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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A crítica de C. Baudelaire e o nascimento da Arte Moderna





Em sua obra Escritos sobre Arte, C. Baudelaire declara, com suas críticas, o que serão as premissas de uma arte moderna, uma arte do presente. Com aguçada visão dos signos e uma valorização inovadora da vida trivial, o poeta e crítico tecerá o mote da estética modernista. Crítico dos assuntos centrados em conteúdos históricos, religiosos e clássicos (greco-romanos), C. Baudelaire valoriza o tema do presente, como “história em ação”. Em Escritos sobre Arte, o autor destaca o caricaturista como figura importante, por ter uma natureza mista: observador, flâneur, filósofo, mas sobretudo por sua liberdade de execução. Observando o caráter comunicativo dos desenhos, ilustrações e caricaturas, Baudelaire ressalta a capacidade que tem a caricatura de atingir a massa de “maneira imediata” e valoriza o humor como uma forma importante de “relação crítica entre o público e a obra” (obra como possibilitadora de identidade crítica do observador). Isso já denota de que modo o autor busca subverter o conceito clássico de beleza, presente desde os primórdios da história da arte, para a valorização do tempo presente.

Em seu primeiro capítulo, Da Essência do Riso e, de um modo geral, do cômico nas artes plásticas, o poeta tece sua análise, acerca da caricatura, tendo como “pano de fundo” as especificidades do humor. Ele anuncia ao início seu intuito: desenvolver um artigo (a respeito da caricatura) “ao mesmo tempo de filósofo e de artista”. O pensamento sobre a caricatura é, para o autor, digno de nota por mostrar-se uma “história de fatos”, “uma imensa galeria anedótica”. Assim, afirma Baudelaire, ela merece, como arte, “tomar lugar nos arquivos nacionais” e nos “registros biográficos do pensamento humano” (1991: 26); a caricatura contém um elemento “misterioso, durável e eterno”, representando ao homem “sua própria feiura moral e física!” (idem). E à partir da observação sobre as qualidades e o valor da caricatura, C. Baudelaire desenvolve uma reflexão a respeito do riso, ironizando, sobretudo, a má concepção que se faz do riso no pensamento cristão. Referindo-se à máxima “O sábio só ri ao tremer”, ele diz que “o sábio teme o riso assim como teme os espetáculos mundanos, a concupiscência” (1991: 28), o riso implica, assim, certa “ignorância e fraqueza”. O riso e as lágrimas seriam “no paraíso”, critica o autor, “os filhos da aflição”, mas é com as lágrimas, pondera o autor, que o homem “lava” suas aflições, assim como com o riso ele “suaviza seu coração”. (1991: 29). O autor relembra que o riso, dizem, vem da ideia de superioridade - “uma perfeita ideia satânica! orgulho e aberração!”; revela-se numa espécie de “convulsão nervosa, um espasmo involuntário […] causado pela desgraça alheia” (1991: 32), de modo que há, no fundo do pensamento daquele que ri um “certo orgulho inconsciente”. Assim, teoriza o poeta, o riso é tão “satânico” quanto “profundamente humano”, é a “consequência da ideia de superioridade”. E como é profundamente humano, atenta, é “essencialmente contraditório”, quer dizer, ao mesmo tempo sinal de uma “grandeza infinita e de uma miséria infinita”. É desse choque, diz o autor, que se libera o riso. (1991: 34).

Mas o que quer C. Baudelaire, com o elogio do riso, se não “autorizar” o desprendimento das convenções e sua seriedade? Essa é a ideia que não se deve perder de vista ao tentar compreender as motivações deste crítico. A admiração que ele declara ter pela obra do pintor espanhol Francisco de Goya (1746-1828), ou pelos desvarios pintados por Brueghel, O Velho (c. 1525-1569), por exemplo, já consistia em uma “semente” que floresceria na mentalidade da arte moderna.

No capítulo em questão, embora o autor faça a crítica da obra de cinco artistas que se inserem em diferentes períodos e nações, ganham destaque especial os dois caricaturistas “estrangeiros” supracitados; o primeiro por ter introduzido um elemento “muito raro” no cômico, diz Baudelaire. F. Goya teria realizado o cômico “feroz”, sendo que o aspecto geral sob o qual vê as coisas é, sobretudo, o “fantástico” (1991: 58). Baudelaire refere-se à série “Os Caprichos”, como uma obra valiosa de Goya, onde o artista teria unido “graça, jovialidade e espírito moderno”. Aprecia-o pelo “amor ao inapreensível”, pelos “contrastes violentos” e pelas fisionomias humanas “estranhamente animalizadas” pelas circunstâncias (1991: 59). O autor chama atenção para as contorções, para os “rostos bestiais” e as “caretas diabólicas penetradas de humanidade” - uma arte que se mostrava ao mesmo tempo “transcendente e natural” (1991: 61), como podemos observar nas imagens abaixo:










        “Os duendezinhos” – (Capricho 40) “Você que não pode” – (Capricho 42)


Nas caricaturas de Goya, fica evidente uma crítica ao estado atual das coisas, a primeira fazendo uma alusão ao clero e sua mão grande; a segunda às camadas menos privilegiadas, levando nas costas, literalmente, o peso da “ignorância” (na figura de um burro) dos exploradores. Esse tom, de realismo e de questões presentes, embora encobertos sob a forma da caricatura e do “fantástico”, é o que teria suscitado a admiração de Baudelaire.

Em Brueghel, O Velho, Baudelaire diz encontrar, em suas alegorias, quase indecifráveis, “o mistério, o diabólico e o divertido, a loucura e a alucinação”. Ele se admira: “como uma inteligência humana pôde conter tantas diabruras e maravilhas, engendrar e descrever tantos absurdos assustadores?”

Sua obra seria uma “prova”, segundo o autor, “do imenso poder dos contágios e do envenenamento pela atmosfera moral” (1991: 67). Aqui o poeta reforça mais uma vez o elogio do tempo presente, sejam os “envenenamentos”, sejam as “inspirações”, como foi em Constantin Guys (comentado a seguir), a tônica, segundo Baudelaire, deve ser o que se está vivendo, a valorização do presente, não mais do passado. No campo da caricatura, é a ousadia dos artistas o que fascina Baudelaire; a ousadia de se fazer uma arte que não se submeta, necessariamente, a premissas acadêmicas, a convenções arbitrárias. Essa é a ideia libertária, basilar para a arte moderna, que o crítico disseminará em seu tempo.

















P. Bruegel. O Triunfo da morte, 1562. Museu do Prado, Madrid


Artista ainda mais elogiado por Baudelaire é o romântico E. Delacroix (1798-1863). Em uma Carta enviada ao redator de L'Opinion Nationale, o poeta constrói uma crítica positiva a respeito de suas obras que, para Baudelaire, teriam representado, com perfeição, “um dos diagnósticos do estado espiritual” daquele século XIX. Teria sido o mais sugestivo dos pintores e o que mais fez pensar, segundo o autor, ao exprimir, o “gesto do homem” (com o contorno) e a “atmosfera do drama humano” (com a cor). Sua obra teria exprimido, assim, o próprio “estado da alma do criador”. Eis o que o Baudelaire valoriza.

Somado a isso, a imaginação do artista teria sido seu dom mais precioso, além da habilidade rápida de representar o que havia imaginado. Para Baudelaire, aqueles que não têm imaginação apenas copiam seu “dicionário” (entendendo por dicionário o universo, como um “depósito de imagens e sinais aos quais a imaginação dará um lugar e um valor relativo”), o que resulta em um “vício banal”; nesse sentido, o autor aponta a pintura dita de gênero e a paisagem como inspiração aos “espíritos preguiçosos e dificilmente excitáveis”. Ao contrário, o pintor que “obedece à imaginação”, diz o poeta, procura em seu [próprio] “dicionário” os elementos de que precisa e “ilumina as coisas” com seu próprio espírito (1991: 94).






A liberdade guiando o povo, 1830. Museu do Louvre, Paris.


O segundo momento da crítica baudelairiana que exercerá papel importante na constituição da chamada Modernidade (termo cunhado pelo próprio Baudelaire), é a obra O Pintor da Vida Moderna. A ideia central pode ser resumida no fato de que, para o crítico, nem tudo está em Rafael ou Racine e a necessidade de valorizar a “beleza particular, a beleza de circunstância e a pintura de costumes”, e mesmo os chamados “artistas menores” - não apenas os clássicos - nunca foi tão latente.

O Contexto é a Paris moderna, fluída, cercada pelas inovações tecnológicas e permeada pelas Reformas de Haussmann (1852-1870). Os recém-construídos Boulevards, são definidores de novas bases econômicas, sociais e estéticas: a iluminação das ruas possibilita a boemia, a vida nos cafés, nos teatros, nos cabarés. Há ainda outros estímulos profícuos nos tempos de Baudelaire: os anais da guerra, As pompas e solenidades, as figuras do militar, do dândi, da mulher, da cortesã, a maquiagem e a moda, os veículos, a figura do flâneur, representada pelo próprio Baudelaire, entre outros.

Na visão de Baudelaire, um tal cenário deveria bastar-se por si só. A modernidade que se testemunhava conteria elementos bastantes, sobre os quais poderiam nascer as obras, sem ter que recorrer a elementos do passado, elementos clássicos. A modernidade artística deveria ser regida, pois, pelos seus próprios elementos, isto é, pelo elogio ou pelo registro do transitório, do efêmero, do contingente. Essa imagem desembocará na ideia de que metade da arte seria composta disso - do efêmero – mas a outra metade do imutável, do eterno. O artista moderno deveria extrair uma coisa da outra: o eterno do transitório. (“Tirar da moda o que pode conter de poético no histórico”; “Extrair o eterno do transitório” ) (1997: 14).

Baudelaire inicia sua crítica referindo-se às obras que se vê nas exposições, cujas indumentárias e outros detalhes são os da Renascença ou da Idade Média, “por preguiça”. Critica, assim, os passadistas, que não se desprendem dos cenários tradicionais de outros séculos (paisagens, costumes, vestimentas, mobília). Deste modo, embora o poeta reconheça que o passado constitua um valor monumental, ele atenta que é preciso voltar os olhos para a pintura de costumes do presente, não somente pela beleza que ela pode ter, mas pela sua “qualidade essencial de presente” e ressalta: “o que me apraz encontrar (...) é a moral e a estética da época” (idem). Baudelaire comenta ainda a transitoriedade das coisas na vida ordinária (a “metamorfose incessante das coisas exteriores”) como um movimento que exige do artista um ritmo semelhante, que o acompanhe. Assim, o artista moderno tem o mérito de pintar não as coisas eternas e heróicas (como o clássico), mas por ser um poeta, aproximando-se do romancista ou do moralista; seria o “o pintor do circunstancial e de tudo que este sugere de eterno”.

Ele seria, portanto, o “homem do mundo, homem das multidões”. Para ilustrar o que pretende dizer, Baudelaire destaca o incógnito C.G (posteriormente revelado como Constantin Guys) como exemplo, como o artista “enamorado pela multidão”, cosmopolita, aquele que assina suas obras “com sua alma”, em oposição ao simples artista, que seria um “especialista, subordinado à sua palheta, como um servo à gleba”, em geral um “bruto”, um “simples artesão” (1997: 10). Baudealire elogia-o, sobretudo, por se impor a tarefa de “buscar e explicar a beleza na [própria] Modernidade” (1997: 23).

Baudelaire discorre ainda, em sua obra, sobre as características de um Dândi, ao classificar como tal o pintor C.G. (“aquele que tem a compreensão sutil de todo o mecanismo moral deste mundo”): o dândi seria “sincero sem ser ridículo”, um “puro moralista pitoresco”. Seu lugar é na multidão, é um flaneur, um observador apaixonado, vive no movimento, no fugidio e no infinito, “faz do mundo a sua família” e “frui por toda parte o fato de estar incógnito”; lamenta, ao acordar e ver a luz do dia, as coisas iluminadas que deixou de ver por causa de seu sono; admira “a beleza da vida nas capitais” (1997: 13). Assim, Baudelaire decreta: a “Pompa da vida” (“como ela se oferece nas capitais do mundo civilizado”) seria, pois, o tema favorito do artista moderno: “a vida elegante, a vida galante, os desejos profundos, o amor e o jogo, as festas […] elementos de felicidade e infortúnio” (1997: 17).




Deux grisettes et deux soldats. C. Guys

 
Há que se notar, no poeta, certa consciência de historicidade, da importância que ela guarda. A recomendação de se utilizar nas pinturas os costumes presentes, tal qual fizeram os artistas antigos, justifica-se, em Baudelaire, não simplesmente pela necessidade de se “compreender o caráter da beleza atual”, que ele tanto afirma, mas sobretudo pelo desejo de que a Modernidade seja um dia, como ele menciona, “digna de tornar-se Antiguidade” (1997: 18).

Nesse sentido, Baudelaire revela sensibilidade aguçada ao reconhecer que cada época tem seu valor; tem “seu olhar” e “seu gesto” particulares, e que seria um erro negligenciá-los em prol de se imitar, eternamente, os clássicos (1997: 15). É o que se destaca, segundo o autor, em C.G, cujas obras poderiam, dentro de alguns anos, ser “arquivos preciosos da vida civilizada”. Baudelaire encerra seu texto destacando C.G, como outros artistas que considera excelentes (Debucourt, Moreau, Devéria e outros) que, por terem pintado “somente o familiar e o belo” teriam se tornado, por consequência, “sérios historiadores”. CG teria buscado, como esses, “a beleza passageira e fugaz da vida presente”, que seria a própria Modernidade (1997: 24).

Para M. Berman, estudioso da Modernidade, Baudelaire teria determinado, com seus ensaios (Heroismo da Vida Moderna e O pintor da vida moderna), “a ordem do dia para um século inteiro de arte e pensamento” (1990: 129), e fez isso especialmente por ter compreendido um dos mais importantes “paradoxos da modernidade” ao dizer: “seus poetas se tornarão mais profunda e autenticamente poéticos quanto mais se tornarem homens comuns” (idem).

Com efeito, se observarmos a estética impressionista, que nasce ainda na década de 1860, última em que vive C. Baudelaire, notaremos fortemente a presença dos elementos tão recomendados pelo poeta, legitimando que sua crítica mostrou-se, de fato, uma espécie de “receituário”, se assim pudermos chamar, fundamental para a arte que nascia nos anos que sucediam os ensaios baudelairianos  (note-se como exemplo a pintura de Renoir, abaixo). As obras que ficaram efetivamente imprimiram na história, como queria Baudelaire, a marca da Modernidade; perpetraram no eterno, o registro do fugidio, do trivial e do circunstancial; conquistaram admiradores, seguidores e revolucionadores, sobretudo, abriram caminhos para a liberdade radical da arte moderna e também contemporânea.












 
 





Le Pont Neuf, (1872). P. August Renoir. National Gallery of art, Washington, USA









 






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