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segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A taça do esquecimento




"Mas a noite chegou. É a hora estranha e ambígua em que se fecham as cortinas do céu e se iluminam as cidades. Os revérberos se sobressaem sobre a púrpura do poente. Honestos ou desonestos, sensatos ou insanos, os homens dizem consigo: 'Enfim, acabou-se o dia!'. Os plácidos e os de má índole pensam no prazer e todos acorrem ao lugar de sua preferência para beber a taça do esquecimento. G. será o último a partir de qualquer lugar onde possa resplandecer a luz, ressoar a poesia, fervilhar a vida, vibrar a música; de todo lugar onde a paixão possa posar diante de seus olhos, de todo lugar onde o homem natural e o homem convencional se mostrem numa beleza estranha, de todo lugar onde o sol ilumina as alegrias efêmeras do animal depravado! 'Foi, com certeza, uma jornada bem empregada', pensará certo leitor que todos conhecemos. 'Todos têm talento suficiente para preenchê-la da mesma maneira.' Não! Poucos homens são dotados da faculdade de ver; há ainda menos homens que possuem a capacidade de exprimir. Agora, à hora em que os outros estão dormindo, ele está curvado sobre sua mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo olhar que há pouco dirigia às coisas, lutando com seu lápis, sua pena, seu pincel, lançando água do copo até o teto, limpando a pena na camisa, apressando, violento, ativo, como se temesse que as imagens lhe escapassem, belicoso, mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo. E as coisas renascem no papel, naturais e, mais do que naturais, belas; mais do que belas, singulares e dotadas de uma vida entusiasta como a alma do autor. A fantasmagoria foi extraída da natureza. Todos os materiais atravancados na memória, classificam-se, ordenam-se, harmonizam-se e sofrem essa idealização forçada que é o resultado de uma percepção infantil, isto é, de uma percepção aguda, mágica à força de ser ingênua!"


...há uma grandeza em todas as loucuras, uma força em todos os excessos”
 
  (C. Baudelaire, falando do poeta em Sobre a Modernidade, 1863).

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A magia ao Luar (2014) – mais uma metáfora incompreendida de Woody Allen...



Em algum de seus livros, Nietzsche me contou achar admirável aquele que conseguia dizer as coisas mais fortes com as palavras mais sutis. Woody Allen é especialista nisso, em dizer as coisas mais fortes da vida de um modo muito sutil. Em seus filmes mais recentes, como Tudo pode dar certo (tradução horripilante, é preciso dizer, para Whatever works que, ao contrário do título em português, não pretendia evocar nenhum otimismo, mas sim desilusão – algo como seja lá o que for” ou talvez “qualquer coisa que funcione”), Vicky, Cristina e Barcelona, Meia-Noite em Paris e muitos outros que poderiam ser citados, o grande cineasta nos deixa mensagens primorosas, que todo bom velhinho tem para dar e vender. Mas elas são bastante ácidas, desagradáveis. Ele se vale, contudo, muito habilmente, de seu “produto” (as obras primas que ainda salvam o cinema norte-americano) para lançar aos ares as terríveis “verdades” e por vezes na forma mais poética, que só um gênio poderia realizar. Outras vezes (muitas vezes, aliás) em forma de comédia, que de fato reflete bem a experiência humana.

Em Whatever Works, W. Allen usa Boris, o protagonista (um intérprete do próprio diretor), um físico-cético-intelectual, já pelos sessenta e poucos anos, para regurjitar no mundo (isto é, nos espectadores) tudo o que extraiu de suas experiências nessas poucas décadas vividas. A megalomania de W. Allen está em que ele pretende, parece, dar o recado da totalidade, em uma ou duas horas de filme. Entretanto, a intenção pode ser compreendida. Compartilhar tudo que se percebeu, quando se goza de pura lucidez aos quase oitenta anos, e produzindo arte há meio século, talvez seja não só um privilégio, mas uma necessidade. Mensagens como eu vejo o cenário completo” e “A maior parte de sua existência é mais sorte do que gostaria de admitir”, na voz de Boris (o porta-voz de W. Allen), são bons exemplos de sua habilidade nietzscheana. No segundo filme, Vick, Cristina e Barcelona, o diretor nos atormenta com seu realismo sobre a transitoriedade do amor, a trivialidade da paixão, sobre o absurdo da monogamia e outros detalhes desagradáveis de se assumir, que só um velhinho bem vivido estaria em condições de fazer. 
 
Em Magia ao Luar, W. Allen nos provoca novamente, com relação aos misticismos, ao charlatanismo, à ilusão (tão perseguida) de se encontrar algum sentido nessa vida. Mas ele nos trai, ele próprio nos ilude de que está revendo seu ceticismo tradicional, para depois, num golpe instantâneo, reafirmar o grande vazio que sempre pregou. Deixa-nos com cara de criança na poltrona do cinema quando dá a volta por cima e mostra que aquilo que estava quase se legitimando (como mágica de fato), é desnudado, mais uma vez, como um belo engodo!
 
A trama é simples. O conteúdo que é rico. Passa, todavia, desapercebido pelos que esperam só o entretenimento. Trata-se de um mágico renomado (Stanley, Colin Firth) que se dispõe, a pedido de seu amigo de profissão, a desmascarar uma pretensa vidente (Sophie, personagem de Emma Stone) que teria seduzido uma família inteira, com suas atividades supostamente paranormais. Ocorre que o próprio mágico, Stanley, absolutamente descrente e determinado a desvendar os truques de Sophie, começa a se convencer de que a jovem possui mesmo extra-poderes ao ouvir de sua boca os detalhes minuciosos, a princípio impossíveis de serem descobertos, acerca de sua vida e sua família. Ao mesmo tempo, deixa-se levar pelos encantos de sua jovialidade tranquila; suas crenças e seu misticismo passam a enfeitiçá-lo e aí está um momento extraordinário e mesmo inesperado na reflexão de W. Allen: Ele nos conta com maravilhosa sutileza como a ilusão é condição fundamental para a paixão e a felicidade. Que coisa incrível ele nos diz.
 
O momento cabal nessa interpretação é quando Stanley, tendo levado Sophie a um antigo planetário que frequentara em sua infância, pensando à respeito dos astros revela achá-los “ameaçadores”, e Sophie responde que os acha "poéticos".

Aqui W. Allen contrapõe ciência e poesia (ou razão e paixão) pondo em evidência as diferentes possibilidades de interpretações e suas repercusões (ela ingênua e alegre; ele racional e amargurado). W. Allen está falando muito sério nessa passagem: “há coisas que é melhor enfeitar” para poder viver e para poder se apaixonar; por outro lado ele parece nos propor a reflexão: “mas será certo bancar o cego?”. E aí está a maturidade na expressão de Woody: ele não dá a resposta. Deixa em aberto, a nosso encargo, como quem assume não poder, aos quase oitenta anos, afirmar mais nada. Embora Stanley desvende o charlatanismo de Sophie, identificando em seu próprio colega o informante dos detalhes curiosos que ela teria “descoberto”, ele está apaixonado e se mostra disposto, ao final, a relevar tudo em nome da paixão, pois (neste caso) o que importa a realidade?

E assim, num ataque de poesia, W. Allen parece reconsiderar seu ceticismo quase mórbido e jogar luz no que nos protege da "terrível" realidade (por acreditar, não nos misticismos mas na "magia" do amor). Ver os astros como ciência era desolador, mas vê-los com lirismo, com mágica, era apaixonante!
Isso fica claro no momento em que Stanley diz que Sophie lhe teria “devolvido a vida”. Com sua “mágica” e, por outro lado, com sua inocência, Stanley se protegeu, ainda que por pouco tempo, de uma realidade que o esmagava há muito tempo. O título é, em si, bastante sagaz: a magia ao luar é o próprio amor que ali nasce, em Stanley (tão cético), sob o céu estrelado. É como se W. Allen nos alertasse: "veja! essa é a verdadeira magia! e não o que faz Sophie - a pretensa vidente". Aqui W. Allen nos deixa boquiabertos com sua capacidade de construir metáforas espetaculares. Seu realismo poético é fascinante, mas se enriquece ainda mais pela sua veia filosófica. Importa esclarecer isso: Allen não é, já há muito, um simples comediante – nunca foi. Suas comédias, ronticas ou não, são meras ferramentas para sua barulhenta, dramática, madura reflexão. E finalizo chamando atenção para a enorme injustiça que ele sofre por aqueles que deixam a sala dizendo: “filminho leve, nada demais”.

Mas no final reconheço que esse é o ônus de saber “gritar” sutilmente, de que falava Nietzsche. W. Allen corre sempre o risco de ser incompreendido, mas jamais será um filme leve. Talvez se disfarce sob esse formato, apenas para chegar ao maior número de salas, afinal, há que se vender. Seu grande feito, contudo, está nas entrelinhas. Essa é a grande riqueza de sua obra e as cenas cômicas são apenas um pretexto, uma matéria-prima que ele lapida, com estrondosa percepção.

sábado, 6 de setembro de 2014

O Anti-cristo, de Lars von Trier (2009) - tentativa de uma crítica.



 


Em Anti-cristo há diversas plataformas da arte que se reúnem em torno da trama. As cenas do prólogo correm em preto e branco e em câmera lenta, ao ritmo lento e dramático de uma música sofrida que as acompanha e que parece transmitir o próprio drama da vida. O apreço de L.Trier pela música não é elemento secundário, como bem pode ser visto na obra-prima Dançando no Escuro (2000). A primeira cena é primorosa e renderia páginas de reflexão. Ali o diretor já nos revela sobre o que quer falar: da vida. E da morte. Da natureza. E da desordem.

Trata-se de um casal (sem nome) interpretado por Willem Dafoe e Charlotte Gainsburg que, distraído pela paixão visceral de seus corpos em ação, não percebem seu filho de seis anos, Nic, saindo do quarto ao lado e dirigindo-se para a janela ao encontro da morte. No momento mesmo em que a mãe solta o grito bestial do orgasmo -  aquele que uma vez teria  simbolizado a própria concepção -  Nic é levado pela morte, ao saltar, inocentemente, pela janela de seu quarto. O grito é o da natureza, aquela que dá a vida e também a tira; o grito do orgasmo mistura-se com o "grito" da morte, relacionando-se claramente o "início" com o "fim". A lentidão com que Trier filma este momento é muito significativa, o enfoque está na organicidade do sexo, na fragilidade da vida e também na banalidade da morte. Forçando-nos a encarar a casualidade com que a vida tem seu começo e também seu fim e a própria desordem e trivialidade com que ela se dá, Trier mostra como a história de Nic (como a de todo ser vivo) fora resultado de pulsões orgânicas, nos dois momentos cruciais de sua vida: o começo e o fim. (confira aqui todo o primor do prólogo).

Mas Trier vai mais longe. O sexo desesperado do casal narra a animalidade da natureza humana que convive, espremida, com a razão. Não à toa o pai é um psiquiatra, figura da razão, enquanto a mãe, transtornada com a perda e toda a culpa que se impõe, tornará-se a própria desrazão.

A partir disso a trama se edifica sobre um diálogo cruento entre racionalidade e passionalidade, natureza humana e a própria natureza, não para reforçar essas dicotomias históricas que crenças de outrora dedicaram-se a incutir no ser humano, as quais estimamos e sobre as quais nos apoiamos para nos sentirmos especiais (humanos e racionais, que dominam a natureza e as paixões), mas, ao contrário, para romper com essa ideia; para mostrar como esses “contrários” não se opõem, mas antes se harmonizam, estão ligados, são uma só coisa. As cenas de Trier colocam à mostra, como fraturas expostas, em vários momentos do filme, perspectivas incômodas sobre a natureza e o sentido da vida humana, ou a falta dele. Morre-se à toa como um dia nasceu-se à toa, sem qualquer propósito ou finalidade. Assim, o filme vai costurando, vai aproximando, de forma torturante e até o final, a figura humana da figura animal. As visões dos pais de Nic, nos dias em que encontram-se em sua cabana num local chamadoÉden”, o que também é curioso pois trata-se de uma floresta que está mais para demoníaca (em forte oposição ao papel que tal nome desempenha na cultura cristã), envolvem sempre animais: um filhote de pássaro que cai da árvore e imediatamente é tomado pelas formigas; um veado natimorto ainda preso nas entranhas de sua mãe, a emblemática raposa falante que, aparentemente, comia seu próprio filhote e, surpreendida pelo pai, emite as palavras fundamentais da obra de Trier: “o caos reina!”...toda essa seleção de cenas que relacionam animais e morte deixam muito clara a dolorosa mensagem de que não nos diferenciamos dos animais, nem somos especiais - morremos na mesma gratuidade e irracionalidade, muitas vezes na indignidade. A natureza nos engole a todos, e nos engole com a mesma casualidade com que nos cospiu um dia à vida. Sejamos cristão, sejamos raposa, eis o sentido dela, para lembrar Nietzsche, de quem muitos pensamentos permeiam toda a obra: o “não-sentido”. (Tecer aqui uma analogia com a obra nietzscheana estaria autorizado, dado que Trier já declarou o profundo impacto recebido do filósofo alemão desde sua adolescência, embora não seja este o objetivo).

Sobre a mãe, cabe dizer que toda a pulsão despejada por ela – passional, enferma – sobre o pai - a figura racional, sinaliza nossa identidade com a natureza. A cena de sexo ao pé de uma árvore de raízes vultosas, entrelaçando-se, indistintamente, que depois tornam-se mãos humanas, cria essa proposta: o ato humano, o enraizamento, as relações, o instinto e a natureza – uma só coisa. Essa única coisa é o que grita, é o que nasce, é o que morre, é o orgânico e o gratuito - o sem sentido. Quanto ao pai, Trier mostra mais uma vez seu esmero ao apontar como ele mesmo, cansado de toda a violência da esposa, sucumbe a sua passionalidade,  intrínseca e agora inadiável – especialmente por que então trata-se de matar ou morrer. O diretor nos chama atenção para isso, é o mesmo movimento para todos os seres: sobrevivência. É assim que a natureza atropela sua amabilidade e humanidade. Aqui Trier não titubeia em afirmar que mesmo a mais adormecida natureza, no sentido forte, não tarda em lançar-se à dança da animalidade, assim que for necessário.

Trier lança mão de um cenário obscuro e nebuloso, de mata fechada, representando brilhantemente as profundezas estranhas da  mente humana, seus "porões", os lugares mais sinistros e insólitos que ela esconde. A personagem interpretada por Gainsburg é exatamente isso, está obscura e suas ideias estão cercadas de “mata”, seu percurso é cheio de medos e dúvidas, e ela não vê para onde correr, tem que lidar com as selvas de sua consciência, labiríntica, imprevisível e perigosa. A cena em que o personagem de Dafoe entra em uma espécie de porão e encontra documentos de horror, sobre a violência histórica praticada contra a mulher, colecionados por sua esposa, parece representar isso: é como se lhe fosse dado adentrar, realmente, o terreno mais sombrio da mente de quem ele, psiquiatra, pretendia ajudar. Ali ele encontra um "arquivo" ancestral da maldade, que pode explicar os fatos estranhos que tem testemunhado. A metáfora usada aqui possibilita múltiplas leituras, mas pensar os arquivos físicos (fotos, reportagens, textos), encontrados no porão, como alusão aos próprios "arquivos" da mente, isto é, um legado da história humana  perpetrada no devir para acompanhar a experiência individual, é uma das mais interessantes.
 
O Anticristo de Trier é a natureza. Não se trata de puro ateísmo, isso seria muito simples, a mensagem é mais profunda: trata-se da natureza como o grande anticristo, e da vida como um todo, por seguir adiante e mostrar-se soberana. Por mostrar-se alheia e independente de qualquer fé e de qualquer teoria; por ser indiferente e desconectada de tudo que nele (Cristo) se prega; por seguir seu “não-rumo” seu ”não-sentido” à vontade, tranquila e inabalável, e sobretudo pela “impiedade” com que acontece, pela ausência de qualquer valor de solidariedade ou compaixão, não por ser má – isso é importante – apenas por não ser... nada. Nada do que fabulamos: nada de racional ou inteligível, nada de justo ou ordenado, nada de humano. Nós somos natureza, não estamos fora dela, somos parte dela - em toda sua frieza e indiferença. Nesse ambiente somos racionalidade e animalidade, somos contradição, somos caos... e assim não seria ousado pensar que somos nós o próprio anticristo. Eis a mensagem de Trier: o anticristo é a natureza e a natureza somos nós.

A cena final (veja o epílogo aqui) deixa claro o que Trier quis comunicar. Sua simbologia é simples e precisa: o personagem de Dafoe andando sem rumo pela mata, alimentando-se dos frutos  que encontrava e (re)vendo a sua frente os animais cuja morte ele presenciou é o que nos iguala (os humanos) aos animais -  padecendo em seu próprio ambiente, arranjando-se como pode, sem ninguém a recorrer. No fundo somos todos uma coisa só, uns sobreviventes, uns desamparados (e há também grande mérito nisso).

Pouco antes dessa cena, o corpo queimado que torna-se vários, reforça nossa impressão de unidade. Mas para além disso, o momento em que as várias mulheres reaparecem (as que povoariam a mente de Gainsburg, chamemos assim, no papel de arquétipos), aquelas que morreram gratuitamente ao longo da história, remetendo-nos aos arquivos terríveis encontrados pelo marido (seja no porão ou na mente de sua esposa) também é enigmático. Elas caminham sem rosto  sobre a mesma selva em que ela própria, a personagem de Gainsburg, fora queimada, representando assim o "grupo" na história humana que agora  Gainsburg passa a integrar, o das mulheres mortas, de algum modo violentadas e assassinadas. Elas surgem como viessem buscar Gainsburg e levá-la para a história, das sem-rosto, sem-dignidade. Gainsburg, que pesquisava esse trajeto histórico do horror, ela própria tornara-se mais uma vítima, mais uma mulher sem rosto, indistinta, mais um ser humano ceifado pela indignidade, mostrando mais uma vez a indiferenciação típica da natureza. Por outro lado, as mulheres sem rosto parecem dizer que estão em tudo, que tudo está em tudo, caracterizando-nos, desse modo, como "momentos" (tão ínfimos e tão importantes) da natureza. Da fria natureza. E Trier coloca isso de forma tão brutal quanto inquestionável...
Mas há aí uma perspectiva a nosso favor: se "o caos reina", como nos contou a raposa, em toda sua brutalidade e soberania, e ainda assim passamos ilesos, sobrevivendo por algumas décadas,  então já não somos qualquer coisa...