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domingo, 1 de dezembro de 2013

LOLITA – um romance incômodo de Vladimir Nabokov



 
 
O polêmico Lolita, de Vladimir Nabokov, é publicado em inglês, no ano de 1955. Considerado escandaloso, foi rejeitado por diversas editoras até ser finalmente publicado, não obstante, foi o mais importante romance escrito pelo autor.
 
A história é narrada em primeira pessoa, pelo próprio protagonista, o professor de literatura francesa Humbert Humbert, que se apaixona por sua enteada de doze anos, Dolores Haze, a quem apelida, secretamente, de Lolita, e que será sua própria ruína. O professor, que se encontra na idade de 37 anos, define-se a si próprio, já no início da trama, como um pervertido intratável, mas não sem investir em uma justificativa: um romance traumático vivido justamente em sua pré-adolescência teria sido a causa de seus “desvios” amorosos.
 
A morte súbita de sua então namorada, de idade e aspectos similares aos de Lolita, lhe teria deixado marcas profundas na adolescência, que lhe renderam direcionamentos pouco ortodoxos no curso de sua vida, custando-lhe, ao final, sua própria liberdade.
 
A obra, que posteriormente ganhou duas adaptações para o cinema, revela as habilidades do autor, com suas múltiplas qualidades literárias além de uma estrutura bastante original: o autor explora uma mistura de estilos cinematográficos que se inicia num estilo tipicamente europeu, com a exposição de questões psíquicas e eróticas; tornando-se depois um drama, quando o professor vai morar em New Hampshire, uma cidade periférica sem muito atrativo - até se ver arrebatado pela pequena Dolores; posteriormente a obra vai adquirindo aspectos de um road movie, quando o protagonista, em uma longa viagem de carro pelos Estados Unidos, dá início ao romance proibido, momento esse em que ganha espaço, também, o enigma de um perseguidor misterioso e; termina com uma espécie de drama policial, num estilo de film noir.

A própria situação do protagonista, enquanto narra sua história, já consiste em um poderoso recurso literário, bastante original, de que o autor se serve: Humbert está em corte, sendo julgado e é nesse momento em que toda a trama se desenvolve: no narrar de suas memórias; o julgamento exerce o papel de uma cena suporte em que o protagonista, que é o réu, deve narrar os fatos, criminosos, aos jurados, encontrando oportunidade de rememorar, não sem um misto de êxtase e culpa, os capítulos que ele mesmo considera os mais sublimes de sua vida, como indicam as seguintes passagens:
 
O horror atroz, incrível, insuportável e provavelmente eterno que ora sinto, era apenas uma pequena mancha preta no azul de minha felicidade” 
 
Estou tentando descrever essas coisas não para revivê-las na infinita miséria que é hoje minha vida, mas para separar a dose de inferno e a dose de céu que existem naquele mundo estranho, terrível, enlouquecedor, que é o amor por uma ninfeta. A bestialidade e a beleza se encontram num determinado ponto – e é essa fronteira que eu desejo fixar, mas sinto que meu esforço é totalmente vão”.

Ironicamente, o réu tende a conquistar certa simpatia do leitor exatamente por não tentá-lo convencer. Sem nenhuma expectativa de ser compreendido, ele explica o mundo próprio, de leis próprias e indiferente, que era a paixão vertiginosa que ele nutria por Lolita: “...insisto em provar que não sou, nem nunca fui, e não poderia ser jamais, um crápula brutal. As pacíficas e sonhadoras regiões pelas quais rastejei são o patrimônio de poetas e não o valhacouto de criminosos”. Abrigando-se sob as asas dos poetas, com a “verdade” estranha e, ao mesmo tempo, popular, de que o amor está numa dimensão à parte (embora, no seu caso, isso se mostre bastante discutível), Nabokov faz com que o leitor se deixe seduzir, lentamente, pela subjetividade do réu.

O incômodo...

O arremate fundamental do autor é nos apresentar um réu convicto de ter sido, não o sedutor, mas o seduzido. Isso nos traz um conflito, dos mais perturbadores: “...às seis ela estava acordada e por volta das seis e quinze éramos tecnicamente amantes. Senhores do juri, vou contar-lhes algo muito estranho: foi ela quem me seduziu”.

O amor que Humbert nos confessa nos confunde, trazendo momentos que se mesclam de um total repúdio e uma estranha simpatia, que chega a nos causar culpa; é com uma incômoda surpresa que nos flagramos simpáticos à paixão nociva de Humbert, dado o seu poder de nos convencer a respeito da legitimidade, não de suas ações, mas de seus sentimentos, a partir dos quais, os desdobramentos, esses sim serão sempre passíveis de julgamento. Não obstante, Humbert nos coloca ainda mais um conflito de consciência, ao informar que a pequena “ninfeta”, como ele mesmo gosta de chamá-la, tomara as iniciativas, fatais, conforme a última passagem citada.
 
O autor nos ganha pelas curvas da sensibilidade; ainda que se trate de um crime atroz, ele consegue colocar a paixão num patamar mais elevado do que propriamente o crime que ela representou. E deixemos claro: para o réu, o fato é lido como um crime pelas leis, mas não por Lolita. Trata-se de um trabalho admirável, o de nos revelar a força da subjetividade exposta, fazendo-nos pensar sobre o alcance das leis privadas, que residem em cada história particular.
 
As passagens de Lolita nos deixam nas mãos esse problema: um conflito no que tange a inevitabilidade das coisas, o arrebatamento amoroso e sua fatalidade inegáveis. Nos força a acompanhar, mesmo com aversão, toda a ambiguidade do caso apresentado: o encantamento e a sordidez de uma paixão tão ultrajante quanto legítima – pondo-nos a prova, ao colocar, com suas linhas despudoradas, mas sempre bem organizadas e lúcidas, a seguinte questão: afinal, o que é legítimo nessa dimensão?

O autor parece insistir nesse recurso, se assim podemos dizer: a fatalidade que representa sua ruína é também seu álibi e sua justificativa, se puder haver uma. Essa é a potência do romance, o poder de nos mergulhar numa profusão de sentimentos contraditórios, caóticos, constrangedores e ao mesmo tempo fascinantes, instigantes, absolutamente apaixonantes.
 
O problema no romance que estamos chamando de incômodo, que representa, também, a genialidade do autor, é que ele nos coloca, com sua narrativa convincente, o amor acima de todas as coisas. Fazendo com que algo que se mostra tão monstruoso, pareça, ao mesmo tempo, ligeiramente doce e até compreensível. É neste ponto que uma terrível confusão de sentimentos parece acometer o leitor e o romance se confirmar dos mais incômodos, mas não menos cativante.
 
O gênio do autor fica ainda mais evidente ao conferirmos sua obra prima em uma outra linguagem artística. Em 1962 Lolita ganha sua primeira versão cinematográfica, dirigida por Stanley Kubrick; posteriormente, em 1997, Adrian Lyne dirige uma segunda filmagem, que difere substancialmente da primeira. Restringindo-nos à versão mais recente, de Lyne, tanto a pequena Lolita (Dominique Swain), quanto o professor Humbert, (Jeremy Irons), apresentam grandes interpretações, contudo, o contraste dessas duas linguagens nos leva, inevitavelmente, a reconhecer o absoluto talento literário de Nabokov.
 
A força e o vigor de sua obra residem precisamente no manuseio de suas palavras. A delicadeza e a despretensão das palavras de Humbert (escolhidas, com todo o esmero, por Nabokov) é precisamente aquilo que nos agarra e nos absorve com toda a voracidade que as palavras podem esconder. As cenas da versão cinematográfica também nos comovem e nos levam a modos de catarse, todavia, a ausência de palavras nos revelam o valor das mesmas: é surpreendente constatar como a substituição das palavras - que no caso de Nabokov representa toda a força poética do romance - pelas cenas cinematográficas, diminui significativamente a potência e o apelo da obra.

O poder das palavras, em se tratando de Nabokov, sobrepuja, em muito, o poder da imagem. As palavras nos confrontam, se riem do leitor desesperado; a imagem, por sua vez, tem qualquer coisa de “generosa”, limitando-se a apenas nos ventilar as implicações de um tema, sem nos encaminhar, à força, como faz impiedosamente o recurso literário, a questões nucleares da experiência humana.
 
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J. Irons e D. Swain na direção de Adrien Lyne, 1997.
A despeito de toda a passionalidade e energia que irradiam também a obra filmada, as passagens do livro nos conduz, de uma maneira diferente, a cantos mais sombrios de nossa interioridade, revisitando questões morais muito espinhosas da oposição “moral versus natureza”, uma vez que o autor decreta o amor como o elemento preponderante, sobre todas as coisas, o sem lei, o “perdoado”. Chegamos a lembrar das passagens em que Nietzsche afirma que “aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal”. Isso fica claro na passagem em que ele diz: "Tudo agora estava pronto, os nervos do prazer inteiramente expostos...Estava acima das amarguras do ridículo, fora do alcance de qualquer castigo...”. Ainda no terreno de Nietzsche, é como se Humbert, tivesse encarnado a figura do “Super-homem”, tão aconselhada pelo filósofo obscuro: aquele que se preocupa apenas em se superar, indiferente às convenções (precisamente onde se situam as questões morais), voltado sempre para sua “vontade de potência”.
 
São questões filosóficas que muitas vezes deixamos engavetadas, até nos depararmos com um romance como o de Nabokov. Parece razoável afirmarmos que a boa literatura deve contemplar, entre outras coisas, esse poder, de nos encaminhar às questões mais inéditas, mais esquecidas ou mesmo, por vezes, mais encobertas, proibidas, perigosas, numa palavra: incômodas, mas, no caso da arte, sem deixar de ser sublime. Nabokov o faz com excelência, tornando sua Lolita um monumento da literatura.
 
***

Vladimir Nabokov nasceu em 1900 na cidade russa de São Petersburgo. De família nobre, cresceu em um ambiente trilíngue, falando russo, francês e inglês. Em 1919, devido à instabilidade decorrente da revolução bolchevique, o autor e sua família abandonam a então União Soviética e mudam-se para a Europa Ocidental, inicialmente Inglaterra, onde o escritor se forma, em Cambridge, e se licencia em literatura russa e francesa. Em Berlim, inicia sua produção literária e intenso trabalho como tradutor. Em 1940, fugindo dos horrores do nazismo, vai para os Estados Unidos, onde lecionará língua e literatura russa, em diversas universidades. Nas décadas seguintes publicará mais de vinte obras, entre romances e contos e, em 1977, aos 78 anos, morre na Suíça.

(* No último post selecionei as passagens mais tocantes que encontrei na obra:)
http://conversamolle.blogspot.com.br/2013/04/trechos-sublimes-de-um-classico.html
 


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