Translate

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Shakespeare em Herder, uma intuição da Modernidade




 
 
 
Em seu ensaio Shakespeare, J. G. Herder nos permite vislumbrar um debate particular, recorrente no ambiente alemão, suscitado pela estética do drama shakespeareano e seus preceitos singulares. Nos idos de 1760 havia certa discussão acerca das peças do dramaturgo britânico, a respeito, sobretudo, de sua ruptura com os padrões clássicos, deixados pelos modos gregos. Dado o seu desprendimento desses padrões estéticos, predominantes, o questionamento instaurado pelo debate colocava em dúvida o valor dessa arte e sua própria legitimidade enquanto “tragédia”.


Em sua reflexão, Herder atenta para o fato de que a obra de Shakespeare e sua larga repercussão fora, em grande medida, expandida pela interpretação que dela se fez: deve-se, pois, ao trabalho daqueles que a criticaram, que a defenderam, que a condenaram, traduziram, etc; entre adversários e admiradores, há, entretanto, um aspecto para o qual Herder nos chama a atenção: com base em sólidos preconceitos; os críticos de Shakespeare limitaram-se a ler as obras pelas “lentes do classicismo” e, assim, acabaram por reduzí-la, segundo o autor, a uma “caricatura”. Assim, ao lado dos muitos adversários de Shakespeare, que não lhe reconheciam como um bom dramaturgo, por distanciar-se dos autores trágicos clássicos - Sófocles, Eurípedes, Corneille e Voltaire - cometem o mesmo equívoco também os seus defensores, que teriam tentado apenas “desculpá-lo” pelas regras violadas e “salvá-lo” destacando as belezas de sua obra. Herder identifica, pois, que ambas as partes uniam-se por adotarem o mesmo preconceito - classicista – como base para construir seus argumentos. (“de ambos os lados, se edificou com fundamento apenas num preconceito, numa ilusão, que nada é”, p. 38).


O projeto de Herder guia-se, contudo, pelo movimento contrário: prevê não continuar este “edifício” dos preconceitos neoclássicos, mas distanciar-se dele (“Que biblioteca já se escreveu sobre ele, pró e contra ele! - e de forma alguma estou disposto a aumentá-la ainda mais”), na tentativa de compreender a obra nórdica e atribuir-lhe o valor que lhe for digno. A pretensão de Herder seria, pois, em suas próprias palavras, “esclarecê-lo”. E seu projeto, cumpre citar, visava sobretudo extrair dessa reflexão algum proveito para sua própria cultura (“sentí-lo como é, para serví-lo e – onde for possível – para nô-lo reproduzir a nós, alemães”) (p. 37).


Em seus trabalhos acerca da estética e do idealismo alemão, a professora norte-americana Kristin Gjesdal, que analisa a contribuição de Herder e situa o debate sobre a obra de Shakespeare no âmbito da estética enquanto nova disciplina, chama-nos a atenção para o fato de que, dizendo respeito aos críticos e também aos filósofos, tratava-se de uma questão que suscitava, antes de qualquer coisa, a reflexão crítica e sistemática sobre uma “condicionalidade [conditionedness] histórico-cultural” do pensamento. Seria a partir dessa noção (de condicionalidade) que, segundo a autora, Herder voltou-se para o caso de Shakespeare. É alinhando esta noção à ideia de preconceito, que Herder concentra seus esforços em entender as origens da má recepção sofrida pela tragédia de Shakespeare.


Ao observar a devoção, irrefletida, por assim dizer, com que se persegue os dogmas clássicos, Herder identifica-a como a primeira premissa a ser questionada. A noção de “condicionalidade histórico-cultural”, surgirá nesse âmbito (nessas análises) e sustentará as observações de Herder acerca do preconceito, como um problema que impediria a crítica mais coerente e justa, a seu ver, da tragédia nórdica.


O pensamento de Herder se dará, então, em três momentos: a) pensar as origens do drama grego (para); b) diferenciá-lo do teatro francês que, a seu ver, estão muito distantes dos cânones helênicos e, finalmente; c) ressaltar as qualidades de Shakespeare que - a despeito de seus caminhos, controversos - “reivindicariam” para si valor análogo ao da tragédia grega. Sem perder de vista a ideia central com que o autor delineará esses movimentos: a de desnudar ou evidenciar os preceitos (infundados) com que se privilegia as premissas clássicas, cumpre analisar o desenvolvimento de sua reflexão.


A respeito das origens da tragédia grega, Herder lembra que as palavras drama, tragédia e comédia foram herdadas pelos gregos e que, tal como o fez a cultura da escrita, elas teriam aberto seu “caminho” por meio da tradição. Assim, junto delas nos teria chegado todo um “acervo de regras”, o que, para o autor, explicaria, em certa medida, as exigências do classicismo, revelando, ao mesmo tempo, a sua própria inconsistência. Com o intuito de problematizar esse “acervo de regras”, Herder recorre a uma analogia para descrever a relação entre os dramas grego e nórdico: tal como ocorreria com as crianças, diz o autor, a formação das nações não se processam pela razão, mas pela percepção e pela impressão, “pelo que há de divino no exemplo e no uso (…). E “Elas [as nações]”, acrescenta o autor, tal qual uma criança “nunca receberão a semente sem invólucro” (p. 39).


O que Herder quer dizer nessa passagem fica mais claro quando ele afirma que na Grécia surge um drama que “não poderia ser o do norte”, mas que, entretanto, poderá ser desenvolvido (como foi) até adquirir características próprias, isto é, embora a tragédia grega seja seu “invólucro” e mesmo o “exemplo”, o drama nórdico teria tomado rumos distintos, para encontrar seus próprios significados (que diz respeito ao seu ambiente, sua história, seu espaço, etc).


O autor lembra ainda que a própria tragédia grega, originada do coro e do ditirambo, também recebera “acréscimos” de Ésquilo e Sófocles e, só assim, “após longo desenvolvimento”, teria-se elevado o drama grego “à sua grandeza” e, o autor acrescenta, “essas origens vêm a esclarecer certas coisas que, quando admiradas como regras mortas, levam a mal-entendidos terríveis” (p. 40). Nessas passagens, importa destacar, o objetivo de Herder é evidente: demonstrar como a exigência de se seguir os preceitos originários, neste caso as regras rígidas de um “antecessor” (hoje os clássicos), não foi preocupação fundamental dos primeiros autores trágicos (dos próprios gregos) e, mais que isso, nessa postura estaria, também, a razão pela qual houve, de fato, desenvolvimento entre os gregos. (“Dado que tudo no mundo se modifica, também teve de modificar-se a natureza que foi o que propriamente criou o drama grego”, p. 43). O próprio Aristóteles, em sua obra Poética, ressalta Herder, teria dito o contrário do que tradicionalmente se interpreta; “o grande homem”, diz o autor, “filosofava no amplo sentido do seu tempo (...)”. Pra complementar a ideia, o autor lança mão de uma passagem chave para demonstrar essa compreensão aristotélica: “Não conhecia nem reconhecia outras regras que os olhos do espectador, que a alma, que a ilusão!” e finaliza: “a arte dos poetas gregos trilhou justamente o caminho oposto àquele que hoje nos querem impingir aos gritos” (p. 42). À partir disso, nota-se que preconceito, em Herder, estaria no ato de exigir de toda a produção originária de uma matriz, a simples (e eterna) reprodução de sua origem; de querer que a “semente”, para continuar o conceito de Herder, em vez de desenvolver-se, repita o próprio invólucro, o que significaria impôr as condições (uma “condicionalidade”) que já dizem pouco às produções “hodiernas” e, por isso mesmo, as tornam artificiais. Significa dizer que, para Herder, é essencial considerar as novas circunstâncias que atribuem significado e valor a uma produção, segundo o tempo e espaço em que elas nascem.


Este momento do ensaio de Herder apresenta grande originalidade e contribuição, por nos remeter à ideia de que, nesse sentido (de desenvolvimento, pelo desprendimento dos antecessores) o drama nórdico, por tomar rumos distintos, seguindo premissas próprias e singulares, se encontraria mais próximo dos gregos (de sua autenticidade) que os tão aclamados dramaturgos franceses, cujo teatro seria, a despeito do valor inegável de seus autores, apenas uma tentativa, um “macaquear”, distante da tragédia grega. Esse movimento, que Herder opera em sua reflexão, é, ainda, fecundo por apontar para uma inversão de valores - ao se colocar as peças francesas como modelo e as britânicas (representadas por Shakespeare) como objeto de crítica – digna de revisão.


Com efeito, no que diz respeito às regras teatrais, atribuídas a Aristóteles – unidade de tempo, de lugar, de ação, etc - Herder confere aos franceses Corneille, Racine e Voltaire, grande valor; elogia seus versos e rimas, a “regularidade, riqueza e brilho” e outras qualidades. Contudo, o autor faz uma observação contundente, ao dizer que “isso não é tragédia grega! (…) nem na finalidade, nem no efeito, nem no gênero, nem na essência!”. Esses autores, admite Herder, falam a linguagem do sentimento, seguem em grande medida o “seu” Aristóteles, entretanto, “são retratos de sentimentos de terceira e alheia mão; nunca, porém, ou raramente, emoções diretas, imediatas, sem afetação, que buscam palavras e por fim as encontram”. Ainda que belo, educativo e instrutivo, arremata Herder, seus objetivos ficam longe do “objetivo grego”, isto é, a “comoção do imo”, “o excitamento da alma (…)”, diz, “que realmente nenhuma peça francesa conseguiu nem conseguirá realizar [pois que nela] faltam todos os elementos da comoção, o fim e a realização do fim” (pp. 46 – 47).
 
Exposto isso, o movimento seguinte de Herder, que assume não ter, ainda, decidido nada sobre “valor e desvalor”, mas somente destacado a “diferença” entre as duas estéticas, será apontar para um povo que, ao contrário, isto é, “ao invés de macaquear”, radicaliza o autor, decidiu “inventar para si mesmo o seu drama”; e inventou segundo “a sua história”, “o espírito da época, os costumes, as opiniões, o idioma, as convenções (…) paixões nacionais (…) (tal como os nobres gregos o fizeram partindo do coro)” (p. 48). Ele refere-se aos nórdicos e aqui deixa explícito as razões pelas quais o drama shakespeareano se aproxima dos gregos, na mesma medida em que dela se afasta o teatro francês. É por esse caminho que, conclui Herder, esse povo (“junto ao seu grande Shakespeare”) alcança o que o autor chama de “fim dramático”. De qualquer modo, vale mencionar, o elogio de Herder não consiste em aproximá-los, britânicos e gregos (exceto por essa característica de desenvolvimento próprio), mas, ao contrário, por toda a diferença e singularidade – o que por mais de uma vez ele exalta, dizendo: “que distância da Grécia!”.


Ao nos remeter aos gregos que, partindo do coro, construíram seu próprio edifício, em alusão aos nórdicos, Herder é enfático ao propor o seguinte questionamento: quem poderia condená-los, “só por essa segunda criação não ser a primeira?” Ele ressalta que sua virtude estaria exatamente no fato de não ser a primeira (uma repetição dela), ou, em que “do solo da época, nasceu de fato outra planta” (p. 49). A esse respeito, é curioso pensar que no ensaio de Herder, ao identificar a crítica do teatro francês (como o reverso do elogio a Shakespeare) que, a seu ver, poderia buscar sua própria estética, cujas referências fossem os elementos de seu próprio tempo e realidade, identifica-se, também, o impulso moderno pela criação, superando o elogio da mímese (imitação), tão ativo no período em que Herder está inserido: o Neoclássico. Nesse sentido, poderia-se pensar Herder, que está há um século, aproximadamente, de uma estética efetivamente modernista (no sentido militante), como um pensador bastante a frente de seu tempo, ao destacar em Shakespeare (defender a sua obra), pela qualidade de “criador”. Ele antecipa um valor (o desprender-se do passado), que será inegociável na estética do século XIX (embora, ironicamente, francesa), que se deixa sentir em várias passagens, como essa: “Apanhou a história como a encontrou, e compôs com espírito criativo, num Todo maravilhoso, as coisas mais diversas” (p. 50).


A ideia do “Todo” também desempenha papel importante na avaliação que Herder faz acerca do dramaturgo britânico. Segundo o autor, Shakespeare canaliza suas peças para um acontecimento, um evento. Nele, entretanto, alcança a linguagem de “todas as idades, de todos os homens e espécies de homens”; “ensina, comove e forma homens nórdicos”, tal qual fizeram os gregos com os homens de seu tempo. O valor em Shakespeare, segundo as observações de Herder, está não só no seu desprendimento dos dogmas classicistas, mas na universalidade dos sentimentos que ele manifesta à partir de um acontecimento particular.

Direcionando uma “situação” a um “Todo”, em Shakespeare estaria tanto a individualidade quanto a universalidade. O britânico, diz Herder, respira a “alma do acontecimento”, “ordena com o olhar” e “anima com o sopro criador da sua alma”, arrastando consigo “atenção, coração, todas as paixões, toda a alma” - eis o que seria, entendido por Herder, o drama e o poeta dramático. Mas Herder insiste: “o que há aqui não é [só] um poeta! É um criador! É história universal!” (p. 55). Universalidade é característica importante na criação de Shakespeare, porque é o que fala a todos os indivíduos, mas, também importante na reflexão herderiana, apresenta-se a qualidade de criar, e essa é uma característica notável, como dito, pela antecipação que ela evoca, no pensamento de Herder,


Finalmente, exaltando essa indiferença à medida do tempo (para citar apenas um elemento), Herder conclui sua reflexão lamentando que o “criador de história e alma universal” envelheça cada vez mais, até o dia em que se tornar uma “ruína de colosso” que “todos admiram e ninguém compreende”, mas sem, com isso, deixar de se mostrar grato por viver os tempos finais em que ainda era possível entendê-lo e por viver, acrescenta (referindo-se a Goethe), nos tempos em que:



tu, meu amigo (…) [ainda pode] reconstruir o seu monumento, em nossa língua, para a nossa pátria tão extraviada, inspirando-te na época dos cavaleiros medievais. Eu te invejo o sonho, desejando que tua ação nobre e alemã não arrefeça até que a grinalda coroe o teu esforço” (p. 63).



Com isso, a intenção que se esboça no começo se confirma ao final do texto, de que Herder visa um despertar da cultura alemã, mas em um sentido inovador, modernizante (muito embora essa palavra não apareça em suas observações), que se inspirasse, em uma palavra, não no teatro francês, mas no britânico.


Ademais, pode-se pensar que a expectativa que Herder depositava em seu conterrâneo, que iria liderar o Romantismo em fins do século XVIII, seria mais que atendida, se ele pudesse testemunhar as sementes deixadas por esse movimento cultural, cuja dialética, se assim pudermos chamar, culminou nas estéticas modernistas (como a impressionista), que romperam de vez com os preceitos (e preconceitos) e toda a rigidez classicistas para valorizar definitivamente o tempo e espaço próprios. E, nesse sentido, não seria arriscado entendermos o desprendimento de princípios, o respeito à realidade distinta, e a observação do presente - no elogio do drama nórdico - como elementos que caracterizam o pensamento de Herder como uma intuição, de certa forma, daquilo que viria a constituir o próprio solo da modernidade artística. É nas reflexões concernentes à obra shakespeareana que, nos parece, estaria a mola propulsora dessa “intuição”.



Bibliografia:

HERDER, J. G. Shakespeare. New Jersey: Princeton University Press, 2008.


Autores Pré-Românticos Alemães / Introdução e notas de Anatol Rosenfeld – São Paulo: EPU, 1991.

Websites consultados:


(visitado em 10.12.2014)









Nenhum comentário:

Postar um comentário