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segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

A Dimensão Estética, de H. Marcuse.








A arte protesta contra as relações sociais vigentes na medida em que as transcende. Nesta transcendência, rompe com a consciência dominante e revoluciona a experiência”. É desta forma que Herbert Marcuse (1898-1979) nos introduz ao tema desenvolvido em sua obra "A Dimensão Estética". Publicado em 1977, este ensaio afirma, em uma perspectiva pouco otimista da sociedade industrial – que é tão orientada para fins econômicos - o potencial da arte como resistência ao processo reificador e, portanto, como instrumento de libertação da ordem vigente. Por evocar uma realidade à parte (que é objeto de nosso estudo), a dimensão da arte subtrai-se ao chamado mundo administrado (1) - conceito caro aos frankfurtianos - onde se opera a manipulação de consciências, orientadas para a lógica mercantil, predominante na realidade contemporânea. Nela encontra-se a possibilidade de abrir uma nova dimensão da experiência, de forma a criar uma outra realidade, que possa comunicar verdades de outro modo incomunicáveis. O propósito deste trabalho será analisar de que maneira, na leitura de Marcuse, esse processo se realiza.

Para a compreensão da estética marcuseana, cumpre lembrar que o programa estético da escola de Frankfurt, a qual Marcuse integra, está orientado sobretudo para a libertação e emancipação, isto é, opõe-se radicalmente à ortodoxia do realismo socialista - proposta estética marxista -segundo a qual, apenas as obras que manifestem partidarismo político têm seu valor reconhecido.

Numa primeira aproximação, pode-se pensar a teoria estética de Marcuse como uma espécie de impugnação à ortodoxia da estética marxista; ainda que sem romper com o materialismo histórico (2). Analisando em detalhe, nota-se que a ortodoxia marxista considera que as obras de arte devem relacionar-se sempre com as relações de produção existentes, sendo sua qualidade e sua verdade condicionadas por esse critério: significa que a obra de arte deve representar, fundamentalmente, o mundo e os interesses de determinadas classes sociais, mais especificamente, a classe proletária. Marcuse, por sua vez, analisa a arte no contexto das relações sociais predominantes e também lhe reconhece função e potencial políticos, no entanto, ao contrário da visão marxista, que, a seu ver, reduz a arte a uma manifestação mecanicista, considera que o potencial político da arte reside “na própria arte”, isto é, “na forma estética em si” (Marcuse, 1981, p. 11), pois, assinala o filósofo, “em virtude de sua forma estética” a arte é “absolutamente autónoma perante as relações sociais existentes” (idem, p. 11), isso quer dizer que seu conteúdo possui força legítima, independendo, assim, dos critérios impostos pela estética marxista para assegurar seu valor e sua verdade. Em sua autonomia, a arte (já) contesta as relações sociais existentes, bem como as transcende; ela “subverte”, por si só, “a consciência dominante e a experiência ordinária” (idem, pp. 11-12), não sendo necessário, pois, assumir uma posição de classe, em detrimento do elemento subjetivo de sua construção. Desse modo, a teoria estética de Marcuse se afigura como uma proposta alternativa à estética marxista. Esta última é resumida pelo filósofo em seis pontos fundamentais em sua obra, o que nos convém citar na íntegra. Ele diz:

1. Existe uma relação definida entre a arte e a base material, entre a arte e a totalidade das relações de produção. Com a modificação das relações de produção, a própria arte transforma-se como parte da superestrutura, embora, tal como outras ideologias, possa ficar para trás ou antecipar a mudança social; 2. Há uma conexão definida entre arte e classe social. A única arte autêntica, verdadeira e progressista, é a arte de uma classe em ascensão, que exprime a tomada de consciência desta classe; 3. Consequentemente, o político e o estético, o conteúdo revolucionário e a qualidade artística tendem a coincidir; 4. O escritor tem a obrigação de articular e exprimir os interesses e as necessidades da classe em ascensão. (No capitalismo, esta seria o proletariado); 5. A classe declinante ou os seus representantes só podem produzir uma arte "decadente"; 6. O realismo (em vários sentidos) é considerado a forma de arte que corresponde mais convenientemente às relações sociais, constituindo assim a forma de arte "correta” (idem, p.14).

Marcuse problematiza a questão ao constatar que a interpretação economicista e mecanicista que faz a teoria estética marxista implica necessariamente em “uma noção normativa da base material como a verdadeira realidade e uma desvalorização política de forças não materiais, particularmente da consciência individual, do subconsciente e da sua função política” (idem, p.15). A questão central é: anular essa potência, de manifestação interior e subjetiva, implica em negligenciar, precisamente, o caráter subversivo da arte, sendo esta a razão pela qual Marcuse se propõe, na obra que ora se analisa, a realizar o “reexame crítico” (idem, p. 13) da estética marxista ortodoxa.

Na interpretação economicista do materialismo histórico, Marcuse observa consequências danosas para o mundo da subjetividade, das emoções e da imaginação. Constata que, ao ignorar a subjetividade dos indivíduos, a estética marxista incorre no mesmo erro que é objeto fundamental de sua crítica: a reificação do sujeito, isto é, acaba por endossar o sacrifício da subjetividade à serviço da objetividade:



A teoria marxista sucumbiu à própria reificação que expôs e combateu na sociedade como um todo. A subjetividade tornou-se um átomo da objetividade; mesmo na sua forma rebelde rendeu-se e tornou-se um órgão executivo. (idem, p.15).


Para o autor, ao impor uma consciência de classe como qualidade prevalecente na produção das obras de arte, a estética marxista acabou por realizar a privação da consciência de si, do reconhecimento e da livre manifestação da interioridade, minimizando, assim, “um importante pré-requisito da revolução, nomeadamente o fato de que a necessidade de mudança radical se deve basear na subjetividade dos próprios indivíduos, na sua inteligência e nas suas paixões, nos seus impulsos e nos seus objetivos” (idem, p. 15).

Chegado esse ponto, começamos a avistar de que forma Marcuse pretende embasar seu argumento de que a arte logra abrir uma “nova dimensão da experiência”, criando uma “outra realidade”, de modo que se possa ao menos vislumbrar seu potencial emancipatório.


Com a afirmação da interioridade da subjetividade, o indivíduo emerge do emaranhado das relações de troca e dos valores de troca (os verdadeiros valores da sociedade burguesa!), retira-se da realidade desta sociedade e entra numa outra dimensão, essencialmente diferente. (idem, p.16).


Marcuse articula duas realidades distintas, se assim pudermos chamar, que permanecem em tensão: a realidade existente (estabelecida) e a realidade protegida na interioridade do sujeito (subjetiva). Debruçar-se sobre uma realidade subjetiva, como é o caso da arte, significa evadir-se da realidade objetiva, provocando a invalidação dos principais valores burgueses e, deste modo, o foco da realização individual é desviado do domínio do chamado “princípio de realidade” (a realidade estabelecida). Isso significa que a separação entre arte e subjetividade, como requer a estética marxista, só pode resultar na perda do potencial revolucionário da primeira. É precisamente a este ponto da estética marxista que Marcuse dirige sua crítica: ao desejo de converter a consciência individual e toda sua representatividade em mera coletividade:


A subjetividade lutou por sair da sua interioridade para a cultura material e intelectual. E hoje, no período totalitarista, tornou-se mero valor político, tentando contrabalançar a socialização agressiva e exploradora. Esta subjetividade libertadora constitui-se na história íntima que é adequada ao indivíduo – da sua própria história, que não é idêntica à sua existência social. É a história particular dos seus encontros, paixões, alegrias e tristezas – experiências que não se baseiam necessariamente na sua situação de classe e nem sequer são compreensíveis a partir dessa perspectiva” (idem, p.16).

 

Vislumbrando a importância de se preservar a dimensão interior e individual, compreende-se de que forma, ao transcender a realidade estabelecida, a arte cria um mundo próprio que se opõe à realidade existente, para abrir uma nova racionalidade e sensibilidade, as quais se realizam apenas na sua forma.



A arte cria o mundo em que a subversão da experiência própria da arte se torna possível: o mundo formado pela arte é reconhecido como uma realidade reprimida e distorcida na realidade existente...a lógica interna da obra de arte termina na emergência de outra razão, outra sensibilidade, que desafiam a racionalidade e a sensibilidade incorporadas nas instituições dominantes (idem, p.17).



Revela-se então a transcendência para uma dimensão outra, que não a realidade imediata; que “destrói a objetividade das relações sociais” e abre “uma nova dimensão da experiência” – que se reserva o direito de não se comprometer com as normas e os valores dominantes. Ocorre, então, o que o autor denomina por “renascimento da subjetividade rebelde” ou a “contra-consciência”, que vem a ser a negação de um pensamento “realístico-conformista”, isto é, a negação de um modelo dado, e assim, extraída do processo corrente da realidade, a arte termina por assumir “um significado e uma verdade autônomos” representando a realidade, “ao mesmo tempo que a denuncia” (idem, pp. 18-19).

É já ao início da obra que Marcuse nos chama a atenção para o fato de que é na sublimação, proporcionada pela obra de arte, que se torna evidente para o espectador aquilo que realmente lhe importa, o que lhe é real, o que lhe apraz e o que lhe diz respeito, desconectando-o, ainda que brevemente, de tudo aquilo que lhe causa o sentimento oposto. Num processo em que lhe é revelado o conteúdo de sua própria essência, se assim pudermos chamar, mostrando-a como algo distinto e independente da realidade dada, o sentimento sublime, produzido essencialmente pela obra de arte, executa uma espécie de atualização e afirmação de seus projetos particulares: seus sonhos e seus anseios mais profundos emergem na superfície; apresentam-se com toda a força, e faz romper, em seu íntimo, com projetos que só então são reconhecidos como alheios. Tal é o poder da dimensão estética.

 

A verdade da arte reside no seu poder de cindir o monopólio da realidade estabelecida para definir o que é real. Nesta ruptura, que é a realização da forma estética, o mundo fictício da arte aparece como a verdadeira realidade (idem, p.19).

 

A experiência estética torna-se, pois, “um veículo de reconhecimento e acusação” (idem, p.19) e ao observar que “a arte submete-se à lei do dado concreto, ao mesmo tempo que o transgride” (idem, p.20), Marcuse nos indica que a autonomia da arte se apresenta em uma forma dialética: uma dialética entre a afirmação (ideologia) e, por outro lado, a denúncia do que existe (verdade) faz parte integrante da estrutura interna da obra de arte.

Cumpre observar que a arte a que Marcuse se refere é manifestamente a literatura. Para exemplificar essa estética que revela “dimensões da realidade interditas e reprimidas (arte pela arte)” (Marcuse, 1981: 26), o autor menciona a poesia de Mallarmé, que, para ele, evoca uma “festa de sensualidade que destrói a experiência de todos os dias e antecipa um princípio de realidade diferente” (idem). Ao designar que uma tal obra destrói a experiência de todos os dias, o autor nos confirma que é precisamente essa distância e afastamento da práxis o que constitui o valor emancipatório da arte, indicando, assim, exatamente o contrário do que postula a estética marxista. Ao desprezar a interioridade e o individualismo da literatura burguesa, exemplifica o filósofo, a crítica literária marxista descartou, inadvertidamente, o potencial contestatório da arte.

A tensão entre arte e práxis é fundamental para a dimensão estética: nisso reside seu potencial político e, uma vez que a arte possui a sua própria dimensão de transformação, uma harmonização com a práxis radical não só anularia esta dimensão, como também a converteria em seu contrário: na dominação do mundo. No caso da literatura, insiste Marcuse, o que conta é o destino pessoal dos protagonistas, “não como participantes na luta de classes, mas como amantes, vilões, tolos, e assim por diante”, isso quer dizer que o universal que aparece em suas histórias está para além da sociedade de classes.

Ocorre que a natureza associal (ou não-conformada) destes personagens é o que constitui, efetivamente, uma rebelião contra a ordem estabelecida. Essa é a razão, inclusive, pela qual o autor suspeita da cultura popular: porque essa, diferentemente dos exemplos citados, evoca processos de ajustamento e não de questionamento, com relação à ordem das coisas ou o chamado princípio de realidade. Se a arte deve criar o seu próprio mundo, o qual nada tem a ver com a realidade estabelecida; se ela desafia, como se disse, o monopólio de uma única realidade existente, sua verdade só pode ser negação, jamais adequação.

Também são citadas obras de E. Allan Poe, C. Baudelaire, M. Proust e P. Valéry, Victor Hugo, H. Balzac e F. Dostoievsky, como obras que desvendam as já citadas “zonas interditas da natureza e da sociedade”. Com esses e outros exemplos da literatura, o filósofo assevera que a libertação é uma tarefa humana, que diz respeito a todos os indivíduos, não apenas aos indivíduos proletários enquanto membros de uma classe social, trata-se, antes, da emancipação social dos próprios instintos da vida.

O que o autor nos propõe, pode-se concluir, é uma possibilidade de se proteger da reificação, agressiva e sistematicamente exercida pelo chamado mundo administrado. Trata-se de perceber a dimensão estética como uma derradeira esperança de se escapar à lógica predominante na sociedade capitalista: uma lógica que cerceia os instintos da vida e distancia os indivíduos de si mesmos. “A fuga para a interioridade e a insistência numa esfera privada”, diz o autor, “podem bem servir como baluarte contra uma sociedade que administra todas as dimensões da existência humana” (idem, p.40). Nota-se que a noção de subjetividade é destacada pelo autor como uma noção subversiva, sobretudo, pelo fato de visar “uma dimensão de vida não lucrativa” (idem, p.49), o que vem a representar a negação do espírito capitalista, devolvendo ao indivíduo o contato com sua própria humanidade.

A esperança de Marcuse, observa-se, orienta-se por uma espécie de mundo invertido, isto é, o mundo de uma obra de arte é, para o autor, “irreal” (idem, p.53) no sentido de ser “uma realidade fictícia” (idem), contudo, este mundo não é “inferior”, diz o autor, à realidade existente, ao contrário, “lhe é superior e qualitativamente diferente” (idem, p. 53):
 

Como mundo fictício, como ilusão (Schein), contém mais verdade que a realidade de todos os dias, pois esta última é mistificada nas suas instituições e relações, que fazem da necessidade uma escolha e da alienação uma auto-realização (idem, p. 53).



De forma geral, podemos assumir que a teoria estética de Marcuse procura mostrar que a arte pode atuar, como ideia reguladora, na luta pela transformação do mundo, uma vez que representa o objetivo derradeiro de todas as revoluções: a liberdade e a felicidade do indivíduo; pode atuar na transformação do mundo tanto por abrir uma dimensão inacessível a outra experiência, em que os seres humanos, a natureza e as coisas deixam de se submeter à lei do princípio da realidade estabelecida, como por mostrar a liberdade negada aos indivíduos pela sociedade repressiva. “O encontro com a verdade da arte acontece na linguagem e imagens distanciadoras, que tornam perceptível, visível e audível o que já não é ou ainda não é percebido, dito e ouvido na vida diária” (idem, p.79).

Por fim, podemos pensar que, se “toda a reificação”, como assinalam Adorno e Horkheimer, “é um esquecimento” (1985: 215), a arte é justamente o seu contrário: a arte é memória – memória do sofrimento, memória da injustiça, memória do terror. É a arte o que não deixa esquecer, o que não deixa escapar, o que resgata de águas profundas e faz emergir na superfície, sentimentos, desejos, valores e utopias; é álibi do espírito e inimiga da censura; é o que combate a reificação por fazer “falar, cantar e talvez dançar a palavra petrificada” (MARCUSE, 1981: 81).




NOTAS

  1. T. Adorno utiliza essa expressão para referir-se ao mundo burocrático, mercantilizado e competitivo da economia capitalista.
  2. O autor sublinha, em A Dimensão Estética, que sua teoria estética, bem como sua crítica à estética marxista estão construídos no interior mesmo da teoria marxista.




Bibliografia




MARCUSE, Hebert. A Dimensão Estética. Lisboa: Edições 70, 1981.

ADORNO, Theodor. W.; HORKHEIMER, Max. – Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

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