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sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

A Fotografia na Belle Époque brasileira: um discurso civilizatório.



 
 
Av. Central, Rio de Janeiro (virada do século XX)
A Belle Époque brasileira, também chamada de Belle Époque tropical, designa um período marcado por avanços significativos nos campos artístico, cultural e político que compreende os anos de 1889 a 1931 (final do Império até final da República Velha). Tendo seu auge nas duas primeiras décadas do século XX, encontra inspiração em Paris e se adapta ao contexto nacional. Em Paris, do final do século XIX até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a chamada Belle Époque caracteriza-se por uma atmosfera de novas percepções da realidade, por uma sociedade cujo cotidiano fora invadido pelas inovações tecnológicas: o automóvel, a eletricidade, o cinema, o avião, a fotografia, somados ao calçamento das ruas, os cafés, teatros, livrarias, óperas, cabarés, bulevares e a alta costura, eram alguns dos fatores que contribuíram para esse momento de entusiasmo pelo progresso e pela modernidade, que designamos por Belle Époque.

Em sua versão brasileira, a Belle Époque se desenvolve nas regiões mais prósperas do país: São Paulo, Rio de Janeiro e a região do ciclo da borracha - Amazônia. No presente artigo, nos concentraremos no Rio de Janeiro, por ser este o local mais influenciado pelos ideais da Belle Époque.

Primeiramente, importa recordarmos que o nascente regime republicano, que desejava inaugurar uma nova era no país, visava minimizar tudo o que lembrasse o Império e a colonização portuguesa, o que significou aproximar-se das culturas italiana e francesa, como alternativas, o que acabou por exercer grande influência na cultura local, começando pelas reformas urbanísticas e, num plano menos material, atingindo o próprio comportamento e gosto do indivíduo brasileiro.

No Rio de Janeiro, inspirado pelas reformas de Haussman (então prefeito de Paris), o prefeito Pereira Passos realiza uma profunda reforma urbana na capital, visando o saneamento e urbanismo, mas sobretudo o embelezamento da cidade, que lhe daria ares de cidade moderna e lhe projetaria como cosmopolita. A cidade ganhou inúmeras linhas de bonde e teve muitas de suas ruas alargadas, assim como Paris, que teve suas ruas transformadas em bulevares. Bairros da classe média carioca e áreas nobres foram criados e o grande cartão postal da cidade, o Teleférico do pão de açúcar, também nasce nesse período, precisamente no ano de 1912, logo depois da inauguração do Teatro Municipal, em 1909 - outro símbolo da Belle Époque - sem contar os vários cinemas, a Biblioteca Nacional e o Museu nacional de Belas Artes.

Já em São Paulo, durante a República Velha, a cidade se industrializa e o auge do período do café tem seu maior símbolo na construção da avenida Paulista, com suas mansões, e a (segunda) Estação da Luz, atual edifício. Em 1922, São Paulo abriga a semana de arte moderna, que foi um marco na história do país e, em 1929 ganha seu primeiro arranha-céu, o edifício Martinelli. As modificações realizadas na cidade por Antônio da Silva Prado, o Barão de Duprat e Washington Luís, que governaram de 1899 a 1919, contribuíram fortemente para o clima de desenvolvimento da cidade; alguns estudiosos consideram mesmo que a cidade inteira fora demolida e reconstruída naquele período. O clima era de modernidade e o entusiasmo era geral. São Paulo desenvolve-se em ritmo acelerado, principalmente, devido a sua localização, privilegiada: no centro do complexo cafeeiro e próximo ao porto de Santos.

Esse período também é marcado por um forte moralismo e ideais rígidos de comportamento, em parte “importados” da cultura europeia, com a qual a elite cafeeira entrava em contato (muito por meio dos filhos de barões que iam aperfeiçoar seus estudos na Europa). Esses padrões europeus, apreciados pela nova elite brasileira, longe de serem ignorados, foram absorvidos rapidamente e em grandes proporções. Eles eram disseminados, sobretudo, por meio da arte, sendo que, entre outros, a literatura e a fotografia foram elementos que exerceram forte influência no imaginário da sociedade de então. O filósofo Walter Benjamin, inspirado nas caminhadas de Baudelaire pela Cidade Luz, afirmou ser a fotografia um dos mais importantes elementos da modernidade por consistir, simultaneamente, em uma consequência do processo de desenvolvimento técnico e, também, testemunha de um novo tempo (? Citar)

Descoberta no ano de 1839, já no alvorecer do século XX a fotografia apresentava condições para efetuar o registro de imagens de alta qualidade e, com sua popularização, a imprensa a incorporou aos principais jornais e revistas. Seu emprego, a princípio, tinha como função ilustrar reportagens e artigos ratificando o acontecimento narrado, no entanto, no início do século XX, ela ganha um novo papel e se constitui como um elemento do cotidiano da população. Ao registrar tipos, costumes, hábitos, moda, entre outras coisas, o novo equipamento, somado ao olhar do fotógrafo, acaba por transformar o cotidiano em nova expressão estética: a fotografia agora ocupa-se de representar as inovações que se testemunha, mas não só isso: representa também (e principalmente) aquelas que se deseja ver. Eis a questão central de nossa reflexão.

O que queremos chamar a atenção aqui é como os códigos de comportamento e a aparência “ideal” daquela sociedade carioca foram, em muitos aspectos, orientados pelas imagens e pelos conteúdos selecionados pela imprensa. Esta tinha um programa pedagógico bem definido a ser cumprido; o que se queria disseminar eram os valores europeus, precisamente da Belle Époque parisiense, símbolo máximo de civilização e modernidade. Nesse aspecto, alguns periódicos, como Fon-Fon e Careta, na cidade do Rio de Janeiro, são flagrantes no estabelecimento de certos padrões, éticos e estéticos.

Importa observar que o processo de modernização e a vontade de progresso demandaram, também, a construção de um estereótipo “ideal” para os cidadãos. A reforma que se perseguia era, pois, mais do que arquitetônica, ela atingia inclusive a esfera da subjetividade e os cidadãos, que, imediatamente tomavam como referência aquilo que lhes era divulgado como “bom” e “belo”, respondiam bem a tais expectativas. Tal era o poder do texto e das imagens sobre a consciência social.

Não se pode perder de vista que uma fotografia faz sempre um recorte, isto é, representa uma “visão de mundo” e a visão de mundo daquele que fotografa – é ela que chegará ao público: um produto subjetivo. Desse modo, o que faz o fotógrafo, que também é sujeito social, que observa e interpreta seu entorno, é apresentar, por meio de seu trabalho, a sociedade que ele mesmo vê e na forma como ele vê. Assim, o modo como a cidade e os cidadãos são por ele retratados já consiste, em si mesmo, em um discurso. Portanto, as fotografias publicadas nos periódicos revelam-se potenciais recursos discursivos, que se encarregam de transmitir uma mensagem específica, que não é, de forma alguma, desinteressada.

Neste sentido, os periódicos, carregados de valor cultural, contribuem para a legitimação e naturalização de aparências e comportamentos desejados, mostrando-se eficientes moldadores nos mais variados aspectos, desde a indumentária até os valores morais.

Os registros da elite carioca representaram uma intenção clara de construir e divulgar a imagem do que seria um cidadão “modelo” a ser seguido; a fotografia participa, com sua imagem (seu recorte) tanto da elaboração como da consolidação dessa figura e, com esses registros, fez-se da imagem pública o símbolo de um modo de vida perfeito e, portanto, desejável – aqui a dimensão subjetiva do público se vê atingida.

Os ambientes sofisticados, divulgados pela fotografia, apresentavam com exatidão o que se esperava do novo carioca, qual a aparência, qual a pose, quais gestos e vestuário, quais valores se esperava. Para isso, é evidente, havia um filtro bem definido no olhar de quem registrava; o fotógrafo (ou a agência) estava determinado a focar-se exclusivamente na camada abastada da população e ignorar em absoluto o lado contrário. Trata-se, pois, de um aspecto menos “iluminado” da Belle Époque. Uma cidade imaginária foi construída, ideal e longe da realidade carioca; uma cidade erigida pelo discurso da elite que se queria europeia: de ruas e cariocas belos, bem vestidos, refinados, elegantes e letrados, que usavam automóveis, que frequentavam os cinemas, o teatro e os cafés. Essa elite procurava ignorar a existência de toda uma população pobre, que a seu ver deveria assistir e aprender os “bons modos” e o “bom gosto”.

Essa desarmonia não aparecia nos discursos dos periódicos e jornais, que destacavam fortemente a vida moderna e sofisticada, como se não houvesse a outra parte da população. Os fotógrafos que retratavam a cidade, ligados a agências e suas intenções civilizatórias, voltavam seu olhar para a Avenida Central, iluminada, de belas vitrines, esqueceram-se de ir até as vielas e becos, aos prostíbulos e favelas da cidade, concentrou-se enfim em um idealismo cego, de forma que o universo reconstruído pelas imagens, não foi mais do que imaginação, uma atitude parcial e negligente, incongruente com a realidade de então.

Bem compreendido, o ímpeto de instaurar a modernidade e seus hábitos era motivado, principalmente, por um desejo de suplantar o legado e a memória colonial e imperial que havia marcado negativamente e por séculos a sociedade brasileira. Contudo, do ponto de vista cultural, o carioca real (e aqui podemos entender, também, o brasileiro) e todo o seu valor, seu desprendimento, sua espontaneidade, sua comunicabilidade, sua beleza natural, livre, alegre e musical foram desprezados. Na ânsia de se querer ser o que nunca se foi, o real foi encoberto pelo imaginário, confundindo consciências, histórias, vivências; soterrando nossas raízes brasileiras, nossa natureza tropical, para realizar apenas uma tentativa, desajeitada, de parecer um europeu.