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segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O expressionismo alemão e a "Neue Sachlichkeit"



Female Artist, 1910 – E. L. Kirchner
(101 x 76)
Brücke-Museum, Berlim, Alemanha.



Para compreender as motivações do expressionismo alemão, que se deu na Alemanha no início do século XX, importa abordar o contexto histórico em que ele está enredado e, portanto, do qual ele se origina.

A ampliação das conquistas técnicas e o progresso industrial do século anterior desempenham papel importante na produção artística desse período. A diferença crescente entre a burguesia e o proletariado, que se fazia explícita no dia a dia, marcavam forte presença naquele início de século, na Europa. A organização de um capitalismo abrangente incita o surgimento dos primeiros movimentos sindicais e ganham espaço profundas conturbações políticas. Com a primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Revolução Russa, que serão seguidos de uma segunda Guerra Mundial, os artistas que serão analisados, da chamada “Nova Objetividade”, um segmento do expressionismo alemão, se encontram no período do entre guerras, marcado por profunda insegurança, melancolia, angústia e, sobretudo, terror.

A arte desse tempo floresce, pois, em solo obscuro, permeado, inicialmente, pelas cenas de miséria e o pressentimento de uma catástrofe por vir e, após 1914, pelo impacto causado pelo genocídio gratuito da Primeira Guerra, pelas memórias de violência e pela própria derrota, cujo ônus é absorvido, novamente, pela sociedade. Trata-se, pois, de um contexto de completa consternação, de exasperação e desconfiança na humanidade, deste modo, podemos afirmar que “os movimentos e tendências artísticas como o Expressionismo e outros do século XX expressam, de um ou outro modo, a perplexidade do homem contemporâneo”.  (PROENÇA, 2001, p. 151).

Esse estado de coisas não poderia deixar de refletir, também, um estado de espírito, muito complexo e específico, que se reproduzirá na arte de então.  Desse modo, e tendo em vista que o expressionismo era a manifestação do que se passava “no interior” do artista; um movimento, portanto, de dentro para fora, não nos deve surpreender que a arte expressionista, em muitos momentos, tenha recebido da crítica, e mesmo de um público amador, o signo de uma “arte feia”.
  


E. L. Kirchner - Street in Dresden (1908)



 A Vanguarda Expressionista - Die Brücke  e  Der Blaue Reiter

O Expressionismo Alemão surgiu como um movimento que contrariava o pensamento filosófico preponderante na época, o positivismo. O avanço da técnica, o desenvolvimento das tecnologias, assim como a felicidade baseada na ordem e no progresso, ia contra a perspectiva expressionista, que procurava desmascarar esse ideal que era tido como burguês. Esse anti-positivismo do expressionismo o faz necessariamente anti-impressionista, negando, pois, o caráter de superficialidade, felicidade e, de certo modo, uma espécie de hedonismo, sugerido por alguns dos impressionistas.

E. L. Kirchner - Cinco mulheres na rua (1913)
Essa reação ocorre, também, devido à preocupação exclusiva dos impressionistas com as sensações de luz e cor, deixando em segundo plano os sentimentos humanos, sobretudo na sociedade moderna. O expressionismo envereda-se, pois, pelo caminho mais interior, ou seja, num viés mais emocional, buscando atingir o que seria “a alma” das coisas, a sua essência - não aquilo que se vê, mas o que se sente - de modo que, o que é representado na tela deve ser o resultado das emoções do observador/pintor.

O grupo expressionista Die Brücke (A Ponte) tem origem em Dresden, Alemanha, entre 1904 e 1905 e é composto inicialmente por E. L. Kirchner, E. Heckel, K. Schmidt-Rottluff e F. Bleyl, sendo mais tarde integrado por O. Müller e E. Nolde.   O nome “A Ponte” tem forte inspiração na obra de Nietzsche Assim falava Zaratustra, que descreve o “fazer de uma ponte” para o alcance de novos ideais; além disso, inspira-se na própria crítica (nietzscheana) contundente à burguesia e seus valores ilusórios.


A figura humana é o elemento em destaque, em especial o tema do nu e ambientes naturais (como as cenas de banhos), embora também a cidade, local onde podem encontrar dinâmica e intensidade, surja em algumas cenas. O recurso estético é, intencionalmente, reduzido ao essencial e às formas simples, sendo o objetivo do grupo revigorar a arte com mais liberdade, autenticidade e, sobretudo, devolvendo a expressão e os gestos genuinamente humanos, entre eles, a emoção, o tormento, a melancolia.

Ao lado de Die Brücke, que se dissolve no ano de 1913, surge em Munique o grupo Der Blaue Reiter, ou, O cavaleiro azul (1911-1914), liderada por V. Kandinsky, que inicia sua pesquisa num sentido não-figurativo e numa linha mais mística e espiritual. Com influência dos franceses Cézanne e Matisse, que vão incutir na obra do grupo o gosto pelas cores fortes e pelo traçado violento e emocional, o Blaue Reiter também rejeita o naturalismo tradicional do impressionismo e busca uma essência secreta ou o lado espiritual das coisas em sua forma misteriosa.

Além de V. Kandinsky, também compõem o grupo artistas como: Franz Marc, Paul Klee,, A. Macke, A. von Jawlensky, entre outros. Esses artistas pretendiam ver a natureza e o homem a partir das experiências, sensações e sentimentos individuais, para a construção de uma arte pessoal, contudo, com um sentido que fosse universal.
Conforme o crítico e historiador da arte G. C. Argan comenta, a tendência “anti-impressionista” desses grupos expressionistas significava, essencialmente, superar o caráter sensorial daquela pintura: “A impressão é um movimento do exterior para o interior: é a realidade (objeto) que se imprime na consciência (sujeito). A expressão é o movimento contrário, do interior para o exterior: é o sujeito que, por si, imprime o objeto” (2013, p. 227). Em outras palavras, se o impressionismo manifesta uma atitude sensitiva, o expressionismo privilegia uma atitude volitiva. Ambos são movimentos realistas, porém, enquanto um age no plano do conhecimento (captando a realidade), o outro age no plano da ação (criando a realidade). (Idem).

Inspirados nos trabalhos de artistas como Van Gogh e Edward Munch, esses pintores dedicaram-se a manifestar em suas obras seu “espírito”, as inquietações e perturbações que caracterizavam, psicologicamente, o homem do início do século XX. O pensamento de F. Nietzsche (1844 – 1900), com sua filosofia exuberante, seu culto aos instintos, à vida autêntica e à liberdade, como mencionamos, também contribuíram para o espírito do movimento em questão.

Os contornos sinuosos privilegiam antes as emoções que se queria representar do que as regras tradicionais, de equilíbrio de composição, regularidade da forma e harmonia das cores. Esses artistas operavam uma tentativa contínua de se integrar a figura na paisagem, além da tendência de geometrização das formas (influenciados pelo cubismo de Cézanne, tão em voga à partir de 1906) e a construção de perfis agudos.

Cavalo Azul, 1911 – F. Marc (112,5 x 84,5)
Städtische Galerie im Lenbachhaus, Munique
O emprego arbitrário da cor e a deformação sistemática da realidade, importa citar, não só revelam os ares de pessimismo subjacentes à arte que se produzia, sobretudo com o início da Primeira Guerra Mundial (como visto, temática fértil para o Expressionismo), como também pretendiam manifestar os mistérios de um mundo interior e secreto das coisas, como se essas pudessem “gritar” e se revelar à partir das cores ou das deformações.

Ainda com relação à deformação ou distorção expressionista dos objetos, importa saber que não se trata de deformação ótica, mas uma deformação subjetiva:  a intencionalidade com que se trata uma realidade é o que se pretende manifestar. A poética do expressionismo alemão é tratada como uma poética do “feio”, todavia, pode-se pensar, neste caso, o feio como um belo decaído, é para isso que se quer chamar atenção na arte expressionista: um belo que se encontra em estado degradado, tratando-se da condição humana testemunhada pelos artistas em questão.

Com a finalidade de superar o ecletismo das correntes modernistas, concentrando-se no problema específico da função da arte, será construída uma oposição entre uma arte engajada, focada na situação histórica e, uma “arte de evasão”, alheia à história (Argan, 227). Somente a primeira (tendência do expressionismo) explicita os problemas da sociedade, exercendo a comunicação, enquanto a segunda (tendência simbolista) o exclui, apresentando-se hermética e acessível para poucos. “O importante é justamente essa identidade entre expressão e comunicação: a expressão não é uma misteriosa mensagem que o artista anuncia profeticamente ao mundo, mas sim comunicação, de um homem a outro” (Argan, p. 238).

Nessa tendência, os expressionistas alemães também estão ligados aos fatos da vida cotidiana (característica herdada dos realistas), mas ao contrário dos impressionistas, cujo contexto era a joie de vivre de uma Bélle Epoque, retratam um tempo de obscuridades, de desigualdade social e indigência humana - mazelas da experiência humana. Ao lado de Die Brücke e Der Blauer Reiter, a Neue Sachlichkeit será o grupo que levará esse ideal a uma radicalização maior.


      A Neue Sachlichkeit

Quase se opondo a essa orientação do Expressionismo, que se mostra centrada mais na individualidade ou na espiritualidade do que propriamente na esfera social, surge após o término da Primeira Guerra, no início da década de 1920, ainda em um viés expressionista, a Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade). Tal denominação deve-se ao historiador G.F. Hartlaub, diretor da Kunsthalle de Mannheim, que em 1923 promove uma exposição com obras dos artistas mais engajados em denunciar a situação social e, acima de tudo, de forma estritamente objetiva. Em carta enviada a colegas, divulgando a intenção dessa exposição, Hartlaub revela “O que aqui estamos mostrando distingue-se pelas — em si mesmas puramente externas — características da objetividade com a qual os artistas se expressam”. (Fer, p. 290)

A Nova Objetividade é marcada pelo desejo legítimo de apontar para uma mudança de sentido: se opondo ao Expressionismo e sua subjetividade, individualidade e tendência ao transcendente, propõe uma arte mais realista, objetiva e coletiva, de cunho puramente social. Embora deva ser compreendida como um desdobramento da voga expressionista após a Primeira Guerra Mundial, sobretudo do aspecto de crítica social que caracteriza boa parte do expressionismo alemão, a Nova Objetividade recusa as inclinações abstratas de A Ponte e o simbolismo de Cavaleiro Azul.

O lema fundamental dessa estética é o de que a arte não é designada apenas para retratar a ordem social constituída, mas também deve consistir em uma vontade de transformá-la, tratando-se de um dever social e uma tarefa a cumprir. Assim, o cenário angustiante, as paisagens urbanas depressivas e as expressões melancólicas, antes configuram um ato de denúncia e contestação de uma realidade desencaminhada, do que a simples retratação do feio.

A burguesia é, com frequência, denunciada como a responsável pelas desigualdades sociais, pelo fracasso de toda a iniciativa humana que deveria triunfar e fracassou, ela era apontada como responsável, como afirma Argan “por aquilo que, para Nietzsche, constituía a total negatividade da história” (2013, p. 241).
Constituída por iniciativa de Max Pechstein e Cesar Klein, que vão promover exposições ao longo dos anos 20, o grupo quer dedicar-se às imagens reais da sociedade alemã do pós guerra, sem a “cobertura” idealizante e mistificadora das correntes precedentes, em outras palavras: defendem uma visão mais objetiva e menos sentimentalista. Ao lado de M. Beckmann, Otto Dix e George Grosz são os principais representantes dessa corrente artística, que empregará as energias criadoras em uma tentativa de reconstruir a vida nacional, buscando estreita colaboração da arte com a sociedade. O grupo chega ao fim com a queda da República de Weimar, quando A. Hitler chega ao poder em 1933.


Prager Strasse, 1920 – Otto Dix


A produção de Otto Dix e George Grosz

Otto Dix foi um pintor lúcido e impiedoso das misérias, das contradições sociais, de toda a estupidez da guerra e seus desdobramentos; sua pintura revelava “um ceticismo generalizado, cuja concepção de verdade devia muito a Nietzsche” (Argan, p. 246).  George Grosz, por sua vez, tinha um compromisso explícito com o comunismo; artista político, desenhista e caricaturista, é o desmistificador das classes dirigentes da Alemanha: militares e capitalistas são denunciados, com muito sarcasmo, como os responsáveis pela guerra, pela derrota e pelas consequências, amargadas pelo povo alemão.  Em 1928 Grosz escrevia: “despertar para a luta de classes – este é o objetivo da arte, eu sirvo a este propósito” (idem).

Ambos os representantes desse movimento, Dix e Grosz, que lutaram na Primeira Guerra, concentram-se nos temas ligados à marginalização e à exploração social das grandes cidades; valendo-se de uma mescla de técnicas de vanguarda, como a colagem, a distorção, do próprio expressionismo e o dinamismo do futurismo, pintam os veteranos de guerra, muitas vezes mutilados, os trabalhadores, a burguesia e a prostituição.

Funcionário do Estado, para as pensões dos
mutilados de guerra, 1921 – George Grosz
De modo geral, o que se queria é, para além de um naturalismo acadêmico, representar, de forma realista, uma verdade subjacente e para ela chamar atenção, em oposição a superficialidade da aparência. Obras como “Transeuntes e Reichswehr” de Rudolf Schlichter (1925), também integrante da Neue Sachlichkeit, retratam, criticamente, a realidade alemã do entre guerras:  edifícios ao fundo, um grupo de figuras femininas, outro de figuras masculinas (soldados), um veículo a motor, as vitrines, todos os elementos indicam a alienação, a mercantilização e a sexualidade, que recebem suporte econômico e militar, trata-se do novo estado de coisas, trazido pelos ventos do capitalismo. 

O que garantia a coesão entre os dois artistas era o esforço, para além das técnicas de representação, em construir um efeito social, que consistia em divulgar, de certa forma, uma denúncia com alto poder político e de instrução. Essa tendência recebe o cunho de “ala Verista” da Neue Sachlichkeit, em oposição ao chamado “Realismo Mágico” da mesma corrente, porém voltado mais para uma arte simbólica. O Verismo rejeita o simbolismo e contempla uma inclinação esquerdista, que, valendo-se de ironia e um sarcasmo bastante acentuado, promove um ataque explícito à burguesia e toda a elite de então, como bem ilustra a obra de O. Dix, Os jogadores.


Os jogadores, 1920Otto Dix


Inicialmente, os veristas tinham uma concepção de arte personificada, em oposição a arte neutra (ou mística) que se vinha fazendo anteriormente. Essa concepção ficou conhecida como Tendenzkunst (arte tendenciosa), arte que apontava para necessidades específicas e objetivas, em geral as necessidades coletivas.

O ponto fundamental da Tendenzkunst era a afirmação de que a arte não poderia, absolutamente, ser neutra ou desinteressada, não está, de maneira nenhuma, acima das questões materiais da sociedade. Para eles, toda obra é parte de uma tendência e “a arte que não é abertamente comprometida com a mudança, necessariamente apoia o status quo” (Fer, p. 294). Trata-se de uma teoria, como já dito, de extrema esquerda, que, de certo modo, corre o risco de reduzir a arte ao ramo de política e suprime de si mesma a possibilidade de independência. Isso não foi sustentado por muito tempo, mas a cultura de “arte como uma arma” teve grande força em vários momentos deste período e construiu em seu entorno uma noção de “cultura proletária”. (Idem).


                 A freira, 1914 – Otto Dix
A diferença entre os trabalhos da vanguarda expressionista e a Neue Sachlichkeit não é qualitativo, há uma relativa ortodoxia técnica em uma e um relativo radicalismo técnico na outra, não significando superioridade em nenhum dos casos, entretanto, o crítico de arte Briony Fer nos chama a atenção para o fato de que a primeira recebe destaque, enquanto a segunda é frequentemente negligenciada na história da arte moderna (Fer, p. 289), embora ambas, feia ou não, como se diz, tenham desempenhado importante papel na retratação de uma época e também na conscientização de seus contemporâneos -  indivíduos de uma triste sociedade do chamado entre-guerras – como é o caso de Trincheiras e A Freira, de O. Dix.




Trincheiras, 1917Otto Dix









Bibliografia

ARGAN, G.C. Arte Moderna. São Paulo, Companhia Das Letras, 2013.

FER, B., BATCHELOR, D., WOOD, P. Realismo, Racionalismo, Surrealismo – a Arte no entre-guerras. São Paulo, Cosac & Naify, 1998.

PROENÇA, G. História da Arte. São Paulo, Ed. Àtica, 2001. 


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