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segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O expressionismo alemão e a "Neue Sachlichkeit"



Female Artist, 1910 – E. L. Kirchner
(101 x 76)
Brücke-Museum, Berlim, Alemanha.



Para compreender as motivações do expressionismo alemão, que se deu na Alemanha no início do século XX, importa abordar o contexto histórico em que ele está enredado e, portanto, do qual ele se origina.

A ampliação das conquistas técnicas e o progresso industrial do século anterior desempenham papel importante na produção artística desse período. A diferença crescente entre a burguesia e o proletariado, que se fazia explícita no dia a dia, marcavam forte presença naquele início de século, na Europa. A organização de um capitalismo abrangente incita o surgimento dos primeiros movimentos sindicais e ganham espaço profundas conturbações políticas. Com a primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Revolução Russa, que serão seguidos de uma segunda Guerra Mundial, os artistas que serão analisados, da chamada “Nova Objetividade”, um segmento do expressionismo alemão, se encontram no período do entre guerras, marcado por profunda insegurança, melancolia, angústia e, sobretudo, terror.

A arte desse tempo floresce, pois, em solo obscuro, permeado, inicialmente, pelas cenas de miséria e o pressentimento de uma catástrofe por vir e, após 1914, pelo impacto causado pelo genocídio gratuito da Primeira Guerra, pelas memórias de violência e pela própria derrota, cujo ônus é absorvido, novamente, pela sociedade. Trata-se, pois, de um contexto de completa consternação, de exasperação e desconfiança na humanidade, deste modo, podemos afirmar que “os movimentos e tendências artísticas como o Expressionismo e outros do século XX expressam, de um ou outro modo, a perplexidade do homem contemporâneo”.  (PROENÇA, 2001, p. 151).

Esse estado de coisas não poderia deixar de refletir, também, um estado de espírito, muito complexo e específico, que se reproduzirá na arte de então.  Desse modo, e tendo em vista que o expressionismo era a manifestação do que se passava “no interior” do artista; um movimento, portanto, de dentro para fora, não nos deve surpreender que a arte expressionista, em muitos momentos, tenha recebido da crítica, e mesmo de um público amador, o signo de uma “arte feia”.
  


E. L. Kirchner - Street in Dresden (1908)



 A Vanguarda Expressionista - Die Brücke  e  Der Blaue Reiter

O Expressionismo Alemão surgiu como um movimento que contrariava o pensamento filosófico preponderante na época, o positivismo. O avanço da técnica, o desenvolvimento das tecnologias, assim como a felicidade baseada na ordem e no progresso, ia contra a perspectiva expressionista, que procurava desmascarar esse ideal que era tido como burguês. Esse anti-positivismo do expressionismo o faz necessariamente anti-impressionista, negando, pois, o caráter de superficialidade, felicidade e, de certo modo, uma espécie de hedonismo, sugerido por alguns dos impressionistas.

E. L. Kirchner - Cinco mulheres na rua (1913)
Essa reação ocorre, também, devido à preocupação exclusiva dos impressionistas com as sensações de luz e cor, deixando em segundo plano os sentimentos humanos, sobretudo na sociedade moderna. O expressionismo envereda-se, pois, pelo caminho mais interior, ou seja, num viés mais emocional, buscando atingir o que seria “a alma” das coisas, a sua essência - não aquilo que se vê, mas o que se sente - de modo que, o que é representado na tela deve ser o resultado das emoções do observador/pintor.

O grupo expressionista Die Brücke (A Ponte) tem origem em Dresden, Alemanha, entre 1904 e 1905 e é composto inicialmente por E. L. Kirchner, E. Heckel, K. Schmidt-Rottluff e F. Bleyl, sendo mais tarde integrado por O. Müller e E. Nolde.   O nome “A Ponte” tem forte inspiração na obra de Nietzsche Assim falava Zaratustra, que descreve o “fazer de uma ponte” para o alcance de novos ideais; além disso, inspira-se na própria crítica (nietzscheana) contundente à burguesia e seus valores ilusórios.


A figura humana é o elemento em destaque, em especial o tema do nu e ambientes naturais (como as cenas de banhos), embora também a cidade, local onde podem encontrar dinâmica e intensidade, surja em algumas cenas. O recurso estético é, intencionalmente, reduzido ao essencial e às formas simples, sendo o objetivo do grupo revigorar a arte com mais liberdade, autenticidade e, sobretudo, devolvendo a expressão e os gestos genuinamente humanos, entre eles, a emoção, o tormento, a melancolia.

Ao lado de Die Brücke, que se dissolve no ano de 1913, surge em Munique o grupo Der Blaue Reiter, ou, O cavaleiro azul (1911-1914), liderada por V. Kandinsky, que inicia sua pesquisa num sentido não-figurativo e numa linha mais mística e espiritual. Com influência dos franceses Cézanne e Matisse, que vão incutir na obra do grupo o gosto pelas cores fortes e pelo traçado violento e emocional, o Blaue Reiter também rejeita o naturalismo tradicional do impressionismo e busca uma essência secreta ou o lado espiritual das coisas em sua forma misteriosa.

Além de V. Kandinsky, também compõem o grupo artistas como: Franz Marc, Paul Klee,, A. Macke, A. von Jawlensky, entre outros. Esses artistas pretendiam ver a natureza e o homem a partir das experiências, sensações e sentimentos individuais, para a construção de uma arte pessoal, contudo, com um sentido que fosse universal.
Conforme o crítico e historiador da arte G. C. Argan comenta, a tendência “anti-impressionista” desses grupos expressionistas significava, essencialmente, superar o caráter sensorial daquela pintura: “A impressão é um movimento do exterior para o interior: é a realidade (objeto) que se imprime na consciência (sujeito). A expressão é o movimento contrário, do interior para o exterior: é o sujeito que, por si, imprime o objeto” (2013, p. 227). Em outras palavras, se o impressionismo manifesta uma atitude sensitiva, o expressionismo privilegia uma atitude volitiva. Ambos são movimentos realistas, porém, enquanto um age no plano do conhecimento (captando a realidade), o outro age no plano da ação (criando a realidade). (Idem).

Inspirados nos trabalhos de artistas como Van Gogh e Edward Munch, esses pintores dedicaram-se a manifestar em suas obras seu “espírito”, as inquietações e perturbações que caracterizavam, psicologicamente, o homem do início do século XX. O pensamento de F. Nietzsche (1844 – 1900), com sua filosofia exuberante, seu culto aos instintos, à vida autêntica e à liberdade, como mencionamos, também contribuíram para o espírito do movimento em questão.

Os contornos sinuosos privilegiam antes as emoções que se queria representar do que as regras tradicionais, de equilíbrio de composição, regularidade da forma e harmonia das cores. Esses artistas operavam uma tentativa contínua de se integrar a figura na paisagem, além da tendência de geometrização das formas (influenciados pelo cubismo de Cézanne, tão em voga à partir de 1906) e a construção de perfis agudos.

Cavalo Azul, 1911 – F. Marc (112,5 x 84,5)
Städtische Galerie im Lenbachhaus, Munique
O emprego arbitrário da cor e a deformação sistemática da realidade, importa citar, não só revelam os ares de pessimismo subjacentes à arte que se produzia, sobretudo com o início da Primeira Guerra Mundial (como visto, temática fértil para o Expressionismo), como também pretendiam manifestar os mistérios de um mundo interior e secreto das coisas, como se essas pudessem “gritar” e se revelar à partir das cores ou das deformações.

Ainda com relação à deformação ou distorção expressionista dos objetos, importa saber que não se trata de deformação ótica, mas uma deformação subjetiva:  a intencionalidade com que se trata uma realidade é o que se pretende manifestar. A poética do expressionismo alemão é tratada como uma poética do “feio”, todavia, pode-se pensar, neste caso, o feio como um belo decaído, é para isso que se quer chamar atenção na arte expressionista: um belo que se encontra em estado degradado, tratando-se da condição humana testemunhada pelos artistas em questão.

Com a finalidade de superar o ecletismo das correntes modernistas, concentrando-se no problema específico da função da arte, será construída uma oposição entre uma arte engajada, focada na situação histórica e, uma “arte de evasão”, alheia à história (Argan, 227). Somente a primeira (tendência do expressionismo) explicita os problemas da sociedade, exercendo a comunicação, enquanto a segunda (tendência simbolista) o exclui, apresentando-se hermética e acessível para poucos. “O importante é justamente essa identidade entre expressão e comunicação: a expressão não é uma misteriosa mensagem que o artista anuncia profeticamente ao mundo, mas sim comunicação, de um homem a outro” (Argan, p. 238).

Nessa tendência, os expressionistas alemães também estão ligados aos fatos da vida cotidiana (característica herdada dos realistas), mas ao contrário dos impressionistas, cujo contexto era a joie de vivre de uma Bélle Epoque, retratam um tempo de obscuridades, de desigualdade social e indigência humana - mazelas da experiência humana. Ao lado de Die Brücke e Der Blauer Reiter, a Neue Sachlichkeit será o grupo que levará esse ideal a uma radicalização maior.


      A Neue Sachlichkeit

Quase se opondo a essa orientação do Expressionismo, que se mostra centrada mais na individualidade ou na espiritualidade do que propriamente na esfera social, surge após o término da Primeira Guerra, no início da década de 1920, ainda em um viés expressionista, a Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade). Tal denominação deve-se ao historiador G.F. Hartlaub, diretor da Kunsthalle de Mannheim, que em 1923 promove uma exposição com obras dos artistas mais engajados em denunciar a situação social e, acima de tudo, de forma estritamente objetiva. Em carta enviada a colegas, divulgando a intenção dessa exposição, Hartlaub revela “O que aqui estamos mostrando distingue-se pelas — em si mesmas puramente externas — características da objetividade com a qual os artistas se expressam”. (Fer, p. 290)

A Nova Objetividade é marcada pelo desejo legítimo de apontar para uma mudança de sentido: se opondo ao Expressionismo e sua subjetividade, individualidade e tendência ao transcendente, propõe uma arte mais realista, objetiva e coletiva, de cunho puramente social. Embora deva ser compreendida como um desdobramento da voga expressionista após a Primeira Guerra Mundial, sobretudo do aspecto de crítica social que caracteriza boa parte do expressionismo alemão, a Nova Objetividade recusa as inclinações abstratas de A Ponte e o simbolismo de Cavaleiro Azul.

O lema fundamental dessa estética é o de que a arte não é designada apenas para retratar a ordem social constituída, mas também deve consistir em uma vontade de transformá-la, tratando-se de um dever social e uma tarefa a cumprir. Assim, o cenário angustiante, as paisagens urbanas depressivas e as expressões melancólicas, antes configuram um ato de denúncia e contestação de uma realidade desencaminhada, do que a simples retratação do feio.

A burguesia é, com frequência, denunciada como a responsável pelas desigualdades sociais, pelo fracasso de toda a iniciativa humana que deveria triunfar e fracassou, ela era apontada como responsável, como afirma Argan “por aquilo que, para Nietzsche, constituía a total negatividade da história” (2013, p. 241).
Constituída por iniciativa de Max Pechstein e Cesar Klein, que vão promover exposições ao longo dos anos 20, o grupo quer dedicar-se às imagens reais da sociedade alemã do pós guerra, sem a “cobertura” idealizante e mistificadora das correntes precedentes, em outras palavras: defendem uma visão mais objetiva e menos sentimentalista. Ao lado de M. Beckmann, Otto Dix e George Grosz são os principais representantes dessa corrente artística, que empregará as energias criadoras em uma tentativa de reconstruir a vida nacional, buscando estreita colaboração da arte com a sociedade. O grupo chega ao fim com a queda da República de Weimar, quando A. Hitler chega ao poder em 1933.


Prager Strasse, 1920 – Otto Dix


A produção de Otto Dix e George Grosz

Otto Dix foi um pintor lúcido e impiedoso das misérias, das contradições sociais, de toda a estupidez da guerra e seus desdobramentos; sua pintura revelava “um ceticismo generalizado, cuja concepção de verdade devia muito a Nietzsche” (Argan, p. 246).  George Grosz, por sua vez, tinha um compromisso explícito com o comunismo; artista político, desenhista e caricaturista, é o desmistificador das classes dirigentes da Alemanha: militares e capitalistas são denunciados, com muito sarcasmo, como os responsáveis pela guerra, pela derrota e pelas consequências, amargadas pelo povo alemão.  Em 1928 Grosz escrevia: “despertar para a luta de classes – este é o objetivo da arte, eu sirvo a este propósito” (idem).

Ambos os representantes desse movimento, Dix e Grosz, que lutaram na Primeira Guerra, concentram-se nos temas ligados à marginalização e à exploração social das grandes cidades; valendo-se de uma mescla de técnicas de vanguarda, como a colagem, a distorção, do próprio expressionismo e o dinamismo do futurismo, pintam os veteranos de guerra, muitas vezes mutilados, os trabalhadores, a burguesia e a prostituição.

Funcionário do Estado, para as pensões dos
mutilados de guerra, 1921 – George Grosz
De modo geral, o que se queria é, para além de um naturalismo acadêmico, representar, de forma realista, uma verdade subjacente e para ela chamar atenção, em oposição a superficialidade da aparência. Obras como “Transeuntes e Reichswehr” de Rudolf Schlichter (1925), também integrante da Neue Sachlichkeit, retratam, criticamente, a realidade alemã do entre guerras:  edifícios ao fundo, um grupo de figuras femininas, outro de figuras masculinas (soldados), um veículo a motor, as vitrines, todos os elementos indicam a alienação, a mercantilização e a sexualidade, que recebem suporte econômico e militar, trata-se do novo estado de coisas, trazido pelos ventos do capitalismo. 

O que garantia a coesão entre os dois artistas era o esforço, para além das técnicas de representação, em construir um efeito social, que consistia em divulgar, de certa forma, uma denúncia com alto poder político e de instrução. Essa tendência recebe o cunho de “ala Verista” da Neue Sachlichkeit, em oposição ao chamado “Realismo Mágico” da mesma corrente, porém voltado mais para uma arte simbólica. O Verismo rejeita o simbolismo e contempla uma inclinação esquerdista, que, valendo-se de ironia e um sarcasmo bastante acentuado, promove um ataque explícito à burguesia e toda a elite de então, como bem ilustra a obra de O. Dix, Os jogadores.


Os jogadores, 1920Otto Dix


Inicialmente, os veristas tinham uma concepção de arte personificada, em oposição a arte neutra (ou mística) que se vinha fazendo anteriormente. Essa concepção ficou conhecida como Tendenzkunst (arte tendenciosa), arte que apontava para necessidades específicas e objetivas, em geral as necessidades coletivas.

O ponto fundamental da Tendenzkunst era a afirmação de que a arte não poderia, absolutamente, ser neutra ou desinteressada, não está, de maneira nenhuma, acima das questões materiais da sociedade. Para eles, toda obra é parte de uma tendência e “a arte que não é abertamente comprometida com a mudança, necessariamente apoia o status quo” (Fer, p. 294). Trata-se de uma teoria, como já dito, de extrema esquerda, que, de certo modo, corre o risco de reduzir a arte ao ramo de política e suprime de si mesma a possibilidade de independência. Isso não foi sustentado por muito tempo, mas a cultura de “arte como uma arma” teve grande força em vários momentos deste período e construiu em seu entorno uma noção de “cultura proletária”. (Idem).


                 A freira, 1914 – Otto Dix
A diferença entre os trabalhos da vanguarda expressionista e a Neue Sachlichkeit não é qualitativo, há uma relativa ortodoxia técnica em uma e um relativo radicalismo técnico na outra, não significando superioridade em nenhum dos casos, entretanto, o crítico de arte Briony Fer nos chama a atenção para o fato de que a primeira recebe destaque, enquanto a segunda é frequentemente negligenciada na história da arte moderna (Fer, p. 289), embora ambas, feia ou não, como se diz, tenham desempenhado importante papel na retratação de uma época e também na conscientização de seus contemporâneos -  indivíduos de uma triste sociedade do chamado entre-guerras – como é o caso de Trincheiras e A Freira, de O. Dix.




Trincheiras, 1917Otto Dix









Bibliografia

ARGAN, G.C. Arte Moderna. São Paulo, Companhia Das Letras, 2013.

FER, B., BATCHELOR, D., WOOD, P. Realismo, Racionalismo, Surrealismo – a Arte no entre-guerras. São Paulo, Cosac & Naify, 1998.

PROENÇA, G. História da Arte. São Paulo, Ed. Àtica, 2001. 


domingo, 1 de dezembro de 2013

LOLITA – um romance incômodo de Vladimir Nabokov



 
 
O polêmico Lolita, de Vladimir Nabokov, é publicado em inglês, no ano de 1955. Considerado escandaloso, foi rejeitado por diversas editoras até ser finalmente publicado, não obstante, foi o mais importante romance escrito pelo autor.
 
A história é narrada em primeira pessoa, pelo próprio protagonista, o professor de literatura francesa Humbert Humbert, que se apaixona por sua enteada de doze anos, Dolores Haze, a quem apelida, secretamente, de Lolita, e que será sua própria ruína. O professor, que se encontra na idade de 37 anos, define-se a si próprio, já no início da trama, como um pervertido intratável, mas não sem investir em uma justificativa: um romance traumático vivido justamente em sua pré-adolescência teria sido a causa de seus “desvios” amorosos.
 
A morte súbita de sua então namorada, de idade e aspectos similares aos de Lolita, lhe teria deixado marcas profundas na adolescência, que lhe renderam direcionamentos pouco ortodoxos no curso de sua vida, custando-lhe, ao final, sua própria liberdade.
 
A obra, que posteriormente ganhou duas adaptações para o cinema, revela as habilidades do autor, com suas múltiplas qualidades literárias além de uma estrutura bastante original: o autor explora uma mistura de estilos cinematográficos que se inicia num estilo tipicamente europeu, com a exposição de questões psíquicas e eróticas; tornando-se depois um drama, quando o professor vai morar em New Hampshire, uma cidade periférica sem muito atrativo - até se ver arrebatado pela pequena Dolores; posteriormente a obra vai adquirindo aspectos de um road movie, quando o protagonista, em uma longa viagem de carro pelos Estados Unidos, dá início ao romance proibido, momento esse em que ganha espaço, também, o enigma de um perseguidor misterioso e; termina com uma espécie de drama policial, num estilo de film noir.

A própria situação do protagonista, enquanto narra sua história, já consiste em um poderoso recurso literário, bastante original, de que o autor se serve: Humbert está em corte, sendo julgado e é nesse momento em que toda a trama se desenvolve: no narrar de suas memórias; o julgamento exerce o papel de uma cena suporte em que o protagonista, que é o réu, deve narrar os fatos, criminosos, aos jurados, encontrando oportunidade de rememorar, não sem um misto de êxtase e culpa, os capítulos que ele mesmo considera os mais sublimes de sua vida, como indicam as seguintes passagens:
 
O horror atroz, incrível, insuportável e provavelmente eterno que ora sinto, era apenas uma pequena mancha preta no azul de minha felicidade” 
 
Estou tentando descrever essas coisas não para revivê-las na infinita miséria que é hoje minha vida, mas para separar a dose de inferno e a dose de céu que existem naquele mundo estranho, terrível, enlouquecedor, que é o amor por uma ninfeta. A bestialidade e a beleza se encontram num determinado ponto – e é essa fronteira que eu desejo fixar, mas sinto que meu esforço é totalmente vão”.

Ironicamente, o réu tende a conquistar certa simpatia do leitor exatamente por não tentá-lo convencer. Sem nenhuma expectativa de ser compreendido, ele explica o mundo próprio, de leis próprias e indiferente, que era a paixão vertiginosa que ele nutria por Lolita: “...insisto em provar que não sou, nem nunca fui, e não poderia ser jamais, um crápula brutal. As pacíficas e sonhadoras regiões pelas quais rastejei são o patrimônio de poetas e não o valhacouto de criminosos”. Abrigando-se sob as asas dos poetas, com a “verdade” estranha e, ao mesmo tempo, popular, de que o amor está numa dimensão à parte (embora, no seu caso, isso se mostre bastante discutível), Nabokov faz com que o leitor se deixe seduzir, lentamente, pela subjetividade do réu.

O incômodo...

O arremate fundamental do autor é nos apresentar um réu convicto de ter sido, não o sedutor, mas o seduzido. Isso nos traz um conflito, dos mais perturbadores: “...às seis ela estava acordada e por volta das seis e quinze éramos tecnicamente amantes. Senhores do juri, vou contar-lhes algo muito estranho: foi ela quem me seduziu”.

O amor que Humbert nos confessa nos confunde, trazendo momentos que se mesclam de um total repúdio e uma estranha simpatia, que chega a nos causar culpa; é com uma incômoda surpresa que nos flagramos simpáticos à paixão nociva de Humbert, dado o seu poder de nos convencer a respeito da legitimidade, não de suas ações, mas de seus sentimentos, a partir dos quais, os desdobramentos, esses sim serão sempre passíveis de julgamento. Não obstante, Humbert nos coloca ainda mais um conflito de consciência, ao informar que a pequena “ninfeta”, como ele mesmo gosta de chamá-la, tomara as iniciativas, fatais, conforme a última passagem citada.
 
O autor nos ganha pelas curvas da sensibilidade; ainda que se trate de um crime atroz, ele consegue colocar a paixão num patamar mais elevado do que propriamente o crime que ela representou. E deixemos claro: para o réu, o fato é lido como um crime pelas leis, mas não por Lolita. Trata-se de um trabalho admirável, o de nos revelar a força da subjetividade exposta, fazendo-nos pensar sobre o alcance das leis privadas, que residem em cada história particular.
 
As passagens de Lolita nos deixam nas mãos esse problema: um conflito no que tange a inevitabilidade das coisas, o arrebatamento amoroso e sua fatalidade inegáveis. Nos força a acompanhar, mesmo com aversão, toda a ambiguidade do caso apresentado: o encantamento e a sordidez de uma paixão tão ultrajante quanto legítima – pondo-nos a prova, ao colocar, com suas linhas despudoradas, mas sempre bem organizadas e lúcidas, a seguinte questão: afinal, o que é legítimo nessa dimensão?

O autor parece insistir nesse recurso, se assim podemos dizer: a fatalidade que representa sua ruína é também seu álibi e sua justificativa, se puder haver uma. Essa é a potência do romance, o poder de nos mergulhar numa profusão de sentimentos contraditórios, caóticos, constrangedores e ao mesmo tempo fascinantes, instigantes, absolutamente apaixonantes.
 
O problema no romance que estamos chamando de incômodo, que representa, também, a genialidade do autor, é que ele nos coloca, com sua narrativa convincente, o amor acima de todas as coisas. Fazendo com que algo que se mostra tão monstruoso, pareça, ao mesmo tempo, ligeiramente doce e até compreensível. É neste ponto que uma terrível confusão de sentimentos parece acometer o leitor e o romance se confirmar dos mais incômodos, mas não menos cativante.
 
O gênio do autor fica ainda mais evidente ao conferirmos sua obra prima em uma outra linguagem artística. Em 1962 Lolita ganha sua primeira versão cinematográfica, dirigida por Stanley Kubrick; posteriormente, em 1997, Adrian Lyne dirige uma segunda filmagem, que difere substancialmente da primeira. Restringindo-nos à versão mais recente, de Lyne, tanto a pequena Lolita (Dominique Swain), quanto o professor Humbert, (Jeremy Irons), apresentam grandes interpretações, contudo, o contraste dessas duas linguagens nos leva, inevitavelmente, a reconhecer o absoluto talento literário de Nabokov.
 
A força e o vigor de sua obra residem precisamente no manuseio de suas palavras. A delicadeza e a despretensão das palavras de Humbert (escolhidas, com todo o esmero, por Nabokov) é precisamente aquilo que nos agarra e nos absorve com toda a voracidade que as palavras podem esconder. As cenas da versão cinematográfica também nos comovem e nos levam a modos de catarse, todavia, a ausência de palavras nos revelam o valor das mesmas: é surpreendente constatar como a substituição das palavras - que no caso de Nabokov representa toda a força poética do romance - pelas cenas cinematográficas, diminui significativamente a potência e o apelo da obra.

O poder das palavras, em se tratando de Nabokov, sobrepuja, em muito, o poder da imagem. As palavras nos confrontam, se riem do leitor desesperado; a imagem, por sua vez, tem qualquer coisa de “generosa”, limitando-se a apenas nos ventilar as implicações de um tema, sem nos encaminhar, à força, como faz impiedosamente o recurso literário, a questões nucleares da experiência humana.
 
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J. Irons e D. Swain na direção de Adrien Lyne, 1997.
A despeito de toda a passionalidade e energia que irradiam também a obra filmada, as passagens do livro nos conduz, de uma maneira diferente, a cantos mais sombrios de nossa interioridade, revisitando questões morais muito espinhosas da oposição “moral versus natureza”, uma vez que o autor decreta o amor como o elemento preponderante, sobre todas as coisas, o sem lei, o “perdoado”. Chegamos a lembrar das passagens em que Nietzsche afirma que “aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal”. Isso fica claro na passagem em que ele diz: "Tudo agora estava pronto, os nervos do prazer inteiramente expostos...Estava acima das amarguras do ridículo, fora do alcance de qualquer castigo...”. Ainda no terreno de Nietzsche, é como se Humbert, tivesse encarnado a figura do “Super-homem”, tão aconselhada pelo filósofo obscuro: aquele que se preocupa apenas em se superar, indiferente às convenções (precisamente onde se situam as questões morais), voltado sempre para sua “vontade de potência”.
 
São questões filosóficas que muitas vezes deixamos engavetadas, até nos depararmos com um romance como o de Nabokov. Parece razoável afirmarmos que a boa literatura deve contemplar, entre outras coisas, esse poder, de nos encaminhar às questões mais inéditas, mais esquecidas ou mesmo, por vezes, mais encobertas, proibidas, perigosas, numa palavra: incômodas, mas, no caso da arte, sem deixar de ser sublime. Nabokov o faz com excelência, tornando sua Lolita um monumento da literatura.
 
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Vladimir Nabokov nasceu em 1900 na cidade russa de São Petersburgo. De família nobre, cresceu em um ambiente trilíngue, falando russo, francês e inglês. Em 1919, devido à instabilidade decorrente da revolução bolchevique, o autor e sua família abandonam a então União Soviética e mudam-se para a Europa Ocidental, inicialmente Inglaterra, onde o escritor se forma, em Cambridge, e se licencia em literatura russa e francesa. Em Berlim, inicia sua produção literária e intenso trabalho como tradutor. Em 1940, fugindo dos horrores do nazismo, vai para os Estados Unidos, onde lecionará língua e literatura russa, em diversas universidades. Nas décadas seguintes publicará mais de vinte obras, entre romances e contos e, em 1977, aos 78 anos, morre na Suíça.

(* No último post selecionei as passagens mais tocantes que encontrei na obra:)
http://conversamolle.blogspot.com.br/2013/04/trechos-sublimes-de-um-classico.html