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segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

As emoções da Tragédia, segundo D. Hume


 





Em seu ensaio Da tragédia, publicado originalmente em 1757, D. Hume pontua o curioso entrelaçamento entre a tristeza, o terror e o prazer. Às paixões “incômodas e desagradáveis”, diz, seguem-se as mais “deliciosas” comoções e quanto mais afetado se sentir o espectador, maior será o seu deleite. As cenas de “completa alegria” são admitidas, ou ao final, ou para exercerem o papel de contraste e, por consequência, decepção (“para mergulhar os atores em uma aflição mais profunda”). Para o filósofo, provocar a compaixão e a indignação, a ansiedade e o ressentimento do público constitui o alvo do “grande poeta” (p. 199) e é grande prazer para o homem, nota ainda aliviar seus temores e aflições com lágrimas e soluços. E o que estaria por trás desse fenômeno?, pergunta-se Hume.
 

O filósofo comenta que alguns críticos teriam notado tal fenômeno, mas põe em destaque a solução elaborada pelo Abade Dubos, em suas reflexões sobre a pintura e a poética. Ele afirma que, para o espírito, qualquer paixão é mais desejável que a ausência dela; que para fugir desta ausência ou “estado de indolência” (p. 200), o espírito humano é capaz de recorrer às mais distintas atividades, das mais prazerosas às mais desagradáveis, do jogo ao trabalho, e o objeto perseguido é sempre “despertar as paixões”, com o intuito determinado de “afastar de si mesmo a atenção do espírito humano” (idem). A paixão mais incômoda seria, portanto, mais suportável do que seu oposto: a serenidade. Busca-se, na experiência humana, a intensidade.
 

Hume declara considerar esta reflexão “parcialmente” aceitável. Ele a endossa quando observa que o espetáculo do jogo e as emoções que ele propicia, atraem o indivíduo, seja para perdas, seja para ganhos, pela simples capacidade de oferecer alguma distração. O que o homem não quer, conclui o autor, é abandonar-se aos seus pensamentos.


Há, entretanto, uma diferença entre a aflição e o terror que se sente na tragédia e aqueles da vida real, isto é, a aplicabilidade da primeira situação não se confirma na segunda, onde, em vez de prazer, o indivíduo seria invadido por um extremo desagrado. É nesse sentido que, segundo Hume, M. Fontenelle teria dado uma outra resposta, notável, para o mesmo fenômeno ou, ao menos, uma “contribuição” à teoria supremencionada. Ele diz: “o prazer e a dor […] que são dois sentimentos em si mesmos tão diferentes, não diferem tanto quanto às suas causas” (idem). O que quer dizer isso? Para ilustrar, ele utiliza como exemplo o prazer de se receber cócegas que, levado a um certo ponto, converte-se em dor; o movimento contrário também é possível, isto é, a dor amenizada pode ter ares de prazer. Com isso desvela um mecanismo que parece se aproximar da Tragédia: “uma tristeza suave e agradável” que seria “uma dor enfraquecida e diminuída”. Acrescenta ainda que “o coração gosta” desses movimentos, desses trajetos, onde o que é desastroso é “suavizado” e explica que é esse misto, de terror e suavidade, que vivenciamos no teatro, diante da tragédia, o que nos faz transformar a dor em prazer. À compaixão e sofrimento que sentimos pelo herói com o qual nos identificamos mistura-se a consciência da falsidade da representação, que nos acalma, como que lembrando-nos não se tratar de realidade.


Choramos pelas desgraças de um herói a que nos afeiçoamos. No mesmo instante consolamo-nos, refletindo que se trata apenas de uma ficção. E é precisamente essa mistura de sentimentos que constitui uma tristeza agradável, e provoca lágrimas que nos deliciam” (p. 201).



Para Hume, essa reflexão mostra-se convincente, mas ainda carece de uma outra contribuição. Ele pondera, nesta análise, que os epílogos de Cícero, por exemplo, a despeito de seu mérito como orador, contemplavam “o prazer mais delicioso” sem que se configurassem como ficção. A resposta estaria, então, em que esse efeito (“extraordinário”) seria consequência da “mesma eloquência com que a cena melancólica é representada” (p. 202). Trata-se, para o filósofo, de gênio, da “arte de [saber] reunir todas as circunstâncias patéticas”, e dispô-las de modo consciente. Ele diz:


o exercício desses nobres talentos, juntamente com a força da expressão e a beleza das peças de oratória, difundem no auditório a mais alta satisfação e excitam os mais deliciosos movimentos (idem).


Com isso, Hume mostra-se convencido de que aquilo que transforma o “impulso das paixões” em prazer é, mais que o contraste das emoções ou a consciência da natureza fictícia como elemento que “suaviza” as paixões, o deleite a que somos conduzidos pela eloquência do orador. Mas esta deve estar acompanhada, atenta o filósofo, de “força de expressão” e “sentimentos de beleza”. Estes últimos é o que direciona os impulsos derivados da tristeza ou da indignação; eles constituem o que Hume chamou de “emoção predominante” e, por isso, alteram completamente a natureza das outras paixões. “E a alma”, conclui Hume, “ao mesmo tempo despertada pela paixão e fascinada pela eloquência, sente no conjunto um forte movimento que é plenamente delicioso” (idem). O que Hume ressalta nessa passagem é que há uma tensão entre forças (paixões) subordinadas e forças predominantes, onde as primeiras convertem-se nas segundas, reforçando a presença destas.


Hume destaca ainda um outro elemento que despertaria “naturalmente” o espírito: a novidade.  Ele diz:


quer um acontecimento provoque alegria ou tristeza, orgulho ou vergonha, raiva ou boa vontade, é inevitável que produza uma afeição intensa, sempre que é novo e inabitual (…) [ele] intensifica tanto as paixões dolorosas como as agradáveis” (p. 203)



Ele explica que se desejamos prender a atenção de uma pessoa narrando um acontecimento, o “melhor método” para potencializar a comoção será demorar-se “habilmente” na revelação dos fatos. Antes de conhecê-los, diz Hume, a curiosidade e impaciência devem ser excitados. Eis o artifício, afirma o filósofo, usado por Shakespeare em Otelo. “As dificuldades intensificam paixões de toda a espécie (…) produzem uma emoção que vai alimentar a afeição dominante”. Há ainda outros exemplos, bastante simples e interessantes, sobre a intensificação que as “dificuldades” exerceriam nas paixões. Hume diz que “nada torna um amigo mais querido para nós do que o desgosto pela sua morte. O prazer de sua companhia não possui influência tão poderosa”, ou, ainda, que para o amor, nada é tão favorável como o ciúme e a ausência (idem).


Com essas passagens, a dificuldade revela-se, na reflexão de Hume, sobretudo no primeiro exemplo (o de narrar um acontecimento, cultivando no espectador curiosidade e impaciência), uma ferramenta ou, ainda, um instrumento de eloquência. Nesse sentido, Hume salienta a simplicidade (e mesmo a necessidade) que está por trás dessas emoções que se apresentam, inicialmente, como desgosto, tristeza e indignação, para converterem-se, mais tarde, em prazer. Ele esclarece, sobre estes prazeres, que “não é tão extraordinário e paradoxal como à primeira vista pode parecer” e conclui que é a junção das coisas mais distintas (“a imaginação, o poder da expressão […] o encanto da imitação”) e a articulação delas – pelo princípio das paixões predominantes e as subordinadas – o que constitui “as delícias do espírito” (idem). Há alguns casos que demandam maior habilidade. No caso de Cícero, diz Hume, o terror de Verres “aumentara proporcionalmente à nobre eloquência e veemência” do orador, pois “as primeiras paixões eram demasiado fortes […] e agiram, embora segundo o mesmo princípio, de maneira contrária”. Alguns movimentos de dor ficariam, pois, impossíveis de “suavizar” e de transformar-se em prazer (p. 205).


De todo modo, no teatro, para agradar o público (para sua “satisfação completa”), os sentimentos de compaixão devem ser sempre suavizados por alguma passagem agradável. O triunfo da dor e ou da tirania constituiria um espetáculo desagradável e por isso é evitado “por todos os mestres do palco”, explica Hume. (“Para que o público vá embora inteiramente contente e satisfeito, é preciso que a virtude se transforme num nobre e corajoso desespero, ou que o vício receba o devido castigo”) (p. 206).


É justamente por essa razão, contudo, que os pintores teriam sido, segundo Hume, “muito infelizes” em seus temas: trabalhando para igrejas só poderiam representar cenas terríveis, de extremo desgosto para o olhar (como o fazem os martírios e torturas), sem nenhuma paixão agradável que pudesse, ao final, direcionar a experiência para um viés mais prazeroso. Um desequilíbrio dessa natureza, observa Hume, destrói a “saúde” das emoções e do prazer, inclusive na vida quotidiana. “Se a paixão subordinada”, diz o autor, “for intensificada a ponto de tornar dominante, ela absorve aquela afeição que, anteriormente, alimentava e incrementava”. Ele exemplifica tal pensamento com o excesso de ciúme, que pode levar à extinção do amor, ou, ainda, a narração de uma história desastrosa que só contemple momentos melancólicos, sendo despertada somente a paixão desagradável, sem que a ela se dê aquela guinada para as paixões agradáveis, que suavize a primeira tornando-a, finalmente, em satisfação (“alguma espécie de vivacidade, de gênio ou de eloquência”) - esta não poderia comunicar outra coisa que não o mero desagrado.
Hume encerra o ensaio alertando que há uma medida certa para a inserção das dificuldades (seja na vida quotidiana, na poesia ou na oratória), pois, ele finaliza, “o excesso de dificuldades nos torna indiferentes” (p. 206). O gênio dos grandes mestres, podemos concluir, consiste então em saber dosar, articular, conduzir a eloquência e o elemento da dificuldade, como instrumentos que podem valorizar, bem como destruir o próprio espetáculo.



Bibliografia:


HUME, D. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002.

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