, de que Herder visa um despertar da cultura alemã, mas em um sentido inovador, modernizante (muito embora essa palavra não apareça em suas observações), que se inspirasse, em uma palavra, não no teatro francês, mas no britânico.


Ademais, pode-se pensar que a expectativa que Herder depositava em seu conterrâneo, que iria liderar o Romantismo em fins do século XVIII, seria mais que atendida, se ele pudesse testemunhar as sementes deixadas por esse movimento cultural, cuja dialética, se assim pudermos chamar, culminou nas estéticas modernistas (como a impressionista), que romperam de vez com os preceitos (e preconceitos) e toda a rigidez classicistas para valorizar definitivamente o tempo e espaço próprios. E, nesse sentido, não seria arriscado entendermos o desprendimento de princípios, o respeito à realidade distinta, e a observação do presente - no elogio do drama nórdico - como elementos que caracterizam o pensamento de Herder como uma intuição, de certa forma, daquilo que viria a constituir o próprio solo da modernidade artística. É nas reflexões concernentes à obra shakespeareana que, nos parece, estaria a mola propulsora dessa “intuição”.



Bibliografia:

HERDER, J. G. Shakespeare. New Jersey: Princeton University Press, 2008.


Autores Pré-Românticos Alemães / Introdução e notas de Anatol Rosenfeld – São Paulo: EPU, 1991.

Websites consultados:


(visitado em 10.12.2014)









domingo, 16 de novembro de 2014

O valor da Tropicália.



Você conhece as origens, os propósitos e as conquistas dos Tropicalistas?
Ao som de Alegria Alegria, de Caetano Veloso (ouça aqui), te convido a dar uma rápida "espiadela" nesse episódio significativo da cultura brasileira.

O Tropicalismo, também conhecido por Movimento Tropicalista, surge em meados da década de 1960, formando um movimento cultural brasileiro que, sob a influência de correntes artísticas de vanguarda, mistura manifestações tradicionais da cultura brasileira gerando, assim, uma estética radicalmente inovadora.

Durante a década de 1960, são quatro as grandes tendências que constituem a música popular brasileira: há os herdeiros da Bossa Nova (como Chico Buarque); os artistas da chamada “Canção de Protesto”, que recusam os elementos da música pop estrangeira e que viam a canção como instrumento de crítica política e social (como Geraldo Vandré); os artistas da Jovem Guarda (Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia), influenciados pelo rock inglês e norte-americano (conhecidos no Brasil como “iê-iê-iê”) e; finalmente, um grupo mais voltado para experimentações estéticas, os Tropicalistas.


Os principais nomes ligados ao Tropicalismo são: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes, Rita Lee, Tom Zé, Arnaldo Batista, Jorge Ben Jor, entre outros. Mas o movimento não limita-se ao campo musical. A década de 1960 sofria intensa transformação cultural, sobretudo como um produto das imposições e brutalidade do regime militar no Brasil. No cinema destaca-se Glauber Rocha e sua obra Terra em Transe, onde são tecidas críticas ao cenário sócio-político, nas artes plásticas Hélio Oiticica muda o rumo da estética, José Celso Martinez Corrêa inova o espaço cênico no Teatro Brasileiro, ao montar O Rei da Vela de Oswald de Andrade, entre muitos outros exemplos.


O começo do Tropicalismo se dá com a reunião de uma série de artistas baianos, no contexto do Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela Rede Record em São Paulo e Globo no Rio de Janeiro. As interpretações de “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso, ao lado de “Domingo no Parque” interpretada por Gilberto Gil, na companhia de Os Mutantes, no ano de 1966, dão ensejo para a definição do Movimento Tropicalista. No ano seguinte, em 1967, o festival foi integralmente considerado tropicalista e neste mesmo ano foi lançado o disco Tropicália ou Panis et Circense, que pode ser considerado como um manifesto do grupo ou algo similar a isso. Em 1966 Caetano Veloso declara que entre suas esperanças a maior delas era a de “regenerar o tecido da MPB”.



As influências do Movimento



As transformações propostas pelo Tropicalismo apresentam ressonâncias do Movimento Antropofágico, formado por Mario de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Anita Malfatti, Pagu e outros, nos anos de 1920 e 1930.

Digerir a cultura exportada pelas potências culturais europeia e norte-americana, para regurgitá-las após serem mescladas com a cultura popular e identidade nacional é ponto comum entre os movimentos, com a diferença de que, no Tropicalismo, além da cultura erudita, digere-se também a popular. Assim, a proposta no tropicalismo consistia em deglutir todas as tendências do entorno, sem critério, sem exceção.


O Tropicalismo também apresenta-se como desdobramento do Concretismo, dos anos 1950, especialmente na poesia concretista, isto é, havia, entre outras coisas, uma preocupação de tratar os versos como um elemento plástico a ser moldado, alterado, criando jogos linguísticos como um reflexo claro do Concretismo.



As Características Estéticas



Musicalmente, o tropicalismo pode ser visto como uma mescla de cultura popular, música erudita e rock psicodélico, além de “cultura brega” citada por alguns como característica do movimento. Com essa composição, o grupo dará conta de realizar diversas manifestações da cultura nacional. O som do violino, somado à guitarra elétrica e os berimbaus resgatavam a essência do que fora proposto por Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropofágico: o retorno às raízes das tradições nacionais.

O grupo caracterizava-se também pelo excesso. As roupas coloridas e os cabelos compridos, as várias influências musicais agregadas em uma única melodia por vezes chocavam, sobretudo pelo ineditismo, e a violência estética das performances acabavam por protestar contra a música brasileira “bem comportada”, se assim pudermos chamar. Influenciados pela contracultura, esses artistas se utilizam, por vezes, de uma linguagem de paródia e de deboche.








Ao mesmo tempo, as letras das canções eram inovadoras, além de codificadas – uma demanda de tempos de ditadura – e por isso exigiam certa bagagem cultural para que fossem compreendidas, muito provavelmente razão pela qual a recepção nem sempre era positiva, sobretudo em suas primeiras apresentações. "Alegria, Alegria" de Caetano Veloso, ao primeiro contato, não tem um sentido óbvio, mas carrega em sua letra preocupações típicas da juventude da década de 60: um tormento com a violência da ditadura e um desejo de inovar e de romper barreiras.








O Fim do Movimento



Em 1969, Os Mutantes ainda realizaram seu último concerto com Caetano e Gil, mas durante um espetáculo ocorrido em uma boate carioca, “Sucata”, ocorreu o famoso incidente da bandeira nacional que, aos olhos dos militares, significou um desrespeito. A bandeira teria sido pendurada no palco com a inscrição “Seja Marginal, Seja Herói” e a imagem de um traficante famoso da época (“Cara de Cavalo”) e que fora assassinado, violentamente, pela polícia. Esta imagem, na verdade, era uma obra de Hélio Oiticica. Além disso, Caetano Veloso teria cantado o Hino Nacional, inserindo nele versos ofensivos às Forças Armadas.






Isso deu motivos para os militares suspenderem a apresentação e mesmo prenderem Caetano e Gil que, posteriormente, foram soltos e exilados no Reino Unido. Esse episódio ficou marcado como o fim do movimento vanguardista, contudo, seus integrantes deram continuidade as suas carreiras, obtendo sucesso e popularidade nas décadas seguintes, e até os dias de hoje. A importância inconteste desse movimento, entre outras coisas, é a de ter despertado, quarenta anos depois, o projeto modernista da Semana de arte moderna de 1922, dando continuidade aos seus princípios básicos, agregando um novo elemento: inserir TODA  a cultura, a local, a popular e a erudita, a estrangeira, a cosmopolita e a regional, etc. Serviu também para nos lembrar de um período importante do nosso desenvolvimento como povo e como nação, no âmbito artístico-cultural; para chamar nossa atenção para o que já foi feito, deu trabalho e não deve ser esquecido; para nos lembrar que olhar para trás é olhar para frente.